Capítulo 1 - "De Schola et Discipulī"

Primeiro capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

Feito um milagre, uma vitória definitiva da vontade humana contra as forças que nos empurram ao chão, isto é, a gravidade, o analfabetismo, mas, sobretudo, uma leseira imposta à alma sertaneja por um meloso sol à pino de uma opressora e luminosa sexta-feira de setembro; afirmava-se imponente a Escola Estadual Joaquim Saraiva: a fortaleza pedagógica erguida sobre todo um quarteirão no bairro Saraiva, em Uberlândia. Estamos próximos ao fim de uma manhã letiva, uma dentre as milhares desde a sua fundação, e as paredes cobertas de tinta branca e azul marinho desbotado do velho “Quim” arfam com o barulho e o movimento interno, fazendo suas vigas feito veias de aço e seus tijolos em vez de carne tremerem de febre, preparando o espírito geral para o espetáculo do parto diário dos filhos dos outros. O calor se multiplicava no asfalto com o bafo dos motores ligados, e a luz do sol em vinho, verde e prata, explodia na lataria dos Monzas, dos Pálios, dos Corsas e das vans na calçada oposta, enquanto os espaços vazios por entre os carros eram preenchidos pelas motos e bicicletas. Não havia leis de trânsito na volta para a casa.
Em frente à entrada da escola, disputavam a sombra de dois oitis imóveis um baleiro e uma pequena multidão de mães e empregadas domésticas, quase todas em blusa de algodão, jeans (ou shorts de lycra), chinelo de dedo ou sandália. Para matar o tempo antes do sinal, as companheiras de momento espiavam a movimentação dos seus filhos por entre as frestas do estreito portão de aço azul marinho.
Quem visse o pátio de fora acharia até que a Secretaria de Educação havia decretado um segundo recreio oficial, já que muitos dos alunos tinham escapado do bloqueio dos professores e ganhavam o pátio sem vigilância, camuflando-se por entre o público da educação física. Os meninos e meninas só não fugiam de vez para rua porque os muros laterais não eram tão baixos assim, e porque a mão pesada de Índio, o eterno zelador do Joaquim Saraiva, guardava a entrada principal feito um carcereiro.
— Num calor desse é difícil segurar esses meninos — acrescentou a voz de forte sotaque nortista — Olha a cara deles. Vlap! — Abriu o portão. — Chegam em casa tudo precisando de banho. Eu fico bobo de ver que tem uns ainda que vem pra escola de blusa de frio. Vlap! — Índio se postou de lado segurando o portão por entre as pernas.
— Ô Índio, vem cá. Se o menino tiver fazendo educação física a escola pode liberar mais cedo, não pode? — Perguntou-lhe uma das mães.
Índio, em sua idade indecifrável e seu corpo de criança velha, já vira de tudo nessa vida e estava por dentro de todas as técnicas possíveis para se escapar mais cedo de uma aula.
— Ô minha senhora, não faz isso comigo… Se a Teolinda me pegar fazendo uma coisa dessa ela me manda de volta pro meu Maranhão. (...) Imagina se acontece alguma coisa? Imagina se um menino desses sofre um acidente? Deus me livre, mas ia ser um auê danado. E aposto que vocês iam chegar dizendo: “mas ele não tinha que estar na escola?”, “onde táva o rapaz que fica no portão?” e "que escola é essa que não bota limite nos meninos?”
— Tem dó de nós, Índio. Tâmo derretendo aqui.
— Nossa senhora, nem me fala. É o, como é que chama?...efeito estufa. Cês não viram no Fantástico, não? Um dia ainda o plástico vai se retorcer na sombra. Se depender d’um sol desses, acho que vai mesmo. — Disse o zelador, lançando a isca para quem a mordesse.
— Acho que o dia chegou — alguém tinha mordido — a minha mãe que fala que o mundo tá acabando, que tem trinta e três anos que ela mora nesse Uberlândia e nunca viu um setembro fazer calor desse jeito. Ontem eu tive até que jogar uma água no corpo pra voltar a dormir.
— Quantas horas agora, Índio?— Interrompeu a primeira mãe.
— Falta vinte e cinco minutos.
— Jesus Cristo.
Convenientemente levantada sobre uma rua com nome de Papa, a João XXIII, o Joaquim, ainda que gerido à distância pelos decretos da Secretaria e do Ministério, era mesmo tocado no dia-a-dia por gente de carne e osso: professores, supervisores, cantineiras e todos os missionários incumbidos via concurso público de guiar à luz as mil e seiscentas alminhas que ali seriam organizadas nos turnos da manhã e da tarde, em oito séries de quatro ou cinco turmas cada uma.
Do portão estreito, de onde o Índio era o guardião, subia-se uma pequena escadaria de concreto que dava ao enorme pátio descoberto, a ágora do recreio, o núcleo social e coração pulsante da escola. Naquele momento, estava em curso um futebol itinerante, sem gol e com requintes de violência, praticado por três meninos que viviam ainda a ressaca da vitória da seleção brasileira sobre a Alemanha, numa gloriosa manhã de domingo no Brasil, e noite em Yokohama. Graças ao fuso horário japonês, as escolas foram desobrigadas de liberar seus alunos mais cedo para que eles assistissem aos jogos em casa, como aconteceu na última Copa da França. Mesmo assim, todos deram seu jeito. Os meninos suados encarnavam Ronaldo — o Gaúcho e o Nazário — Roberto Carlos e Rivaldo, ou todos eles ao mesmo tempo, disputando um pinhão mais volumoso e consistente dentre os milhares de outros que haviam caído dos três gigantes pinheiros que separavam o pátio do chão de terra batida.
— Debaaaaaaaixo das pernas!
— Olha o que ele fez!
Passado o pátio e os pinheiros, à direita do chão de terra — o pesadelo dos tênis brancos — ficava a quadra poliesportiva que naquele tempo, para tristeza da diretora, Dona Xantipa, ainda estava sem cobertura. E o sol rachava sem dó sobre a quadra e o retângulo amarelo fosco de onde havia sido erguido uma rede para a educação física para meninas do sétimo ano. Aos gordinhos, aos tímidos e aos muito pequenos restavam servir de plateia, sentados nos bancos de concreto ao redor de uma mureta. Se pudéssemos ler a mente da plateia, estaria escrito: “benditas sejam as meninas da sétima que aos poucos vão arredondando o corpo, inflando o globo com as siglas “JS”, a logotipo da escola impresso nos uniformes, na altura do peito”. Ou algo do tipo.
Na ala direita da escola, havia a lanchonete — onde se comprava coxinha, esfirra e cremosinho ao preço universal de dois reais — e, mais adiante, dois portões de ferro amassado que indicavam os banheiros dos meninos e das meninas, este bem mais limpo e menos pichado e amassado que aquele. Os banheiros eram separados ainda por quatro torneiras parafusadas a uma gigante pia, diante das quais, as bocas distribuíam-se em filas para lhes chupar a água. Finalmente, atrás de um montanha de carteiras quebradas sob um palco de concreto, ficava a cantina, limpíssima ao final do expediente, onde, mais cedo, a fome dos alunos havia sido saciada com um carregamento militar de macarrão à bolonhesa.
Alguma movimentação podia ser vista na porta da Secretaria. Sempre havia ali um vai-e-vem de alunos até a mesa da Teolinda, a supervisora, tão antiga quanto o próprio prédio, e solucionadora de qualquer pepino possível dos alunos e dos professores. Naquele dia tivemos a sorte de encontrar a diretora Xantipa em uma de suas raras aparições.
Uma garota surgiu na porta:
— Dona Teolinda?
— Diga, meu anjo.
— O professor Cláudio mandou avisar que o ventilador de teto da frente estragou, e o pessoal tá começando a ficar nervoso...
— Entendi, minha flor. Só um momento. Dona Xantipa! Má notícia: sinto lhe informar, mas terei que retirar o seu ventilador!
Com o ventilador de Xantipa em mãos, Teolinda tomou uma escadaria de ladrilhos vermelhos à direita do portão de entrada e que nos leva até o segundo andar: um enorme mezanino sustentado por pilotis, alimentados por um longo corredor vazado. Ficavam ali a sétima e a oitava série, oito salas entupidas de pré-adolescentes com seus vazios de alma, seus sonhos e suas bobeiras sentimentais que lhes pareciam problemas de vida e morte.
A simples aparição de Teolinda à porta fez a classe toda mergulhar num silêncio.
— Licença, Dr. Cláudio, onde eu coloco?
— Graças a Deus, Teolinda. Pode ser aqui na minha mesa. — Teolinda lançou um olhar duradouro à sala, antes de sair. O professor voltou à sua meditação.
Com o braço esquerdo apoiado sobre o peitoril de um dos dois janelões do oitavo A, Bento contemplava a fábrica escolar em pleno funcionamento e se sentia, de certa forma, responsável por tudo aquilo. Como um diretor de teatro, assistindo a um ensaio de uma peça que se repetia a cada temporada, com novos atores representando os mesmos papéis que ele e seus amigos encenaram anos atrás. É que ocorria ao nosso Bento um estranho sentimento de tempo transcorrido. Afinal de contas, foram oito anos! sete e meio que seriam oito até dezembro. Nem tudo que ele viveu ali foram alegrias, sem dúvida, mas nem só de tristezas vive-se uma vida escolar. Até hoje Bento se lembra do “cólera, meningite, diarréia, tétano, botulismo, pneumonia e tuberculose” que abriu sua participação no grupo com os primos Tales e Fábio e que, com o tema "Bactérias", levou o terceiro lugar na feira de ciências da sexta série. Bento se lembrava também do dia, quando eram quase bebês, em que Fábio abaixou as calças do primo, na frente de todo mundo no recreio. Desde então, Tales passou a ser chamado apenas de “Jegão” — um apelido que lhe era tão humilhante quanto lisonjeiro e que, dele, quanto mais Tales tentava se desvencilhar, mais profundamente se colava a sua imagem. Houve ainda o dia, no começo do ano, em que Gilvan quebrou o braço do Rogério numa dividida de bola nas olimpíadas interescolares. Todo mundo teve de fazer a escolta de Gilvan na saída da escola quando o irmão de Rogério veio no dia seguinte para bater nele. Este foi o mais próximo de uma briga que Bento jamais se metera na vida.
E feito mais um ritual da vida, tudo acabaria em breve. Aquelas pessoas da sua turma, a quem ele acostumou desde a infância a chamar de amigos (seriam mesmo?) sumiriam para sempre — puf!— livres para errarem em outro lugar, para ingressarem na real aventura da vida adolescente.
E Bento? Fizera ele algo de relevante até agora? Por acaso sabia ele a sua real vocação em vida ou a profissão com que ele viveria para o resto dos dias? Tinha ele uma namoradinha pra chamar de sua, como Gustavo tinha sua Gisele, e Gilvan, basicamente, todas as meninas que ele quisesse? Ou será que Bento morreria virgem, estéril e seco, como um pinho esquecido no recreio? Se ao menos ele tivesse dinheiro, ou um carro, ou um corpo forte, ou coragem para, um dia sair de casa, e ver-se livre de Uberlândia para sempre. Talvez ele seria finalmente feliz.
“Joaninha, joaninha. Você é linda, sim. Mas me diga: do que adianta a senhora sair da sua toca, caminhar o dia inteiro na imensidão da sala, se, por capricho e por puro sadismo de uma gigante entediada, a senhora está agora aí, esperneando de barriga pra cima? Me diga, joaninha... viver faz algum sentido?”
O arraste dos pés das carteiras contra o taco e o ronco esganiçado do ventilador desregulado entrecortavam a massa indistinta de conversinhas que se reestabilizou em um nível perigoso, desde que Teolinda deixou a sala. O clima voltava a ficar subversivo. É preciso ter cuidado, se não o “Fessôr” Cláudio lhes viria com outro sermão. Com delicadeza, Gustavo e Gilvan se levantaram e foram se aproximando subrepticiamente até a mesa do mestre.
—Ô Fêssor, vou dar um recado pra sala rapidão, pode ser? - disse Gilvan.
Cláudio, com olhar sanguíneo, respirou fundo e destravou lentamente as mãos apoiadas contra a cara, erguendo-as no ar num gesto de desdém:
— Eu fiquei te observando, Gilvan. Seu caderno está em branco. — Tá não, fessor. De lei...
Gustavo, antes que o amigo colocasse tudo a perder, buscou recolocar os termos da negociação em termos mais diplomáticos:
— Professor Cláudio, desculpe. É que a gente tá organizando uma festa, professor. E a gente precisava recolher o dinheiro antes do sinal, se não nós estamos enrolados. Eu mesmo já terminei os exercícios, só falta entregar. Vai ser bem rápido, eu prometo.
Professor Cláudio, desarmado, não pôde fazer nada a não ser apontar-lhes lentamente o caminho para o palco invisível em frente ao quadro negro: “vai lá…”
Gilvan e Gustavo se prostraram perante os colegas:
— Gente, gente, licença... — pediu Gustavo, buscando inutilmente se destacar do barulho.
— Ou, ou...CALA A BOCA! — Gilvan impôs o silêncio.
— Brigado. É..gente, licença. Vocês sabem que amanhã, sábado, a gente vai fazer o nosso churrasco, né? O primeiro churrasco de preparação para a formatura! Pois é, então. Vai ser amanhã mesmo, à partir das uma da tarde. O endereço é esse que o Gilvan ‘tá escrevendo no quadro. Vai ser numa casa lá no Morada da Colina. Casa boa, grande e confortável, com piscina.
— Vai ter gólo? — Goianinho tentou disfarçar a autoria da pergunta anônima que fez o rosto do professor Cláudio murchar de decepção.
— Não vai ter bebida (Gustavo piscou afetadamente pra turma) mas vai ter carne, e muita, então não precisa almoçar em casa, não. Ah, e vai ter show do “D’Sunga”, que é a banda do Goianinho, que todo mundo conhece, né?... Mas aqui, o mais importante é: quem colocou o nome na folhinha e não deu o dinheiro pra mim, ou pro Gilvan, ou pro Goianinho, tem que fazer até hoje de tarde...até hoje de tarde, ok?
— É QUINZE REAIS! — Interrompeu Gilvan, quase gritando.
— Isso, quinze reais. De preferência, me dê o dinheiro trocado porque a gente tá sem troco. Quem tiver com o dinheiro em mãos a gente vai passar p’ra recolher, beleza?.
— Não, não, não, não!...chega, pode sentar! — Interviu Cláudio, tentando resgatar o pouco de autoridade perante a sala. — Vocês recolhem na saída. Minha aula não é poleiro de galinha...
— É rápido professor...
Antes mesmo de qualquer deliberação, Gilvan adiantou-se e foi-se infiltrando por entre as fileiras da extrema direita, gravitando naturalmente pela região onde sentavam Gisele, Karen e suas amigas, as meninas mais bonitas da sala. Gustavo tomou a esquerda.
— Não, não...eu não sou bobo. Talvez vocês achem que eu sou bobo, mas sei perfeitamente que vocês estão me enrolando... — Continuou Cláudio, sem que ninguém lhe desse ouvidos.
Do lado esquerdo, próximo a segunda de duas grande janelas laterais, sentavam os primos Tales e Fábio. Fábio se adiantou e entregou a Gustavo trinta reais, e lhe disse alto, fazendo questão que as meninas ouvissem: “toma trinta, o meu e o do Jegão!”. As meninas riram. Bento era o próximo:
— Tá aí com o dinheiro, Bentinho?
— Aham. Aqui, Gustavo. Você vai como p’ra festa amanhã?
— Pois é, calma... Depois eu te falo. Mas vai dar bom... — Gustavo se afastou apressado em direção aos próximos da fila.
Enquanto isso, Tales e o Fábio se mostravam claramente excitados, soltando uns risinhos convulsionados de vez em quando. Eles sempre foram meio bobos, Bento sabia, mas hoje, eles estão demais:
— Gente, que riso solto é esse? — Perguntou Bento.
— Nada não. É o Fábio, Tampinha, que tá me enchendo o saco. Mas não fala com ele não porque ele tem que terminar a lista de exercícios.
— Agora é a hora do meu recado! — Insistiu o professor Claúdio — Quem ainda não entregou a lista de exercícios, deixa aqui na minha mesa na saída, compreendido? Não adianta vir com a metade. Quero os dezessete polinômios na mesa em dois minutos...
— Eita, Bento, me passa o seu só pra copiar o último? Pediu Fábio, já tirando-lhe a folha do fichário.
— Eu não revisei não, mas, beleza…
Ainda o professor Cláudio:
— Vocês tão me enrolando. Depois não vão chegar revoltados na porta da Xantipa, reclamando que... “o professor Cláudio não ensina a matéria”, “isso o Cláudio não deu pra gente”, “o professor Cláudio nem formado em Matemática é”. Na próxima vez que isso acontecer eu vou fazer questão de ir lá na secretaria de ensino e…
UUUUUUUUÕÕÕÕÕÕÕÕÕÕÕÕÕÕÕÕ...
— Bora, entrega do jeito que tá! — Disse Tales, vestindo a mochila.
— Me espera lá embaixo ‘cês dois.
Bento, antes de se levantar, lembrou-se da joaninha de barriga p’ra cima em sua janela. Lembrou-se também de que ele não era um monstro por completo e, com a lapisera, a recolocou com as patas no chão: “Vamos pra casa, dona joaninha!”. A escola vomitava alunos por todos os orifícios. Pais e mães abraçavam suas miniaturas na rua, outras crianças sumiam para dentro das vans, enquanto outro número considerável esperava no outro lado da rua a formação do grupo dos que fariam a expedição à pé. A fome apertava a todos, como uma bomba moral sobre o espírito em jejum.
— Té segunda, Dona Giovana. Té segunda, Teolinda, bom final de semana. — Índio de repente levantou a voz — O Gilvan, não deixa o Goianinho beber demais não, hein?
— Tá louco? e eu tenho filho desse tamanho?
— Tá certo, té segunda, Gilvan.
(...)
Num belo dia como este, ocorreu a Bento um insight sociológico sobre a relação entre a rota de saída da escola e a classe social dos alunos. Conclusão que lhe pareceu tão genial que não se conteve em dividir com o amigo Tales:
— Cara, vocês já percebeu que todo mundo que mora no Saraiva e no Santa Maria são tudo gente de classe média e sempre sai pelo portão principal, na João XXIII? E você já percebeu que os alunos mais, como se diz, pobres ou humildes, sei lá, sempre saem pela rua Tapuios. Pela parte de cima?
— Não. Que viagem. Será por quê?
— É porque a Tapuios vai dar lá no Lagoinha e no Vigilato Pereira.
— Ahn, uai. A Darlene mora lá, você sabia né?
— Pois é.
(...)
A peregrinação de volta a casa era um desses ritos que acabavam por definir muito da vida escolar. Muitas das vezes, as amizades que nunca seriam fomentadas espontaneamente poderiam ser catalisadas pela conveniência da volta pra casa. Bento nunca saberia o que tinha vindo primeiro no caso dos seus amigos: a afinidade ou a conveniência. O fato é que sempre voltavam os cinco juntos pra casa: Gustavo, Gilvan, Fábio, Tales e Bento. Com idas e vindas esse sempre foi o núcleo central. E por estarem todos acostumados a essa configuração, já não precisavam mais de sinais para a formação da picada, que em menos de um minuto deslizava por entre as vans e carros, evitando assim o contato com os estudantes mais jovens, e, em pouco tempo, ganhava as ruas laterais da escola, menos movimentadas.
— Cadê o Gustavo? — Perguntou Bento.
— Bora Gustavo! — Gritou-lhe Gilvan.
— Deixa eu ir lá, meu bem. — Gustavo beijou Gisele na boca e a liberou para entrar no monza cinza guiado por uma sósia mais velha da menina: “até amanhã, meu bem!”
Bento gostava da presença de Gustavo. Podemos até dizer que ele era seu melhor amigo. Gustavo era um pouco alto, loiro e branquelo, sem dúvida não era um dos primeiros na lista dos mais bonitos da sala, mas, com certeza, charmoso o suficiente para ficar com alguma menina aqui e ali. Talvez a extrema gentileza e o jeito meio afeminado de Gustavo — diferente da personalidade sexualmente assertiva de Gilvan, ou da infantilidade dos primos Tales e Fábio — o tornasse misterioso junto ao alto clero feminino. E era por causa desse charme que Bento acabava sempre entrando nas ideias mirabolantes do amigo. Na sexta série, por exemplo, Bento havia redigido o edital para uma campanha idealizada por Gustavo de conscientização para a conservação das carteiras escolares. O concurso nunca saiu do discurso, mas, pelo menos, permitiu que aproveitasse as migalhas da atenção das meninas, quando eles tiveram de divulgar o concurso em cada sala. Naquele mesmo ano, carregado pelo espírito da Copa do Mundo, Bento não resistiria à pressão de Gustavo e pintaria as mechas do topete de verde e amarelo com papel crepom. Foi na esquina da João XXIII da rua dos Carrijos que Fábio, cantando e sambando, rompeu o silêncio:

Ela é dog...dog, dog, dog.
She is dog...dog, dog, dog.

Fábio, como todo baixinho, conseguia se movimentar facilmente sem ser notado. Enquanto sambava, foi ele se posicionando por trás de Tales até retomar o refrão:
— Ela é…PLAFT!...dog, dog, dog... — acertou em cheio o próprio fichário nas costas de Tales, fazendo com que o primo envergasse violentamente para a frente.
— Ah, não Fábio, vai cagar! —- Tales não pôde evitar o riso solto do achincalhe geral. Nem de todos, na verdade. Bento dificilmente ria, no máximo sorria diante de uma graça.
— O Jegão vai transar! O Jegão vai transar - continuou Fábio na mesma toada.
— Como que é isso aí? - Perguntou Bento, buscando ainda manter o meio sorriso.
— E Bentinho vai também! E Bentinho vai também! Todo mundo vai comer alguém!
— Quando? Perguntou Bento, sério.
— Amanhã.
— Bora organizar esse negócio de uma vez... — interrompeu Gilvan — Meu pai vai pegar vocês às duas e meia na festa, então vocês não podem atrasar, tem que chegar cedo lá.
— Chegar cedo onde? — Bento estava perdido.
— Na festa amanhã. Cortou Tales, já por dentro de tudo.
— E por que o Gilberto vai pegar a gente na festa se a gente já vai estar lá?
— Calma, presta atenção - falou Gilvan — meu pai vai liberar a casa pra gente de tarde. Eu não vou pra festa com vocês porque eu vou encontrar com a Mayara lá em casa…
— Que Mayara?
— A Mayara do oitavo C.
— Você tá pegando a Mayara? — Bento era sempre o último a saber.
— Ó… tap, tap, tap, Tales estalou o indicador com o polegar três vezes - há muito tempo.
— Pegando, assim, de vez em quando a gente dá uns abraços.
— E a Mayara falou que vai pra lá com umas amigas do oitavo C — Disse Fábio, satisfeito.
— Quem do oitavo C? - Bento sentiu as mãos tremerem.
— E daí? O oitavo C só gosta de meter, eeehhhh — gruniu Fábio segurando forte na nuca de Bento.
— Só as gente-boa. Mayara falou que certeza que a Monalisa e a Ariadne vão, mas falou que talvez fosse mais uma amiga do centro espírita dela. Então é melhor você ir, Bento. Mas aí que tá. Vai funcionar desse jeito: você encontra o Fábio e o Tales na casa deles e vocês vão pra festa juntos, e ficam lá um tempo, esperando. Daí que o meu pai sempre sai às duas da tarde porque ele tem racha todo sábado à tarde. Mas ele disse que vai sair mais cedo só pra buscar vocês três lá na festa. A gente faz o frevo e na hora que meu pai voltar a gente pega carona de novo pra festa do Goianinho...
—E seu pai tá sabendo de tudo?
— Meu pai é de boa. Só falou pra não usar o quarto dele. Só que eu vou usar de qualquer jeito.
— Gustavo, você também vai pra casa do Gilvan? Perguntou Bento como se pedisse por apoio.
— Óbvio que não, tá louco? A Gisele me mata.
— Pra que que ele ia querer entrar nessa se o cara já transa há um século? - Explicou Tales o óbvio, em nome do amigo.
— É, mas o pior é que ultimamente tá osso. Tem que ser sempre na rua.
— Agora é o seguinte! — Chamou Gilvan a atenção para si — Combinei com o Goianinho que quem broxar vai pagar um fardo de cerveja lá pra festa…
— Tales tá perguntando aqui quanto custa um fardo…— malhou Fábio.
— O mínimo que o Tales podia fazer com a menina é acompanhar ela na emergência depois. — Gustavo contribuiu para o achincalhe total. Fábio, Gilvan e Gustavo riam muito. Bento e Tales, não.
— ‘Cês são foda. — Foi tudo o que Tales conseguiu dizer.
— Vai sobrar até umazinha para Bento botar-lhe o pintinho. Só que tem um problema — continuou Fábio — tão falando que a sua mulher não é a mais bonita do mundo, não. Mas pode ficar tranquilo que o Gilberto falou que vai até deixar um saco de papel na cozinha pra colocar na cabeça dela…ré, ré, ré...
Bento fechou a cara de vez e prometeu a si mesmo não dizer nada até chegarem ao portão eletrônico do caixotinho de três andares na esquina da Carrijos com a Tamoios, onde moravam, em andares diferentes, as famílias de Fábio e Tales. Feito a maioria dos prédios que se construía no Saraiva, as paredes do caixote eram cor de creme, este, trazia ainda várias manchas cinzas de reboco, fruto provável de alguma reforma abandonada. O portão eletrônico ficava na base de um paredão de azulejos vermelhos, com alguns azulejos faltantes aqui e ali. Como o prédio ficava na rota de saída da escola, as janelas do primeiro andar, onde Tales morava com a tia Carmem, tinham de ser protegidas por grades de ferro, e as da tia Carmem eram desenhadas com arabescos em padrão ondular. Nas janelas do segundo, onde Fábio e sua família moravam, havia lençóis, presos na parte superior para barrar o luz que entra toda manhã.
Tales tocou o interfone: “sou eu…”, ouviu a ranhura da fechadura eletrônica — Krek! — e sumiu porta adentro: “Falou!”. Fábio, antes de fechar o portão, foi cumprimentar Bento especificamente, se dirigindo em um tom mais baixo:
— Ou, cê num achou ruim daquela piada do saco na cabeça não, né? Você sabe que a gente fala essas coisas é de brincadeira, né? — As mãos de Bento só encontraram as de Fábio porque o amigo forçou o cumprimento.
— Não, tá de boa. Eu juro.
— Então tá. Chega aqui amanhã ao meio dia, e não almoça não! A tia Carmem vai levar a gente.
— Ela também tá sabendo?
— Nada.
Ao longo da rua Tamoios, passada uma mercearia, alguns lotes vagos e a “Uberlândia - Materiais para Construção”, a duzentos metros da dos primos, ficava a casa do nosso jovem garanhão, muito mais humilde que as outras da rua.
— Eu só sei que eu vou beber demais amanhã! Falou! - Gilvan desapareceu.
— Cê sabe que eu contei quantos copos de cerveja do Gilvan bebeu lá na festa do Nenzão. Sabe quantos?
— Não, quanto?
— Setenta copos.
— Que isso.
— O bicho bebe. E pega também. Ele tá pegando a Mayara hoje, só que ele pegava a Ariadne um tempo atrás. E, agora, as duas vão juntas na casa dele.
— Ah, sim...
— Não, e você viu a cara de preocupado do Tales? Rá rá, coitado do Jegão. Engraçado demais…
— É.
— Mas, aqui...fica de boa que o povo é retardado mesmo.
— Sim, é tranquilo. Eu sei que o Fábio é daquele jeito mesmo. Quando ele tá sozinho parece até um cara de boa, dá pra conversar. Mas é só que ele muda muito quando tá em grupo, parece outra pessoa.
— É verdade, quando ele tá com o primo dele ele fica valente. Mas, assim...Tudo bem pra você, né? Quer dizer, você já transou antes, né?
— Claro que já. Foi com a Tamires, você não lembra? — mentiu Bento — mas você ouviu o que o Gilvan falou? Não é certeza que eu vou ficar com a amiga da Mayara, é mais fácil eu ficar segurando vela. O que é tranquilo. Prefiro que o Tales e o Fábio peguem alguém, eles tão mais necessitados que eu — mentiu novamente Bento.
— Verdade. Mas é aquilo, tem que chegar, chegando. Se você marcar território lá, você pega. Mas é melhor ficar tranquilo mesmo. Quer vir pra casa hoje?
— O que você tá pensando em fazer?
— Eu vou no depósito com o Goianinho e o primo dele, pra comprar as bebidas pra gente. Você vai beber, né?
— Acho que sim. Mas pode ir lá, vou ficar em casa hoje.
— Tá bom. “Sou eu”. “Kreeek”. Falou, Bentinho.
— Falou.
A última parte do trajeto era sempre Bento com ele mesmo, andando sozinho pelas calçadas, ora de cimento rachado pelas raízes dos oitis e das choronas, ora de chão batido, entregue ao seu estado de espírito preferido, a solidão dos desajustados. Não importa para onde fosse, ou para onde estivesse indo, Bento não morava em Uberlândia, nem morava naquela casa cor de creme da rua Tabajaras, de número 680, ao lado do Supermercado. Bento nascera e se criara no reino da solidão adolescente. Pobre Bento. A melancolia só não lhe era mais grave que a fome naquele momento.
Com o golpe de força necessário para fazer rolar o portão de ferro da sua casa — numa época em que os portões ainda ficavam destrancados — Bento teria ainda a última surpresa daquela manhã. Na garagem, que nos dias da semana permanecia vazia até que sua mãe voltasse do trabalho, havia uma moto estacionada de través, a Yamaha verde claro cor de catarro que pertencia ao seu irmão mais velho, Beethoven.
“Que bosta, ele tá aí” — Bento hesitou, mas acabou entrando em casa.