Outubro a Dezembro de 2020

Se ao menos todo dia fosse glorioso como este!

03 DE OUTUBRO

Se ao menos todo dia fosse glorioso como este! Terminadas as aulas da manhã de sábado, fomos Laís e eu almoçar no “Odara”, o restaurante de comida baiana de uma amiga nossa, a Mariana. No menu do Odara, acarajé e vatapá de entrada, ragú e arroz com salada como prato principal e rocambole de café como sobremesa. Depois de matar nossa fome, nossa amiga nos mataria a curiosidade de espectadores de Masterchef com algumas histórias sobre o mundo louco da culinária profissional. Duas da tarde e Laís estenderia a farra com amigos, mas eu preferi usar a tarde livre para me saldar a dívida do sono atrasado. Dormi um sono intranquilo e acordei a tempo de umas leituras inúteis para a faculdade. Já de noitinha, dei uma arrumada na casa, corri 5 quilômetros pela orla de Ponta Verde, cujo mar arfava sob o feitiço da lua cheia daquela noite. De volta pra casa, tomei um banho e apanhei novamente a minha gata pra irmos ao nosso churrasquinho preferido, o Senhor Brasa. Na volta, compramos umas Budweisers no Palato e assistimos ao filme “American Sniper”. Fizemos amor de janela aberta, vendo e ouvindo a arruaça de adolescentes que voltavam de um Luau. Laís capotou de sono mas eu ficaria ainda algum tempo no sofá, alisando o pêlo da Pipoca, esperando o efeito relaxante do Dramin se alastrar pelo corpo, pensando sobre a decadência do Ocidente até o crepúsculo da manhã de domingo preenchesse completamente a sala.

04 DE OUTUBRO

Hoje foi o aniversário do meu sogro, seu Edmo, e de uma das tias dele, a tia Ana, que por sua vez é casada com o tio Maurício -- compondo, assim, parte da família de Laís que vem de Delmiro Gouveia, todos eles muito gente-boa. As comemorações se deram no salão de festas do apartamento da tia Ana e tio Maurício em Jacarecica, aqui em Maceió. Na entrada do condomínio, os carros adesivados não nos deixavam esquecer que estamos a pouco mais de um mês da eleição municipal. Na portaria do prédio havia também um totem de álcool-gel, a mais nova moda da política politicamente correta pós-covid e que surpreendentemente pode servir como santinho. Lá dentro, um buffet com salgadinho, docinho e bolo. Todos esses mimos não estavam ali por acaso, estávamos diante de um comício travestido de festinha.

É sempre engraçado ouvir as histórias de como a família da Laís às vezes se estranhava em épocas de eleição. O racha surgia quando certo candidato vitorioso trazia até os cargos da prefeitura ou do governo do estado a parcela da família Cavalcanti que lhe prestou apoio e fidelidade eleitoral. A parcela excluída era obrigada a amargar no mínimo quatro anos de provocações veladas, mas que em festas de família podia se transformar em violência, dependendo do nível de cerveja no sangue. Ouvi dizer que houve certa vez até ameaçaa mão armada durante uma festa de família na AABB. Felizmente, ninguém saiu ferido.

Por mais que sejam idosos hoje em dia e tenham perdido um pouco a sanha pelos cargos, ainda há um espaço para a politicagem dos tempos áureos. A certa altura da festa, nos chega o rosto por trás dos adesivos cor de rosa, Cláudia Petuba do PCdoB. A Petuba, que a mim me pareceu uma versão jovem e atraente da ex-candidata à presidência Heloísa Helena, era contemporânea de Laís do movimento estudantil na UFAL, e como toda boa comunista, fez carreira na pasta de esporte e juventude. Hoje Cláudia Petuba é candidata a vereadora em Maceió e estava terminando a agenda de visitas da noite ali com a gente.

Enquanto tio Maurício conectava o microfone ao amplificador Staner, o pequeno Miguel, aproveitando de um momento de descuido, acusou: “O tio Maurício, pei-dou!” . Tio Maurício tomou-lhe violentamente o microfone e dispersou a criançada, nos deixando livres para conhecer a sua candidata.

O que não se faz pra ser eleito, né? Cláudia Petuba se mostrou bem esforçada e misturou seu discurso político com um pouco da própria história de vida. Falou sobre o seu trabalho com os jovens da periferia de Maceió, da sua passagem como gestora do estádio Rei Pelé, e ainda, fez algumas piadas de cunho feminista, para agradar não sei a quem exatamente. Ao final de seu discurso, cheguei à conclusão que o político médio no Brasil normalmente tenta equalizar, nem sempre de forma coesa, um pouco de progressismo de esquerda (afinal de contas as pessoas querem ouvir ainda que os pobres são os mais afetados pelas crises, que o grande problema do Brasil é a desigualdade de renda). Ao mesmo tempo, é sempre bom para o político médio, conciliar a preocupação social com certo gosto pela modernidade e eficiência da gestão pública, normalmente sobre a forma de catracas eletrônicas, pontos eletrônicos, processos digitalizados e reforma dos prédios da burocracia, essas coisas; e, se possível, o político médio deve fazer algum populismo com os servidores públicos, prometendo-lhes aumentos ou pelo menos compartilhando certa preocupação demandas de algumas categorias (mesmo que essa não seja a alçada do postulante).

No final, todo mundo gostou do discurso meio esquerdista, meio tecnocrático da jovem candidata de 32 anos que tem um futuro brilhante na burocracia. Tio Maurício saiu orgulhoso de sua pupila, e lentamente o clima de festa foi se resgatando. Acho que vi até a nossa candidata tomar um copinho de cerveja. De qualquer forma, a festa foi um sucesso, cantamos os parabéns e todo mundo saiu dali "petubeiro''.

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23 DE OUTUBRO

Está decidido, eu não volto mais a dar aula de Inglês. Nosso Renanzêra decretou hoje às 17h que as aulas presenciais para adultos estão liberadas em Alagoas, para alívio dos donos das escolas (particulares). Isso quer dizer que daqui a pouco chega pelo Whatsapp aquele recadinho da direção marcando a data para volta dos funcionários. Mas falta pouco pro final do ano letivo e acho que dá pra enrolar até dezembro com as aulas online, pelo menos até sacar o décimo-terceiro. Mas agora: voltar, voltar, voltar...batendo ponto, usando uniforme e a coisa toda, nem fodendo! Nem que eu passe fome e me prostitua por dinheiro...Nem fodendo!

29 DE OUTUBRO

Que fique registrado: hoje, um moleque tunisino de 21 anos decapitou uma senhora e matou mais duas pessoas, uma delas brasileira, na basílica de Notre Dame em Nice. Semana passada, também na França, outro moleque de dezoito, irritado com desenhos mostrados em sala de aula e que pra ele ofendiam Maomé, decapitou o próprio professor. Todas as nossas orações para a França hoje!

31 DE OUTUBRO

Essa história de estudar design novamente tem me forçado a lançar luz sobre fatos esquecidos de minha vida em Belo Horizonte, dos tempos em que estudava Comunicação Social na UFMG. Imaginei que agora seria a hora certa de escrever sobre eles, para que assim, como numa terapia solitária pela palavra, eu consiga passar a limpo as minhas ações e separar o joio do trigo, avaliando o quanto ficou do tempo em que eu, perdido, batia cabeça, fazendo besteira até virar adulto de verdade. Que minhas lembranças sirvam para aqueles que eu decepcionei ou abandonei pelo caminho como um pedido de desculpas; e para mim, que tenha a força de uma confissão de alma, sussurrada silenciosamente em direção ao nada.

(...)

Um mês antes da minha viagem libertadora de Uberlândia para Belo Horizonte, tinha visto um anúncio no Orkut de uma vaga numa república “próxima à UFMG”, mais precisamente rua Viseu, número 1026, apartamento 10, no bairro do São Francisco; pelo um preço módico de R$245 ao mês. O preço me pareceu justo e o acordo fora fechado com uma tal de Lilian, a senhoria da pensão. Na noite da véspera da minha viagem, meu pai (que há muitos anos tinha se separado da minha mãe) tinha organizado um get together na casa dele. Foi uma festa imersa num clima esquisito de celebração e despedida e, mais próximo ao final da noite, quando alguém o lembrou que eu estaria deixando Uberlândia de vez, flagrei meu pai num momento raro de emoção no qual o homem chegou a chorar. Por mais que me esforçasse, eu não conseguia compartilhar aquela emoção, estava eufórico para ir embora o mais rápido possível, e largar aquela cidade onde vivia sempre sobre o teto e a vigilância velada e mesmo assim omnisciente de minha mãe. Uma vigilância carinhosa mas que me impedia de viver a dose de libertinagem que eu tanto buscava na vida. Minha mãe, ao contrário de meu pai, soube lidar tudo com frieza e me levou ao aeroporto séria e decidida, afinal, para ela, é preferível que todos os filhos saíssem de casa aos dezoito anos. Nada desse negócio de ficar encostado em casa. E se ela chorou ao me ver embarcar no avião rumo à BH ninguém nunca soube, porque Dona Cleides sabe ser forte quando precisa...Nisso tenho muito a agradecer a ela, nunca falou nada contra nenhuma de minhas decisões. Ela sempre apoiou qualquer coisa que eu e meus irmãos decidíssemos para nossas próprias vidas.

A viagem de ida para Belo Horizonte foi uma das coisas mais emocionantes que eu já fiz. Foi ali que descobri uma das coisas que eu mais gosto de fazer que é viajar sozinho, ou estar sozinho num ônibus ou num avião em movimento. Lembro-me de ter me emocionado ao ver a pista de asfalto correr por trás das janelas oblongas do avião. Mentalmente estava tocando algum sucesso indie no sistema de som da minha cabeça, provavelmente “Marching Bands of Manhattan". Chorei provavelmente por todos os cinquenta minutos que antecederam ao pouso no aeroporto de Confins.

Há de se fazer uma concessão à putaria que foi os governos Lula, alguma lambança eles fizeram para que as passagens de avião fossem baratas. E elas realmente foram. Lembro que nos idos do ano de 2007 foi quando começaram a vender passagens de avião baratíssimas, nos horários mais bizarros imagináveis. Era possível comprar uma passagem de Uberlândia para BH por cinquenta reais que partia às 3:45 da manhã. E foi o que eu fiz. O problema é que precisava esperar no aeroporto até às oito da manhã, que é quando os ônibus até a cidade começam a rodar. Para passar o tempo, tinha em mãos o livro “O Jogador” do Dostoiévski, edição da L&PM Pocket, mas mais produtivo seria ter em mãos um livro de piadas do Ary Toledo, algo mais compatível com minha idade mental.

Ficar sozinho numa grande estrutura de concreto, fria, vazia como um aeroporto de madrugada, pode deixá-lo comovido como o diabo. A madrugada de Belo Horizonte, aprendi, pode ser muito fria e, especialmente no aeroporto de Confins, o vento frio invadia por todos os lados e ajudava a compor o cenário de desolação. Lembro que em algum momento eu deitei sobre o chão gelado do aeroporto. Lembro também de ter chorado vendo as lâmpadas fluorescentes enfileiradas formando duas linhas que apontavam para um ponto de fuga no meio da madrugada. Estava finalmente feliz.

Para quem havia vivido a vida inteira numa cidade organizada e de ruas retas como Uberlândia era, Belo Horizonte me parecia um dos lugares mais feios do mundo. Antes de deixar Uberlândia, muitas pessoas me advertiram que BH fedia a mijo no centro, e que o povo era muito feio. Descobriria depois que as pessoas falam de tudo para te impedir de fazer as coisas. Mesmo assim, os invejosos não estariam totalmente errados. É impossível não se amedrontar com o cenário pós apocalíptico que se apresenta aos olhos virgens do viajante quando o ônibus se aproxima da entrada da rodoviária de BH. Só conseguia enxergar as opressoras vigas de concreto sujo, e nos arredores da rodoviária, os botecos 24 horas e as pousadas baratas, onde vagabundos e ladrões convivem em harmonia com trabalhadores da noite em final de expediente. A partir daquele dia, aquela cidade seria o meu lar.

Próximo à garagem da rodoviária encontrei Lilian, a simpática dona da pensão em que ficaria. Lilian era uma mulher de uns quarenta e cinco anos, madura e bonita. Ela me levou gentilmente no seu Fiat Uno prata até o bairro do São Francisco onde ficava a pensão. Tudo aconteceu tão rápido que nem deu pra sentir o que me acontecia, todo o cenário urbano era muito feio, mas excitante de uma forma esquisita.

-- Aqui tem muito boteco copo sujo, Cícero.
-- Boteco copo sujo? acho que eu já ouvi falar desse...
-- Ha ha ha ha! Ai ai... num tem nenhum boteco “Copo Sujo”, não. Todos os botecos são copos sujos. Mas olha só, tá tendo uma festa lá em casa, minha irmã tem um buffet e a gente tá terminando de beber o que sobrou de um casamento. Seus amigos que vão morar com você tão tudo lá. Bora? Você bebe?
-- Tá, sim sim. Eu acho que a cidade é tão grande que eu nunca vou saber como é que anda por aqui.
-- Você aprende, eu vou deixar você na porta e você sobe, deixa a mala no seu quarto e vem.
-- Uhum. Aquilo ali é uma favela?

A pensão ficava numa construção muito esquisita, um portãozinho de grade que guardava um lance de escada que dava para uma vilazinha de segundo andar onde ficavam dez apartamentos, cinco de cada lado, cada um deles compostos de dois andares. Foi tudo tão rápido que não pude raciocinar sobre as condições do lugar em que moraria nos próximos meses. Até então não sabia que a pensão da Lilian na rua Viseu suportava, em média, 10 moradores, distribuídos em quatro quartos e dois banheiros, sendo que um dos banheiros esteve inutilizado por muito tempo. Chegamos à festa, e de cara, uma amiga da Lilian me abasteceu com cerveja e me olhou com um olhar malicioso. Já estava bêbado no segundo copo. Mais tarde conheci meus futuros colegas de pensão: Luís, rapaz de Bocaiúva no Norte de Minas, e Rogério, um japonês de Lajes, do interior de São Paulo. Havia também um cara lá, o Dino, um paraense metaleiro muito alto e que fazia mestrado em Física na UFMG. Dino era uma espécie de morador sênior que gozava de alguns privilégios adquiridos pela sua estadia de 10 anos recém completados: como ter o próprio lugar no sofá e comandar a programação na TV. No meu tempo de pensão, passariam ainda um intercambista colombiano, um carioca, um sergipano, um estudante de arte cênicas, e o pior deles, Paulinho, um sósia do cantor Leonardo, que tinha sido expulso da casa pela noiva e teve de buscar abrigo ali conosco.

Descobri dias depois que a moça que havia me abastecido com cerveja na festa chamava-se Flávia, amiga de longa data de Lilian e, por acaso, vizinha imediata da pensão onde estávamos. Flávia era uma coroa muito desbocada e, conforme Dino nos adiantou, tinha a mania de escolher um dentre a nova leva de calouros para traçar e chamar de seu. Flávia tinha uma malformação no braço esquerdo, que era mais fino que o direito; mesmo assim ela conseguia ser bonita, uma “morenona” com cara de ex-vedete. Hoje em dia digo sem medo: traçava. Mas aos dezoito anos eu era o cara mais impotente da face da terra, um virjão. Não saberia o que fazer com uma vedete daquelas.

Por acaso, Flávia também fazia a nossa faxina uma vez por semana. E num dos primeiros dias na pensão, fui acordado de manhã por uma música absurdamente alta. Que maluquice era aquela? Ainda deitado na beliche, reconheci uma voz de mulher sobreposta à do Akon:

“Nobody wants to see us together

But it don't matter, no...'cause I got you…”¹

Quando me virei, vi Luís e Rogério com cara de cemitério e com pressa para irem embora pra aula. Perguntei pro Luís que porra de música era aquela. Luís ainda guardaria alguns segundos levando a mochila até as costas até aproximar-se de mim e dizer: “Se fudeu, a vizinha taí pra te comer”. E me deu dois tapinhas no ombro. Rogério continuou sério e juntos os dois me deixaram à sós com a vizinha e a minha sorte.

Percebi então a armadilha. Tinha que transar com Flávia sob pena de ser aniquilado pela opinião pública. Não havia como eu fingir de morto por muito tempo, mesmo porque não era possível alguém dormir com o volume daquela música. Era preciso pensar rápido e fazer algo: “Já que ela vai transar comigo, melhor que seja no quarto, não é? Assim que ela começasse a limpar a minha beliche, eu puxava ela e afogava ela num mar de muito carinho e nenhuma penetração”. Eu estava suando frio, e a situação estava ridícula, insustentável.

Num átimo de segundo me lancei até a cozinha e consegui vê-la, esfregando com luva e esponja o box do banheiro bom. Deu pra ver a bunda dela rapidinho. Meu coração tremia. Peguei meu pão doce e o besuntei com margarina. Engoli em seco a massa com iogurte. Isso, até que a morena apareceu na minha frente:

-- Se eu tiver fazendo barulho pode avisar! é Cícero o seu nome, né?
E lá estava ela, deusa descalça, apoiando o braço bom no batente da porta. Estava tudo à mostra: a calcinha branca, os bicos pretos dos peitos pequenos furando a camisola e uma poça molhada na altura do umbigo. Um belo corpo de meia idade.
-- Não, não. É Cícero sim. Mas eu já tinha que acordar mesmo...daqui a pouco tenho aula...eu ainda tenho que fazer uma chave porque os caras deixaram a porta aberta aí e eu…
-- Tenho um sobrinho que é a sua cara -- interrompeu Flávia -- a Lilian conheceu ele, depois eu te mostro a foto dele. Agora, olha só, preciso que você veja isso, entra aqui no banheiro rapidinho…
Ainda segurando o pãozinho, entrei no banheiro sentindo um misto de excitação e total terror. Entrei com Flávia no box do banheiro e tive a impressão que meu braço roçou o bico do peito dela.
-- Vocês vão ter que trocar o chuveiro, ele não tá nem esquentando direito e a pressão parece que tá baixa também. Olha só!
Flávia começou a girar a maçaneta esperando a minha reação enquanto a água do chuveiro caía sobre o azulejo. Percebi que Flávia me olhava fixamente, e foi com um carinho maternal com que ela me disse:
-- Não precisa ficar com vergonha não...
Foi a última coisa que eu ouvi ela dizer antes de voar ridiculamente porta afora, desesperado para ganhar a Antônio Carlos...

Tempos depois, Paulinho, o sósia do Leonardo, chegou uma noite bêbado na pensão, revoltado com a Flávia: “rapaz, você teve sorte de broxar com ela, ontem, fui mijar, e só saiu sangue”. A minha broxada e a gonorréia de Paulinho só serviram para unir a todos nós, mesmo Flávia riu da situação dias depois. Apesar da camaradagem, a pensão da Lilian não era um bom lugar para se passar o dia. Só me restava então ficar zanzando pela UFMG o dia inteiro, no período entre o almoço e a janta do bandejão. Se eu não fosse tão burro, tão retardado, se eu não fosse um feto anencéfalo e esticado aos dezoito anos poderia ter tirado muito mais proveito daquela Atenas mineira, daquelas bibliotecas enormes onde se encontrava de tudo. Mas não, tinha que ter feito tudo ao contrário...

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04 DE NOVEMBRO

Como é possível me sentir tão animado e guloso de vida e, ao mesmo tempo, sofrer com a vertigem do trabalho a ser feito? Nesse momento estou lendo os principais livros da bibliografia do curso de design gráfico da PUC-RJ (até agora li um) e ao mesmo tempo assistindo a um curso online de design gráfico da Alura -- que por sinal são muito práticos e bem feitos. Na hora do almoço, mais ou menos, vou à academia que é aqui do lado de casa e na volta, tento sempre fazer algum trabalho doméstico (lavar os pratos e varrer o chão). Ao longo dia devo encontrar tempo para ler casualmente, e ainda, ler os textos obrigatórios da licenciatura de Letras, o que busco fazer da forma mais rápida e indolor possível. Embora tenha comunicado hoje a minha saída da escola, as aulas de inglês se estenderão até o dia 19 de dezembro, e até lá elas me tomarão umas 5 horas diárias em média. Busco escrever alguma coisa ao longo da semana e bebo cerveja de quinta a domingo impreterivelmente. Fora isso, caiu sobre o meu colo uma nova meta urgente a qual devo cumprir até o dia primeiro de janeiro: compor três músicas pra Lupe de Lupe. Nunca compus nada na minha vida por vontade própria, e minha estreia será sob esse clima de pressão. É assim que a banda sempre funcionou sob a direção visionária do Vitor Brauer, apertando o carro velho para fazer ele cantar.

05 DE NOVEMBRO

Agora é oficial, querido Subsidiário. Estou estudando para me tornar um designer gráfico -- ou artista gráfico, ou apenas artista, ou qualquer profissão que me permita ser um freelancer. Das Letras a partir de agora fico somente com os livros e o hábito da leitura, porque a licenciatura em si, tirante algum bico aqui ou ali, não mais cogito como uma carreira séria. Não preciso pagar pra ver algo que eu sei que vai dar errado. Ser professor hoje em dia é algo que eu não desejaria para ninguém, a não ser que você seja uma mulher de meia idade e ame crianças, nesse caso, é preciso que você ensine num colégio privado bem restrito e para crianças civilizadíssimas. Aí tudo bem...

Dias atrás o ministro da educação do Bolsonaro -- cujo nome não vale a pena nem ser lembrado -- disse: “hoje, ser um professor é ter quase que uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa”. O pior é que o cara tá certo. O magistério de jovens foi se tornando uma profissão tão emburrecida e burocratizada pelo MEC e pelos pedagogos universitários que ela hoje funciona como uma espécie de primeiro emprego, um deflorador de mão de obra para pessoas que em sua maioria, não sabem o que querem da vida, e não conhecem seus próprios talentos; ou, como foi o meu caso, uma opção para quem precisava de um emprego rápido e não queria recorrer ao Call Center, ao McDonald’s ou ao varejo. Por outro lado, é ridículo que o ministro diga isso do alto do seu salário de trinta mil reais, fingindo ele não fazer parte agora do establishment, a máquina infernal do MEC que nos enterrou na cova que nós permitimos que fosse cavada.

Toda essa questão me lembra também de que estou prestes a terminar o segundo semestre de Letras na UPE, o semestre em que me prontifiquei a tentar entender um pouco sobre o que é Linguística e por que de ela tomar para si tantas horas-aula nos currículos da licenciatura de Letras. A monstruosidade abaixo apareceu na minha prova final de Linguística I, cuja maioria das questões foi basicamente extraída de concursos públicos disponíveis na internet:

Conforme o que foi estudado, pode-se afirmar que o Preconceito Linguístico é um tipo de:

Escolha uma:

a) Discriminação.
b) Imaturidade.
c) Exclusão Social.
d) Inclusão Social.
e) Preconceito Social.

Difícil escolher uma só, né? Isso porque o preconceito linguístico sempre me pareceu, antes de tudo, um problema de imaturidade, de gente que não sabe conviver com gente diferente delas mesmas ou do próprio grupo. Mesmo assim, se o preconceito linguístico é um preconceito social (conforme o gabarito oficial defende) falta definir de onde parte o preconceito e para onde ele se direciona, já que é possível ser preconceituoso com a linguagem coloquial da mesma forma que se pode ser preconceituoso com a língua culta...

Enfim, a verdade é que ainda não sei o que a Linguística é. Me parece ainda que nem mesmo os linguistas sabem exatamente qual o limite da própria área de atuação, o que não impede que professores universitários, ao ministrarem disciplinas de Linguística, passem para os alunos uma falsa impressão de tradição numa área de pesquisa que a mim me parece completamente nova e heterogênea. A impressão que fica, ao perceber a importância da Linguística nos currículos de licenciatura é que se trata de uma arte milenar, tão antiga como as próprias línguas, e cujo estudo merece mais atenção e prioridade do que a própria obtenção de cultura literária.

Há também, uma irritante e óbvia tentativa por parte de alguns professores de nos convencer a inverter a lógica de determinação entre língua falada e escrita. Ou seja, os estudos de Linguísticas têm como objeto preferencial a linguagem cotidiana, a conversa de boteco e a fala doméstica etc. criando assim, uma espécie de lógica computacional-científica para codificação da linguagem e que finalmente possa suplantar na base do tapetão a boa e velha lógica aristotélica, usada desde sempre para analisar textos escritos. Mas em relação a isso, faltam-me estudos mais aprofundados os quais deixarei para o próximo semestre.

Está claro pra mim que a ênfase exagerada em Linguística é mais uma das formas de se corromper uma mente universitária em formação através da memorização e internalização dos jargões técnicos (ofício compartilhado com as disciplinas da pedagogia e pela teoria literária). Todavia, o truque de mestre é que essa corrupção da mente do estudante não acontece no momento da adesão dos jargões desses três demônios: o da pedagogia, da linguística e da teoria literária -- na verdade, creio que nunca há adesão de fato: a adesão é apenas externa, no nível da palavra, já que a esmagadora maioria não me parece saber exatamente do que trata a própria especialidade e parece não conseguir ligar o signo ao seu significante. A corrupção se dá antes, no momento em que o aluno aceita estudar algo que vai contra ao próprio instinto de utilidade e fazer parte de uma comunidade que discute e cultua símbolos absolutamente vazios de conteúdos.

As disciplinas de Teoria Literária também tem a sua parcela de culpa em ser a última pá de cal na esperança d’um discente em extrair alguma cultura do curso de Letras. Lembro de ter ouvido o Lêdo Ivo dizer numa entrevista antiga da Globonews, que para ele não valia a pena ler qualquer livro de teoria literária. Na época que vi a entrevista, achei graça, hoje em dia acho que Lêdo Ivo está absolutamente certo. Não devemos ler nada de teoria antes de absorver pelo menos um “basicão” da literatura mundial. O que por si só já dá um trabalho do cão.

Não deixa de ser uma violência forçar um mal-alfabetizado a ler o que Bahktin escreveu sobre Dostoiévski (antes mesmo de essa pessoa ler o próprio Dostoiévski em comparação a outros romancistas) ou o famoso texto sobre dialogismo da Perrone-Moisés. Para essa semente de leitor prestes a ser abortada, as aulas de teoria literária serão apenas uma grande perda de tempo e de energia vital; afinal de contas, é desgastante decorar os termos para reproduzi-los mais tarde nas provas. Se o mal-alfabetizado conseguir passar nas provas ele terá sobrevivido à tortura e no segundo seguinte terá esquecido tudo, para o bem da integridade do seu mundo interno. Já para os leitores médios -- os que como eu que já leram um dostoiévskizinho aos 17 anos, um kafkazinho mal lido ali aos 18 e teve a pachorra de tentar engatar no “Ulisses” -- a teoria pode causar um mal até maior, porque ela aborta a inteligência de um feto universitário já em estágio avançado de gestação. A faculdade de Letras de forma geral funciona para os melhores mais capacitados como uma espécie de escola de etiqueta, onde em vez de cultura literária ele recebe em troca um treinamento em como dominar o linguajar da teoria literária que é basicamente o estilo obrigatório de quem quer subir na hierarquia das letras universitárias.

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24 DE NOVEMBRO

Resumo dos últimos acontecimentos desta semana:

  • Um grande amigo meu foi finalmente inocentado de um dos processos mais covardes de difamação que eu vi em minha vida. Graças a Deus ainda há um pouquinho de racionalidade na justiça brasileira e o pesadelo a que esse meu amigo tem vivido chegou finalmente ao seu fim.
  • Foi expedida hoje pelo competente advogado indicado por meu irmão a tal de Exceção de Pré-executividade que é basicamente um documento que aponta erros no processo de execução fiscal feito pela Fundação João Pinheiro contra mim. Se tudo der certo, o meu processo volta à sua fase inicial e eu terei a minha conta bancária liberada, assim como os R$570 que eles tomaram de mim. É preciso dar o primeiro passo e seja o que Deus quiser.
  • Luciano que é médico aqui em Maceió e um dos alunos da escola de idiomas em que trabalho (muito gente boa ele) me passou um verdadeiro pito na terça-feira de manhã ao me lembrar de que, desde que nos conhecemos há três anos, eu permaneci o mesmo, isto é, fico só falando de planos e não coloco nada em prática.
  • Na mesma terça-feira, tive uma conversa com meu chefe em que lhe revelei as razões da minha saída da escola e das minhas intenções de trabalhar por conta própria. Ele paternalmente tentou me dissuadir, dizendo que poderia até aumentar meu salário e me avisando sobre “como as coisas tão difíceis aí fora”. Mas já era...tá decidido, não vou voltar atrás.

30 DE NOVEMBRO

Segunda feira, noite de eclipse de lua cheia em gêmeos, e o que isso significa?...Não sei ao certo, só sei que esse foi um daqueles dias arrastados, de surpresas financeiras, envenenado pelas baixarias das brigas conjugais. Explico o que aconteceu. Pelo site do Serasa descobri que ainda me restava outra dívida a pagar (por que não me impressiono mais?). Desta vez é uma dívida de cartão de crédito do Bradesco de seis anos atrás, acumulada em R$1.130,00 e a que me prontifiquei a pagar em seis vezes de R$188,33. Até aí tudo bem. O problema foi que Laís disse que fui irresponsável em negociar a dívida sem consultá-la, que eu não penso no orçamento da casa e só penso em mim. Disse também que eu vivo como se eu morasse sozinho e que eu trato ela como se ela fosse mera empregada. Nesse momento já estava excitado por três canecas de café e desci o nível da discussão até a lama mais baixa: me explodi em palavrões e falei aquilo que nunca se pode dizer a sua namorada. Ficamos sem falar o restante do dia, esperando que o tempo se encarregasse de apagar a raiva do nosso coração.

19 DE DEZEMBRO

Quase um mês inteiro sem lhe escrever, meu diariozinho. Mas veja só você que mês curioso. Aqui estou eu em uma casa de praia em Ipióca cercado de amigos, todos eles diferentes entre si, todos eles queridos, ainda que eu nunca os tenha dito isso. Vejo Laís deslizando pelo salão, servindo a todos com comida, com atenção e não canso de achá-la linda e perfeita na sua vocação divina. Enquanto isso, lá em Minas minha primeira sobrinha “Aurora” nasce, ou se anuncia num mundo novo que muda a cada segundo. Tudo está perfeito e sagrado e mesmo assim eu me encontro deprimido. Não há lugar que me faça tão bem no mundo como na minha solidão. A solidão, a melancolia, ou seja lá o que for isso, é uma força vital, tão real, necessária e revigoradora quanto a luz do sol, quanto a própria alegria. Inspirado nesse clima, tentei escrever um versinho que talvez possa se transformar em uma música, quem sabe?

a solidão é onde eu moro

a solidão é de onde eu vim
e quiserem me procurar
lá estarei, sozinho

23 DE DEZEMBRO

Como é que se compõe uma música, hein? Tenho certeza que devem existir vários métodos. Há sem dúvida o método dos musicistas puros, que visualizam um pedaço de melodia ou harmonia na cabeça e conseguem dar forma ao som como se este fosse feito de argila. Para isso você precisa ser músico bruto mesmo, deve dominar a técnica, ter ouvido de tudo e respirar música... Há também a composição pela mensagem, daqueles que fazem a melodia se desdobrar diante da força do verso; como é do feitio (creio eu) dos maiores compositores de músicas populares -- Roberto Carlos, Chico Buarque, Odair José -- filão onde, sem dúvida, está o nosso Vitor Brauer.

São esses pensamentos que rondam a minha mente enquanto tento criar a base para a música “Coromandel”. Sem ter nada edificante pra dizer, só me resta montar um barracão de acordes para ali encher de clichês melódicos e lugares comuns o suficiente para passar uma ideia de unidade e enganar alguém por pouco mais de três minutos. É nesses momentos de desespero em que você usa seu Hard Drive, a sua memória afetiva de músicas que estão incrustadas no seu DNA. No meu caso, “Coromandel” é um plágio de umas três músicas do Bruce Springsteen: “Lonesome Day”, “Hungry Heart”, “Waitin’ on a Sunny Day”. Não creio que “Coromandel” fará sucesso a ponto de incomodar o Bruce, mas se um dia ele me processar, irei argumentar em júri que a culpa é dele por ter encontrado uma fórmula tão simples de compor músicas de arena. Vou argumentar também que sou um mero aprendiz da composição musical, e como todo aprendiz, devo começar do mais simples e, gradualmente, incorporar novos desafios para mim mesmo. Feito um pintor iniciante que começa por capturar a natureza imediatamente ao seu redor -- um vaso com flores, uma árvore ou uma cesta de frutas -- “Coromandel” é um primeiro trabalho de escola de um ginasiano da música popular feito à imagem e semelhança do mundo ao redor feito e com os instrumentos à sua disposição…

Imitar as notas musicais de alguém é algo que até um macaco pode fazer. Mas mal sabem as pessoas que as grandes músicas populares não são só melodia, e sim versos em formato de música. Grandes músicas populares são aquelas que dizem alguma coisa relevante para as pessoas. E ter algo a dizer é difícil, pois envolve a habilidade de se reconhecer e aceitar a verdade em toda a sua beleza e dor e ter a coragem para dizê-la às pessoas numa forma que seja bela. A junção disso tudo se dá no verso musical, a arte que, infelizmente, ainda não domino. Os versos de “Coromandel” são o estofo permitido pela melodia e não podem comunicar nada porque trabalham para ela. Assim que terminar essa música tentarei fazer o oposto: tentar extrair música de um verso pronto. Vamos ver no que dá.

27 DE DEZEMBRO

Acabei de terminar o que vai ser a base da música “Uberlândia” para a Lupe de Lupe. Musicalmente ela é um bolerinho rock inspirado pela minha recente descoberta dos artistas da chamada música brega, impulsionada pela leitura do livro “Eu não sou cachorro, não” de Paulo César Araújo. Impossível não se sentir enojado com a leitura do livro, não por causa do livro em si, mas pelas atitudes fascistas e covardes que os figurões da mídia musical impuseram a alguns dos artistas mais populares do Brasil: Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Dom e Ravel etc. Estes mesmos artistas reinaram em absoluto a lista dos mais vendidos no século passado. Nelson Gonçalves, por exemplo, é o segundo vendedor de LPs da história da indústria fonográfica, seguido apenas pelo Roberto Carlos, que por sua vez também tem seu pezinho na música popularesca. Não acredito que o ostracismo seja responsabilidade direta dos cantores da MPB (Caetano, Chico e Gil etc) tenho a impressão que isso é mesmo a sanha de gente da elite cultural: professores universitários, jornalistas da mídia impressa e TV. Nada é mais deprimente do que essa gente, os rabos de cometa que vivem de exploração política do cânone.

Enfim, voltando à música... “Uberlândia” é uma baladinha meio chatinha e a letra é uma homenagem a um antigo amor que abandonei de um jeito bem covarde: me mudei de cidade sem contar pra ela. Talvez um dia eu escreva um pouco mais sobre isso.

A letra ficou assim…

Não era um homem o homem que dormira por onze dias no seu apartamento,

era um ratinho que aprendera a fazer amor só recentemente
amor perdido, é um amor perdido que nunca sai do meu pensamento
amor perdido, é um amor perdido que ainda causa mui sofrimento

É o que eu digo: ninguém fez merda e viveu impunemente....

é impossível fazer check in no amor, o coração de uma mulher não é hotel fuleiro
amor perdido, é um amor perdido que nunca sai do meu pensamento
amor perdido, é um amor perdido que ainda causa mui sofrimento

E agora o céu de Uberlândia ficou cinza parecia até o centro de SP
Se até o Jesus da Rua Augusta perdoou, por que você não há de perdoar também?

É um mistério, mesmo sabendo que vaso quebrado não tem remendo
não inventaram máquina do tempo, a gente ainda submete ao feitiço d’um
amor perdido, é um amor perdido que nunca sai do meu pensamento
amor perdido, é um amor perdido que ainda causa mui sofrimento

Há dias na vida, que a gente pensa que não vai conseguir....uô, uô, uô
Há dias na vida, que é bem melhor deixar de tudo e fugir....uô, uô, uô
Amor perdido, é um amor perdido
Amor perdido, é um amor perdido
é por você que estou sofrendo...

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¹A música era “Don’t Matter”, do Akon, que junto com “What Comes Around...Goes Around” e “Umbrella”, disputavam o prêmio de música mais tocada do ano de 2007.