Julho a Setembro de 2020

Se a gente não se forçar a escrever nenhuma linha sai, e a vida vai assim, passando à toa, à toa...

02 DE JULHO

Não dá pra depender de inspiração. Se a gente não se forçar a escrever nenhuma linha sai, e a vida vai assim, passando à toa, à toa... Então eis o que eu tenho pensado ultimamente sem nenhuma ordem relevante:

Primeiro. Hoje, quarta-feira pela manhã, depois de perceber que uma grande bunda anônima de mulher quicando no meu colo foi o meu primeiro pensamento do dia, comprometi comigo mesmo a nunca mais consumir pornografia, pelo menos por vontade própria. Percebam que não estou abrindo mão da masturbação -- literalmente -- não ainda! só estou tentando desarmar essa armadilha mental antes que seja tarde, antes que eu me transforme em alguém parecido com um professor que conheci na escola onde trabalho e que ficava sentado no sofá da recepção segurando o celular contra o ouvido, babando sobre o áudio d’um belo d’um pornozão. Às vezes ele fazia isso com gente perto, inclusive mulheres e jovens. É por isso que eu digo sem medo de ser moralista: assistir a pornografia é feio, é sujo, é nojento! Está feito, agora cumpra-se.

Segundo. Não me entendam errado, eu gosto de dar aulas de Inglês. Se não me interesso tanto pela língua, gosto pelo menos de ser uma espécie de mentor para os alunos, gente na sua maioria sem muita consciência delas mesmas, nem muita referência cultural relevante para além do Netflix. Vejam os adolescentes, por exemplo. Aqueles com que eu tenho contato são na maioria simpáticos sem dúvida, mas quase todos eles chegaram à adolescência sem vida, triturados pela rotina idiotizante dos cursinhos. Sempre que eu lhes pergunto como foi a semana, a resposta é sempre a mesma: “estudando, professor”. Eles estão sempre estudando, sempre fazendo provas, e mesmo assim nunca aprendem nada que preste. Parte o coração ver os mais inteligentes deles repetirem os jargões que, sem dúvida, são dos professores e que por sua vez devem ter ouvido de alguém na mídia. Uma das alunas, de 16 anos, parou recentemente de comer carne e diz que não quer ter filhos pra focar na carreira. Essa mesma aluna, por outro lado, gosta muito de ler e escrever e tem um interesse em dramaturgia. Sempre que eu a vejo eu brinco dizendo para ela parar de estudar para as provas e ler durante a aula. Ai, se a mãe dela soubesse!

Digo isso sem medo: 90% dos alunos que estudam outro idioma não sabem porque o fazem, e quando questionados atribuem à exigência de um negócio vago chamado “mercado de trabalho”, que nem sei se existe direito. Outros querem aprender porque esperam um dia morar no exterior. Mas, de forma geral, aulas de Inglês só existem por um resquício de hábito de classe média que insiste em não sumir.

É legal ser amado e sentir que o aluno está com você não só pela obrigação imposta por si ou por terceiros de aprender outro idioma, mas também por uma espécie de confiança e reconhecimento na sua liderança, pelo menos nesse aspecto pequeno da formação deles. Não quero ser ingrato, mesmo porque é dessa escola de onde sai o salário mínimo e meio (bruto) que ajuda a justificar minha presença em Maceió junto às pessoas e que paga o fardo de Budweiser que me abastece no final de semana. Sei também que ser professor de inglês não é a profissão mais degradante do mundo, existem ocupações muito mais enlouquecedoramente repetitivas a que as pessoas se submetem para se sustentarem a si mesmas e as suas famílias, sem que elas possam ter o direito de maldizer o próprio trabalho a que me concedo. Mas, por Deus! eu não aguento mais nenhuma aula de Inglês! Que nenhum aluno leia isso. Não é por causa de nenhum deles, mas de todos eles ao mesmo tempo. São todas essas aulas, uma atrás da outra. É a necessidade de fazer o máximo de matrículas e aulas para não quebrar o negócio dos outros. Deus, resgatai o sentimento perdido de amor ao próximo! se é que um dia eu já tive.

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05 DE JULHO

Havia uma aluna evangélica, muito gente boa por sinal, e que me dizia, sempre ignorando o fato de eu não ser casado: “preste muita atenção no que diz a sua esposa, elas vêm coisas que os maridos ignoram”. Lembrei desse conselho hoje, dia do meu aniversário e noite de eclipse de lua cheia, quando pelo caminho até o Palato, Laís me lançou uma ideia que a princípio considerei maluca, mas que com o passar dos dias foi se revelando nem tão maluca assim. Dizia ela:

--Véi, por que você não volta a estudar esses negócios de design? Suspirando fundo... e levando as palmas das mãos às têmporas, respondi: -- Véi, não dá! não consigo inserir mais nada na rotina. -- É que, tipo...eu não sabia que tu desenhava. E eu tô vendo muita vaga de trabalho remoto pr’essa área de design. -- Velho… -- E você gostou de trabalhar de casa. Sei lá, eu tenho medo do que vai acontecer quando a quarentena acabar e você tiver que voltar para a escola... -- Laís, não é tão simples assim. Se eu for fazer uma coisa dessa, eu vou ter que virar uma chavinha aqui ó, na minha cabeça...É mudar tudo, dedicar sério, todo dia. Fora que a galera da minha época já tem dez anos de carreira. Não dá…

Explico o contexto. Laís e eu fizemos recentemente alguns trabalhos de webdesign, por assim dizer. Ela programando e eu dando pitaco, usando um pouco do que eu sei de softwares gráficos do meu tempo de faculdade, o que é muito pouco. É verdade que sempre gostei de desenhar. Quando era pequeno, todo mundo dizia que eu tinha a mania de rabiscar o ar com o dedo indicador, que nem um louco. Na escola, eu criava revistas em quadrinhos, tirinhas pra minha mãe ler na cozinha, caricatura dos professores, dos colegas e o diabo à quatro. Cheguei a ter umas caricaturas de guitarristas de rock publicadas na seção de cartas do leitor da revista “Guitar Class”, o auge da minha carreira. Mais tarde, minha mãe veio a justificar junto ao coordenador do cursinho o porquê da minha escolha pelo curso de Comunicação Social em Belo Horizonte: “Cícero sempre foi criativo e gosta muito de desenhar”.

Depois de muito nadar, morreria na praia quatro anos depois, ao largar o curso de Comunicação Social no sexto período. E desde então fiquei com esse ponto e vírgula, esse período sem conclusão antes de desenvolver qualquer potencial técnico e humano. E essa lua deixa a gente comovido como o diabo?...

23 DE JULHO

Presto aqui minha homenagem a Mateus de Oliveira, verdadeiro herói silencioso da internet, que postou um link para o download pirata de “O Patriarca e o Bacharel” do Luís Martins, livro que finalmente terminei de ler depois de dois ou três anos de procura. Mais que a própria tese do livro, ficará marcada na minha alma a descrição implacável de Luís Martins sobre a personalidade da geração parricida, dos jovens do final do século XIX que abandonaram a Casa Grande para estudarem em Recife ou na Europa, e que mais tarde se assentariam nas capitais para se tornarem banqueiros, poetas, proclamadores da República, enfim, para se tornarem bacharéis nas capitais. Sem desenvolverem qualquer aptidão para a terra, escreveu Luís Martins que os bacharéis “ficavam uns incapazes de tudo, nem mais homens de campo nem mais indivíduos citadinos, inaptos para qualquer atividade lucrativa, servindo apenas para esbanjar em poucos anos a fortuna penosamente amealhada pelos velhos fazendeiros.”

Em vez do destino natural do jovem coromandelense: beber aos 10, dirigir aos 12 e bater o carro aos 15; meus pais acharam que seria melhor que meus irmãos e eu estudássemos em Uberlândia, a capital do Triângulo Mineiro. Devia ser motivo de orgulho pr’os pais que sobreviveram a roça exibirem os seus “pardaizinhos” citadinos, que pela TV à cabo e mais tarde pela internet, aprendiam a cantar um monte de nomes em inglês que nos aproximava do mundo e nos distanciava cada vez mais da nossa origem provinciana. E para quê? Só pra mais tarde termos acesso à vaga na Universidade Pública, a fábrica de bacharéis. Quando vejo o que a minha geração está fazendo, gente mais talentosa que eu colecionando títulos acadêmicos e disputando cargos que, no-fundo-no-fundo, não são essenciais e não fazem muita diferença dentro da comunidade; ou ainda, quando me vejo uma ferramenta inútil em casa, sem dar “um murro na broa”, incapaz de trocar a válvula do botijão de gás -- vem a mim a triste constatação que dói como só a verdade pode doer: a de que somos ainda a mesma geração de bacharéis de cem anos atrás, até piores talvez, porque intelectualmente mais mal formados e mais despreparados para a vida real.

Hoje eu sei que uma cidade grande só é diferente da pequena pelo tamanho de sua ilusão. Não que todo interiorano seja melhor, muito pelo contrário, o que mais vejo pelos interiores do Brasil é gente triste, aterrada naquele tédio da vida sem sentido. Mas é que a vida simples, quanto mais calma e próxima da terra ela for, menos distrações inúteis ela o trará da vida real. E a vida real é, e sempre será, a batalha pela sobrevivência daquele que lavra a terra que o alimenta ou daquele que troca o seu ofício pelo o pão de cada dia. Herberto Sales sabia disso e em “Rio dos Morcegos” realizou, pelo menos literariamente, a possibilidade de retorno a Pasárgada, o regresso à terra natal que nunca esperamos acontecer e que mesmo assim cultivamos secretamente, como um último recurso. Tem momentos em que o que eu queria mesmo é retornar para Coromandel e começar tudo de novo, montar casinha, cuidar dela, lavrar de novo a terra em que meus pais nasceram, e, quem sabe? escrever um livro sobre a história dos feitos sertanejos e da cultura que foi praticada lá. Em outros momentos eu me acordo do devaneio, e vejo que se a viagem à cidade dos bacharéis foi mesmo sem regresso, o que me resta é reconstruir novamente Coromandel no meu coração e lavrar com suor o pouco de dignidade sertaneja que me resta. Vá trabalhar então, vagabundo!

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31 DE JULHO

Sinto vergonha ao ler alguns dos textos publicados aqui no Subsidiário. Não sei escrever, essa é que é a verdade. Os períodos me saem grotescos, desleixados; com orações longas concatenadas à força com outras curtas e preguiçosas. Isso sem falar nos erros de conjugação e pontuação ou quando não esqueço palavras inteiras; erros de quem escreve com desleixo. Aplico os mesmos recursos sintáticos de novo e de novo, sinal de falta de repertório. Falta equilíbrio, falta harmonia, falta ler em voz alta o que escreve. Falta, enfim, talento.

Tenho inveja de quem escreve bem. E se um dia eu conseguir escrever um romance, do início ao fim, minha vida já não terá sido em vão por mais medíocre que ela tenha sido. Por esse romance, que nem precisa ser bom, talvez no nível de um romance ruim de um bom escritor, eu aceitaria os maiores abusos diários e as piores rotinas de trabalho; por esse romance eu aceitaria ter sido pobre a minha vida inteira.

06 DE AGOSTO

Costumava me gabar por ser uma pessoa de humor estável mas nos últimos três ou quatro anos perdi muito do equilíbrio interno a ponto de qualquer tretinha qualquer me fazer perder totalmente as faculdades mentais. Uma simples discussão sobre compra de passagem, por exemplo, me deixa translocado e com vontade de quebrar tudo! Ao comprar uma passagem de Maceió para Uberlândia, viagem que venho tentando fazer desde o ano passado e usar os créditos que minha mãe tinha de uma passagem não usada por ela, vejo que a Azul não consegue me cadastrar como passageiro porque meu CPF consta errado. Ainda por cima, Laís quer antecipar a volta pra ver a prima que vem do Rio Grande do Norte. Não amo Uberlândia e não sou de sentir saudade de família; é só que eu acho injusto que eu esteja 24 horas disponível para os amigos da Laís, os parentes da Laís, os eventos sociais da Laís, e quando eu quero visitar minha cidade, parece que eu tenho que eu tenho que mover o mundo, e pedir permissão pra tudo e todos.

12 DE AGOSTO

Escola é um negócio feito p’ra manter alunos na escola. Se a escola for pública então não tem problema, porque o aluno não tem escolha. Se a escola for privada e o aluno criança ou adolescente, também não tem erro, ele também não tem escolha. Mas se a escola for privada e o aluno adulto, o bicho pega. Passada a animação inicial que vem com a satisfação de qualquer compra, seja um sapato, um sorvete ou uma aula, o consumidor-aluno esquece do motivo inicial pelo qual se inscreveu naquele curso, e se o professor não fizer de tudo pra manter acesa a chama (seja levando um violão, contando piada ou fazendo jogos) esse aluno vai embora, alegando qualquer motivo, inclusive falta de automotivação. Seu chefe ficará puto, principalmente se ele estiver lutando para manter o negócio funcionando durante a pandemia. Não posso reclamar, só é feliz aquele que ainda tem um emprego.

(...)

Começou essa semana o segundo semestre do curso de Letras à Distância, e que por ser na sua essência à distância, não sofreu qualquer alteração de calendário em 2020. Dentre as matérias desse semestre, duas me chamaram atenção: Linguística I e Linguística aplicada ao Ensino. Finalmente vou descobrir o que é esse negócio de Linguística. Assim que eu descobrir prometo que volto aqui pra contar...

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19 DE AGOSTO

Quando nos propomos a ler e estudar, devemos tomar muito cuidado para não nos tornarmos aquele tipo insuportável, o “amante dos livros”. Aquele andróide gerado das faculdades de Letras que só fala de livros e que adora indistintamente e sem reservas todos e qualquer um dos cânones: Pessoa, Proust, Drummond, Kafka, Machado, Clarice, Joyce, Saramago...tudo no mesmo saco. Aquele tipo não atraente e que às vezes compartilha no Facebook ou no Instagram a frase famosa creditada a certo autor, fotos da recém-chegada encomenda da Amazon, ou ainda a já clássica foto do livro aberto sobre coxas nuas na rede. Alguns vão mais longe e compartilham nas suas redes uma imagem de baixa resolução de um livro aberto, voando feito um anjo com suas asas feitas de páginas e, às vezes, sobre uma inscrição do tipo “quem lê, viaja” ou “plante livros e colha leitores”, ou algo do gênero...Por mais analfabetos que sejamos aqui no Brasil nós não precisamos desse tipo que planta pedantismo e só colhe preconceito fundamentado contra os intelectuais. Não sejamos especialistas em literatura, sejamos leitores discretos, por favor.

Por outro lado, sei que é difícil não nos tornarmos um tipo assim, mesmo porque a leitura como hábito nos incute algum nível de adoração ao objeto-livro que é natural. Seria-a necessária também? Eu, quando compro um livro novo, confesso que sinto vontade de tirar uma foto dele e mostrar pra galera, mas eu luto contra vontade e não faço.

E caso sua ambição seja a de ser um escritor profissional, ou um digital influencer sobre literatura, ou algo assim, você vai, obrigatoriamente flertar com esse mundo de culto dos objetos externos da Literatura. Talvez um bom jeito de não se tornar esse tipo pedante e cortar essa pulsão em sua origem é cultivar a leitura como um hábito sob a sombra de outro ofício, de preferência manual, e que realmente te dê dinheiro. Isto é, não depender da indústria de livros ou de Letras para seu sustento ou sua realização pessoal. Nesse caso, quem tá certo mesmo é o Osman Lins que era filho de sapateiro e que antes das Letras, ganhou a vida como bibliotecário; Sobre ser escritor, dizia ele: “os ofícios manuais, cuja variedade é inumerável e que a nossa formação, ao contrário, repudia como indignos do intelectual, seriam exatamente os mais apropriados”.

28 DE AGOSTO

Por mais que me esforce em parecer como o Rei no tabuleiro de xadrez que está ali sereno, impassível, mas que consegue ser austero e enérgico somente quando lhe a exige a situação, a realidade prova mais uma vez que estou mais é pra peão mermo e quem tem toma as decisões em meu nome é Laís, a Rainha. Prova disso aconteceu hoje, enquanto estávamos eu e ela a caminho do aeroporto de Maceió. Saímos de casa às 13h para pegar um vôo para Belo Horizonte que sairia às 14h55: ou seja, um horário adequado, mas sem muita folga. Aparentemente estava tudo certo, mas o destino nos pregaria uma peça na forma de um protesto que nos deixou plantados na Fernandes Lima. Famílias espalhadas em vários pontos da cidade pediam a retomada das visitas e entregas de alimentos nos presídios que haviam sido interrompidas desde o início do coronavírus. Justo, mas quem conhece a Fernandes Lima sabe que ela já não anda em dias normais, não obstante, além do protesto, havia também uma dessas intermináveis obras para a construção de um viaduto inútil. Enfim, caos, caos, caos. Ao poucos, o nosso horário, antes adequado, agora derretia enquanto o aplicativo do motorista esticava perigosamente a estimativa de chegada: 14h15, 14h20 e finalmente 14h30. Meu coração acelerou e de repente estava pondo e tirando a máscara sem motivo. Do meu lado, Laís olhava hipnotizada pela janela do passageiro: trânsito parado, barricada de policiais mascarados e um ônibus disposto obscenamente de través, tentando pegar um desvio pela direita que era disputado por carros que atalhavam pela calçada. É assim, basta o menor sinal de calamidade e as pessoas começam a dirigir como se fugissem de uma invasão alienígena. Estávamos ferrados e o sol quente implorava por uma decisão. Laís perguntou ao motorista:

-- Moço, cê acha que dá tempo de chegar no aeroporto?
-- Num sei.
-- Vamos ter que pegar um moto-táxi - disse ela pra si mesma.
-- Como assim, moto-táxi? com mala pesada e mochila pra levar nas costas? Sem chance. Às vezes dá tempo ou o vôo atrasa...
Sem dar bola pro que eu falei, Laís desceu do carro:
-- olha outro ali ó, Ô MOTO TÁXI!

Por sorte, o primeiro motorista veio acompanhado de um segundo, do jeito que a gente precisava: dois moto-táxis com o mesmo colete de cooperativa. Era o sinal, desci do carro. Entrei na onda e perguntei ao primeiro motorista, tentando ganhar protagonismo:

-- Quanto fica daqui pro aeroporto?
--Hmm, quarenta.
-- Não dá.
-- Trinta.
-- Bora.

E assim nos acomodamos nas duas garupas com as malas e as mochilas. Quanto ao motorista do aplicativo, ele nos garantiu que ia terminaria a viagem naquele momento: “fecho sim”. Mais tarde descobrimos que ele não tinha fechado. Partimos. Duas motos cortando tudo e todos pelo trânsito. E se o meu sogro soubesse que eu deixei a princesa dele montada naquela moto suja, respirando o bafo dos ônibus e de caminhões cegonha, ele nunca mais olhava na minha cara, certeza. Mas não tinha mais jeito, tava na mão de Deus. Ganhamos de novo a Fernandes Lima, agora livres do engarrafamento; olhei pra trás e vi que Laís estava sorrindo através do capacete, aparentemente a viagem estava salva. Voamos. Pelo caminho eu vi a UFAL, o Hospital Universitário, a entrada do presídio, escolas, muitas auto-peças, alguns sacolões e galetos na calçada. Quando se está na avenida aberta, andar de moto é muito prazeroso, dá até vontade de tirar carteira uma um dia. Olhei pra trás novamente, Laís estava bem longe. De novo, só Deus toma conta. Mais tarde, meu motorista precisou parar num posto de gasolina. Davam 14h10 no relógio, era tempo de sobra. O nosso amigo deu à frentista duas notas amassadas de dois reais. Perdemos definitivamente da outra moto.

Com o tempo, as escolas, os sacolões, os pontos de ônibus, os ambulantes rareavam e o mato se repetia cada vez mais na paisagem em movimento. Mas só fui mesmo me atentar quando vi uma placa “Murici - 30km”:

-- Amigo, o aeroporto tá chegando?
-- Aeroporto?... passou, né?

Moro em Maceió há uns três anos mas até hoje não sei exatamente qual é o entroncamento que divide Rio Largo do aeroporto. Confesso que não me lembro de ter dito ao meu moto-táxi qual era o meu destino, mas, puta que pariu! quem é que dirige à esmo sem saber onde se está indo? E que moto-táxi de araque é esse que não sabe onde fica o aeroporto? Não tem nada na região além do aeroporto. Coitado do motorista...ou ele era surdo, ou tímido ou lerdinho. Talvez nós dois éramos uma das três coisas... Perguntei pra tudo que era gente como chegava no aeroporto. Um homem sem camisa nos disse que era pra voltar, que a gente tinha passado, e muito. Faltavam 15 minutos e a gente começou a voar de verdade no sentido contrário. Enquanto isso, Laís me ligava sem parar de números diferentes. Tentava respondê-la em alta velocidade. Pelo menos ela estava viva, talvez ela achasse que eu estava morto. A viagem que era certa estava prestes a ir pras cucuias de novo. E se não fosse a ajuda de uma moça com uma sombrinha e de mãos dadas com um barrigudinho, a gente não ia achar a tal entrada.

Faltando cinco minutos para a decolagem, chegamos ao saguão do Zumbi dos Palmares, de onde a gesticulava a silhueta de duas mulheres, Laís e uma atendente da Azul, felizes como nunca. O moto-táxi dela nos esperava também.

-- Passageiro remanescente acaba de chegar - disse a atendente em seu walkie talkie. -- gente, vamos agora!
-- Cícero, não dá tempo pra tirar dinheiro! -- disse Laís, enxugando as lágrimas -- Eu peguei o celular e o número da conta do meu moto-táxi, falta pegar o do seu!
-- Pois é, amigo...me passa o seu celular pr’eu te passar o dinheiro que gente tem que ir voando.
-- Num tenho celular.
-- E conta?
-- Também não.
(…)
-- Pode deixar que quando vocês passarem o dinheiro pra mim eu repasso pra ele de noite -- Sugeriu espertamente o motorista de Laís, sob o olhar de desconfiança do pobre coitado do meu motorista. Mas a decisão favoreceu a maioria, o que nos liberava para seguirmos nosso destino. Ainda vimos de longe os dois motoristas conversando e partindo um após o outro. Nem acreditamos quando sentamos nas poltronas do avião. Estávamos suados e eu, particularmente sujo e fedido, mesmo assim aceitei um sachezinho de lenço umedecido que salvava minha mãos do coronavírus. Fechamos os olhos e voamos...

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16 DE SETEMBRO

Não tem como esconder a verdade por muito tempo. Finalmente a minha família descobriu que eu estou sendo processado judicialmente pela queridíssima Fundação João Pinheiro a indenizar o Governo de Minas pelo dinheiro investido em meu ridículo curso superior de Administração Pública. Esse sapo vou ter que engolir à seco, não vai ter jeito. Só espero que esse processo sirva pelo menos para me aproximar do Danilo, meu irmão mais velho, e que tem me ajudado muito indicando um advogado para o meu caso.

18 DE SETEMBRO

Voltei ontem para a academia e hoje não estou conseguindo levantar meus braços acima da linha do peito. Mas isso não foi a coisa mais importante do meu dia.

Não tenho o costume de atender ligações com o DDD 11. Nada contra São Paulo, é que ninguém mais aguenta call center, que pra ser justo não vem só de São Paulo, mas de São Luís, Blumenau também... Mas não sei o que me deu naquele momento, parece que a minha conexão de internet só caiu para que eu atendesse o celular e o número onze-alguma coisa. E olha só, não era que era uma pessoa real mesmo? E não apenas uma pessoa qualquer, mas uma pessoa quase notória: -- Olá Cícero, aqui é Edson, editor da "É Realizações”!

Levantei da cadeira na hora. Nunca sei me portar ao telefone, muito menos com gente importante. Sempre que isso acontece eu não consigo ficar parado, tenho que circular pela sala. Cheguei a imaginar que a “É realizações” estava era me oferecendo uma promoção ou um desconto, mas sem dúvida, o editor chefe não se prestaria a tanto. No final das contas, o Edson, que se mostrou um cara muito simpático, queria era o contato da filha de Herberto Sales, Heloisa, e que eu tinha entrevistado um mês antes. Edson, que também é de Andaraí, quer publicar outros livros de Herberto e precisa da autorização da família. Tomara que lancem mesmo tudo, e se um dia vir numa prateleira esses livros, ficarei orgulhoso por ter contribuído, nem que seja por essa coisinha à toa, para que os romances de Herberto sejam menos esquecidos do que são hoje...

25 DE SETEMBRO

Tive acesso hoje ao processo administrativo que a Fundação João Pinheiro ergueu contra mim; um verdadeiro monumento de provas, um inquérito com mais de cem páginas onde consta tudo, absolutamente tudo sobre minha passagem naquele prédio assombrado. Ler o arquivo é como visitar um museu de fracassos; havia ali o meu histórico escolar, as matrículas nas disciplinas, os valores das bolsas mês a mês e ainda por cima, e isto foi o que mais me espantou, um dossiê com documentos que investigam minha vida após a faculdade, incluindo fotos de shows com a Lupe de Lupe em outras cidades, fotos pessoais extraídas de redes sociais que comprovam minha estadia em Maceió. É assustador.

26 DE SETEMBRO

Mais uma prova de que as Universidades estão se transformando em creches para adultos. Dessa vez foi a “tia” de Linguística I que nos pediu como trabalho que fizéssemos um jogral a respeito das dicotomias Saussurianas. Não entendi direito, mas felizmente, uma de minhas colegas virtuais fez o favor de esclarecer em mensagem à professora.

Olá, boa noite.
Agora me surgiram umas dúvidas:
Esse jogral seria como uma paródia? quando pegamos uma música e modificamos sua letra para falar de algum outro tema específico?
O trabalho deverá ser entregue em que formato: Seria vídeo/áudio? (Tendo a música e os integrantes do grupo cantando/recitando a nova letra?) ou seria em Word? (com a letra modificada e a música em questão sendo referenciada?)

Veja o que a tia respondeu:

Boa tarde (...), tudo bem com você?
Você vai pegar um trecho da música e vai trocar a letra da música pelas dicotomias saussurianas. Vou dar um exemplo pra você. A música escolhida é a Prepara de Anita

"Prepara que agora é a hora / Show das Poderosas / Que descem e rebolam/ Afrontam as fogosas (...) Agora vamos construir nossa atividade: Prepara que agora é a hora do show da diacronia / Que desce e rebola a sincronia (...)

Espero que tenha sanado sua dúvida.
Abraços virtuais!

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