Rubem Fonseca - do pior ao melhor romance

Quatro décadas de romances divertidos, ágeis e inteligentes também

Com tanta notícia louca por aí, pouca gente se lembra que 2020 marca também a derradeira despedida do velho Rubem desse nosso mundo prostituto, aos 94 anos. Nunca mais teremos outro romance como “Agosto”; nunca mais outro conto como “Feliz Ano Novo”. É triste, mas é a vida. Se servir de consolo, poderá Rubem se gabar no pós-vida de ter vencido a morte, pois ele sobrevive numa geração de aprendizes, hoje maduros, e que aprenderam a emular em seus próprios romances e roteiros para TV e cinema, as aventuras do submundo das capitais brasileiras capturadas pela primeira vez pelo escritor mineiro. Viverá também o velho Rubem na mente de cada novo leitor que ao ler “A Grande Arte” pela primeira vez, descobrirá com orgulho que é possível escrever em Português livros que não sejam apenas retóricos, mas divertidos, ágeis e inteligentes também.

E para facilitar o processo de redescoberta da bibliografia do mais novo cânone brasileiro, eis a minha contribuição: uma lista de todos os romances, do pior ao melhor, de acordo com critérios absolutamente pessoais. Espero que seja de serventia.

10º - MANDRAKE, A BÍBLIA E A BENGALA (2005)

Duas novelas complementares para quem se sentiu órfão de Mandrake, vinte e dois anos após “A Grande Arte”. Na primeira, o nosso detetive se vê em conflito de interesses com uma de suas amantes socialites e que estaria envolvida numa quadrilha especializada no roubo de livros raros. Na segunda, Mandrake é acusado (injustamente?) de matar o marido de outra amante socialite. É divertido, mas as curiosidades a respeito do incunábulo de Gutemberg não satisfazem a fome por novas informações em artes tão distintas quanto História, política, carnaval, alquimia, investigação forense, bruxaria e até rinha de galos a que Rubem Fonseca foi tão bem versado e que por tantos anos mimou seus leitores.

9º - O SEMINARISTA (2009)

Depois de uma longa carreira como assassino de aluguel, José se apaixona por Kristen e decide mudar de vida com um novo nome e uma nova identidade. Mas quando ele achava que estava fora, eles o puxam de volta!… José, “o especialista”, passa a ser perseguido por Ziff, um megaempresário envolvido com o tráfico de drogas e que acredita estar com o nosso ex-assassino um CD altamente comprometedor. De novo, a trama é competente como de praxe pra Rubem Fonseca, mas no final, são os elementos autobiográficos disfarçados de ficção que salvam o dia. Interessante notar como o memorialismo vai se tornando o elemento mais vigoroso nos últimos livros do velho Rubem.

8º - E DO MEIO DO MUNDO PROSTITUTO SÓ AMORES GUARDEI AO MEU CHARUTO (1997)

Romance que marca, ao meu ver, O início da fase madura dos romances de Rubem Fonseca. Não é ruim, mas o leitor contumaz pouco vai extrair desse romance-policial/ensaio-literário a não ser o seu formato original de se contar a história (que é toda construída através de depoimentos policiais) e outras máximas, algumas delas realmente edificantes, sobre a arte da escrita, sobre mulheres e charutos, extraídas da boca desse personagem engraçado mas um pouco abjeto pro meu gosto que é o Gustavo Flávio.

7º O DOENTE MOLIÈRE (2000)

Rubem Fonseca merece todo o crédito simplesmente por materializar em romance este empreendimento: o de reviver eventos que levaram ao possível envenenamento de um dos maiores dramaturgos da França, o satírico Molière; odiado pela Igreja, cercado de inimigos bajuladores e apenas tolerado por Luís XIV. Rubem Fonseca foi muito perspicaz em enxergar paralelos entre as tramas palacianas da França oitocentista e as da nossa política moderna; gostaria que ele tivesse continuado nesse caminho, creio que poderia ter escrito um livro inigualável da literatura brasileira. “O Doente Molière” foi uma maravilhosa ideia para um romance, mas que poderia ser muito mais aproveitada se tivesse o dobro ou o triplo de páginas. Uma pena.

6º - BUFO & SPALLANZANI (1986)

O médico e o monstro, ou o policial e o escritor? “Bufo & Sapallanzani” é um romance policial mais obscuro que “A Grande Arte”, divertido ainda, mas prejudicado pelas subtramas, criadas -- talvez? -- para satisfazer as pretensões artísticas do autor ou as de um público intelectualóide a que o Rubem Fonseca esperasse agradar. O melhor do Rubem Fonseca é a segurança com que ele constrói as suas investigações policiais e como ele as reveste com a familiaridade com que ele versa sobre a arte forense e a pesquisa em artes tão distintas quanto o ballet, a rinha de cães, a mutilação de animais. Mas em Bufo & Spallanzani, o policial não se deu bem com o artista. E o resultado foi uma história que mais parece um experimento científico, uma colagem de partes diferentes de ideias que não foram feitas para estarem juntas. A subtrama, que, recoloca o personagem principal num espécie de retiro de férias e que me lembra vagamente o Motel Bates, me parece totalmente deslocada do foco original do romance, por exemplo. Rubem Fonseca tem tantas boas ideias, tantas possibilidades para onde levar a história, que se perde na hora de fazer escolhas. No penúltimo capítulo, o narrador onisciente -- que por sua vez é um memorialista, numa vaguíssima referência a Brás Cubas -- faz uma confissão de todos esses crimes literários, da dificuldade de se terminar as tramas iniciadas. Falando assim, parece até que eu detestei B&S, mas não é isso. O livro é bom, só é bagunçado. Leia você mesmo.

5º - O CASO MOREL (1973)

Alguns podem até achar que “O Caso Morel”, o primeiro romance de Rubem Fonseca, não merecia estar na lista de melhores. De fato é um das tramas mais simples, mas, me perdoem, é uma das mais deliciosas dele também, e um exemplo perfeito sobre como Rubem Fonseca às vezes flerta perigosamente com a pornochanchada sem nunca cair na banalidade, sem nunca perder totalmente a classe. O jornalista Vilela havia se comprometido a transformar em livro o caso do publicitário Paul Morel, um bon vivant carioca acusado de matar Heloísa, uma das 4 mulheres as quais Morel havia trazido para seu apartamento, convencendo-as a tolerarem entre si, como num harém moderno. As cenas de sexo são muito bem descritas, há bons relatos sobre o bastidores das festinhas badaladas no Rio de Janeiro, mas, principalmente, Rubem Fonseca consegue dar um ar de respeitabilidade e até de beleza inocente à devassidão que era a vida de Morel. Às vezes as ideias mais simples são as mais eficientes.

4º - A GRANDE ARTE (1983)

Dez anos depois de “O Caso Morel” somos apresentados ao sedutor advogado -- e detetive nas horas vagas -- Mandrake em “A Grande Arte”, um romance muito mais ambicioso que o anterior. “A Grande Arte” é tudo aquilo que se espera de uma história policial, atualizada com os nomes e os cenários brasileiros; a trama viaja pelo Rio, em Itaipava, pelo interior de Minas, pela Bolívia e em São Paulo. (Não sei quanto a vocês, mas eu adoro isso!). A única coisa que Rubem Fonseca talvez não tenha conseguido abrasileirar são os diálogos que a mim parecem, se não mal inseridos, pouco brasileiros, escrito naquele português que parece traduzido de legendas de filmes americanos. Mas até esse defeito acaba funcionando em favor do romance pois, uma vez que a linguagem não chama a nossa atenção, estamos livres para visualizar a história. Para além desse defeito, Rubem Fonseca nos mostra três outras qualidades. A primeira delas (e que dentro da literatura brasileira se torna mais valiosa ainda) é a de não ser excessivamente retórico, e nem psicologicamente gratuito ao justificar os atos dos seus personagens. Outra qualidade é o bom senso na hora de mostrar ao leitor suas referências, sem abusar do name-dropping. Rubem Fonseca também detesta desperdiçar o tempo do leitor e por isso, ele profere golpes certos, que nos acertam sempre na artéria certa. O leitor se diverte, aprende e agradece. “A Grande Arte” é isto: uma história policial bem executada e divertida. Perfeita para um jovem adulto que quer fazer a transição dos filmes pros livros.

3º - VASTAS EMOÇÕES E PENSAMENTOS IMPERFEITOS (1988)

Não custa nada sonhar. Na verdade, muitos dos enredos de Rubem Fonseca surgem de sonhos profissionais irrealizáveis, e por isso mesmo, bonitos. Ou vem dizer que é possível que um cineasta brasileiro -- mundialmente conhecido por um filme sobre a guerra de Canudos -- seja contratado para dirigir um épico de guerra na Alemanha? Difícil, mas não impossível. Mas não pára por aí, o nosso personagem é convencido a executar um ato de espionagem e resgatar na fronteira entre as duas Alemanhas, um manuscrito inédito de Bábel. Nesse ínterim ele arranja tempo para romances-relâmpagos com uma jovem prostituta, a amiga dela, uma assitente de produção alemã e uma ex-miss Curvelo. De novo, custa nada sonhar...“Vastas Emoções” felizmente resgatou a dimensão logística que começou em” A Grande Arte” e encontrou uma solução para o problema do narrador onisciente do livro anterior, Bufo & Spallanzani: escreveu tudo em primeiro pessoa, e pronto, não inventou uma desculpa de referência machadiana. Há claro, momentos de discussões intelectualóides sobre os limites entre a literatura e o cinema (e que devem ter gerado muita tese universitária por aí) e que, se às vezes são exibidas gratuitamente para nós, nunca deixam de ser interessantes graças à inteligência e ao bom senso do escritor. Diferente de “Bufo”, a substória de “Vastas Emoções…” é muito mais divertida e, o que é novidade, consegue alcançar um nível de humanismo até então inédito. É uma pena que este não seja um dos livros mais famosos de Rubem.

2º - AGOSTO (1990)

O que levou o nosso Rubem a remexer o cadáver do velho Vargas em “Agosto”? Tenho aqui minhas hipóteses. E a mais edificante delas é a de que após de quatro romances e outra pancada de contos muito bem executados e que provaram de vez seu valor, o Rubem Fonseca de 65 anos almejava à imortalidade. Para isso, era preciso dar um passo além e aventurar-se na investigação de um evento relevante para todos nós, vivo ainda no imaginário popular. Se fosse bem sucedido, Rubem Fonseca poderia ser alçado à categoria dos grandes romancistas que, em sua fase de maturidade, escrevem não mais para si, mas para seus pares, e deixam uma contribuição definitiva para a história e a cultura do seu povo.

Outra hipótese plausível seria a curiosidade de investigar as origens da contravenção, no Rio de Janeiro e no Brasil. Nesses últimos anos, Rubem Fonseca talvez não tivesse estômago para rastrear a megalomania de corrupção que viria a surgir nos governos petistas. Mas, em sua intuição de escritor, ele sabia que o nível de corrupção e criminalidade dos anos 70 e 80, e a que ele tão competentemente deu vida em suas histórias, só poderiam ter sido alcançado por um longo e lento processo de decréscimo geral da moralidade brasileira e que tivesse atingido por igual a vida pública e os costumes. “Agosto” seria portanto, uma investigação das origens da decadência brasileira e que estaria diretamente ligada, como numa relação de causa ou efeito, à atual violência do narcotráfico e que mata 50.000 pessoas todo o ano.

A terceira hipótese, menos edificante que as duas primeiras, seria a de que, ao reconstituir a morte de Vargas, Fonseca teria à disposição um final tragicamente perfeito que o eximiria da difícil tarefa de imaginar um final à altura dos acontecimentos reais de 1954. Num crescendo tão dramático como o dos dias que seguram o atentado da rua Toneleiros, bastaria “apenas” um escritor competente, com imaginação literária, disciplina investigativa e conhecimento sólido nas artes forenses para criar uma história que pudesse entreter ao mesmo tempo que convencer o leitor de sua veracidade. Seja qual hipótese a mais justa para explicar o nascimento da obra de arte, o fato é que a intenção foi acertadíssima, “Agosto” é um romance policial e político que flerta a grandeza histórica. Divertido e didático.

1º O SELVAGEM DA ÓPERA (1994)

Na noite de 2 de dezembro de 1870, o Teatro Lírico Fluminense estremecia com os gritos de uma plateia ensandecida quando da estreia de “O Guarani”. A maioria deles saudava o autor: “Viva Carlos Gomes!”. oa bajuladores de sempre saudavam D. Pedro, o mecenas por trás do artista: “Viva o Imperador!” e, outro menos, bem menos na verdade, lembravam timidamente do escritor: “Viva José de Alencar!...”

Rubem Fonseca, que é escritor e não músico nem político, sabia que vivia de um ofício ingrato e que lhe ofereceria poucas chances de gozar de alguma glória em vida. Ele também sabia que somente grandes homens dão bons escritores. Somente aqueles que não mais almejam a riqueza, nem a bajulação de seus pares e não mais se importam com o ruído da mídia, podem altruisticamente dar forma a personagens, amá-los e criá-los como se criam os filhos, sacrificando-lhes toda a glória que os pais-escritores não tiveram em vida.

A criatura em questão é Carlos Gomes, o maestro que levou a ópera brasileira ao mundo; e que na imaginação de Rubem Fonseca se torna o herói selvagem, mulato como Mandrake, caprichoso como todo gênio,dono de um charme exótico e irresistível para as mulheres. Ainda que sua estadia na Itália o deixasse alheio aos grandes acontecimentos que mudariam para sempre o Brasil -- a Guerra do Paraguai, a Abolição e a Proclamação da República -- a vida ingrata de artista brasileiro que Carlos Gomes levou se confundiu tristemente com a alvorada do Império, uma época em que o Brasil alcançou com a ajuda de D. Pedro II, amante das Artes e dos artistas, respeito único no mundo civilizado. “O Selvagem da Ópera” é um arco sobre a vida de um artista, algo literariamente inédito na literatura brasileira, e que não apenas expurga a alma de Carlos Gomes mas resgata esse pedaço esquecido de Glória das Artes brasileiras. Por tudo isso "O Selvagem da Ópera" é o romance (se é que o possa ser chamado assim) mais belo de Rubem Fonseca.

link Na década de 1970, Rubem Fonseca e Zuenir Ventura de bicicleta. (Foto: Zeca Fonseca)