Capítulo 2 - "O Homem que Vendeu o Mundo"

Segundo capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

Em dias normais, Bento teria simplesmente cumprido a rotina des-escolar que incluía lançar o fichário de capa azul transparente sobre a mesa de centro da sala de recepção; despir com o calcanhar os tênis, que lá ficariam até que sua mãe Célia viesse pegá-los mais tarde; cruzar a sala da TV até a copa onde seu pai estaria sentado na escrivania, hipnotizado diante da tela do computador; e, finalmente, alcançar o quarto de onde teria se despido do uniforme cinza e da bermuda azul marinho para sempre, pelo menos até o dia seguinte. Mas, com Beethoven em casa, Bento tem que pisar em ovos. Afinal de contas, a configuração espacial dos moradores deve ser bem planejada — em especial, do pai e do irmão mais velho, que não pode coincidir num mesmo cômodo por muito tempo — sob risco de baixaria iminente que, naquele ponto, próximo à uma da tarde, considerando que Vânio e Beethoven tenham tido a manhã inteira para isso, já deve ter acontecido. Por sorte, a casa da rua Tabajaras era grande o suficiente para que cada morador pudesse escolher um cômodo para se isolar um do outro.
Bento tomou mais cuidado com a organização que o normal, preferindo manter o tênis e o fichário. E foi entrando pela copa, à espera de que Vânio rompesse o silêncio em seu lugar:
— Seu irmão tá aí.
— É, eu vi. — Bento pegou impulso para galgar os três degraus que davam ao corredor de onde se distribuem os aposentos, quando Vânio acrescentou:
— E ele tá dormindo no seu quarto.
“Que desgraça”. O pior havia acontecido. Bento foi obrigado a parar e re-planejar seus próximos movimentos. Retornou até a copa para colher novas informações com o pai, que ainda estava concentrado na partida de Paciência.
(...)
Vânio considerava uma extravagância investir três mil reais num equipamento que ninguém em Uberlândia tinha em casa, e somente cedeu à ideia da esposa de comprar um computador para os filhos após impor uma condição: de que o equipamento ficasse em um lugar à vista de todos, para que todos pudessem se vigiar o conteúdo que cada um estivesse consumindo. Quando a máquina finalmente chegou em casa foi Vânio quem mais acabou se afeiçoando, sobretudo com os joguinhos embutidos no sistema operacional. Vânio se gabaria por muito tempo com os vizinhos de ter em casa “uma das máquinas mais modernas do bairro, talvez de Uberlândia inteira”mas, sete anos após sua compra, o Compaq Presario 4410 parecia uma aberração precocemente ultrapassada, com seu irritante barulhinho do processador e seu formato de foguete em queda. Um giga e meio de memória rígida não lhe poderia oferecer muitas possibilidades de entretenimento e cultura, e, mesmo assim, o pai de Bento era capaz de passar dias inteiros em frente à tela, jogando FreeCelL e Paciência, numa tediosa e mortificante pasmaceira. Por quê? Bento chegou um dia a cogitar que houvesse outros motivos para aquele transe. Talvez o verde da mesa de jogos digitais lembrasse Vânio do capim e das farras regadas à truco com os peões da roça em Coromandel, onde o pai tinha crescido.
(...)
— Pai, cê viu se o Beethoven tava com aquela mochila grande, a vermelha?
— Tava.
— Então ele vai ficar esses dias, né?
— Sei lá.
— Cê acha que ele brigou com a mulher de novo?
— Aquela mulher é louca. — inspirou — E o seu irmão não é flor que se cheire também.
— A mamãe tá sabendo que ele tá aqui?
— Vai saber.
Bento sentiu pela resposta evasiva que dali, mais nada seria extraído, e que talvez fosse melhor almoçar direto. Deixou o fichário na mesa da copa. Na cozinha, o relincho metálico da porta do fogão deve ter acionado a lembrança na cabeça de seu Vânio:
— Tem que deixar comida pro seu irmão! E refrigerante também.
(...)
Célia seguia um rigoroso cronograma para manter a engrenagem familiar em funcionamento. Por volta das seis e meia da manhã, já deveria estar na cozinha, maquiada, preparando simultaneamente, o pão com ovo do marido, a vitamina para Bento e o almoço, que por falta de repertório, gerava sempre em torno de quatro pratos: strogonoff de frango, bife com cebola, macarrão à bolonhesa e, conforme a assadeira de alumínio no forno denunciava naquela dia, lasanha. Como era de costume, a cozinha deveria estar impecável até antes das sete e quarenta e cinco, antes de Célia ir para o Banco.
(...)
Bento separou do restante da lasanha, a metade ou talvez um pouco mais, quase dois terços. Juntou a parcela num prato com arroz da geladeira e farofa de um pote. Cobriu a pratada com uma tampa de plástico e enfiou tudo no microondas por dois minutos.
Enquanto esperava pelo fim da contagem regressiva, Bento notou algo diferente na paisagem da cozinha. Havia uma pasta de capa preta por cima da antiga lava louça, a que ninguém mais usava. Alguém deve a ter esquecido, provavelmente Beethoven. Bento sentou-se para investigar o conteúdo.
A capa preta protegia muitas páginas emplastificadas que funcionavam como sacos para folhas de papel sulfite impressas nas duas faces. Em cada uma delas, fotos de produtos, seguidas pela descrição técnica, como num catálogo:

“Nike Shox R4 masc. - cores: branco e azul, cinza e azul, preto, preto e cinza - 4 molas - solado borracha - elegante com calça e short - leve para garantir boa caminhada - R$30,00” — Meu Deus!

“Nike Shox TL masc/fem. - cores: branco, vermelho - 12 molas - checar tamanho disponível, caso o pé seja alto e/ou largo, favor pedir número maior - R$55,00” — Não é possível!

“Adidas Hellbender ‘Aranha’ unissex - cores: verde, preto - R$30,00 (INDISPONÍVEL)

Bento não acreditava mas Beethoven tinha entrado de cabeça no mercado de revenda de tênis falsificados. A prova estava ali, naquela arca de tênis de quase todas as marcas; masculinos e femininos, esportivos e casuais; direto do Paraguai até sua cozinha. Sem dúvida, de todas as maluquices que Beethoven havia inventado desde que voltou dos Estados Unidos, essa tinha sido a mais ridiculamente desesperada de todas. “bip”
Como se estivesse em mãos as cartas secretas de Beethoven, Bento fechou aquele conteúdo e tratou de guardar a pasta no lugar e posição de origem e esqueceu a informação num canto qualquer da consciência. Inacreditável...
Com o prato flamejante numa mão e a guaraná em outra, Bento procurou seu lugar favorito da casa e do mundo, o reduto que por enquanto lhe restava. Um lugar onde ele poderia ser ele mesmo, sem se importar com a gordura que engrossava as canelas e lhe escorria pelo abdômen e pelos flancos. Um lugar onde não havia a necessidade de preencher o silêncio, e onde, inclusive, ninguém se importaria se ele passasse a tarde inteira calado. Bento sentou-se finalmente no sofá da sala, diante da TV, arrefecendo os nervos e a alma após a batalha do teatro cotidiano.
(...)
É engraçado. Mas a primeira memória visual que Bento gardou do mundo lhe ocorreu aos quatro anos, ao redor daquela mesma TV, quando, por algum motivo — afinal era jovem demais para participar das negociações de bastidores — Vânio chegou em casa trazendo um embrulho. Devia ser na época em que seu pai ainda tinha a loja e talvez por isso lhe sobrasse algum dinheiro para uma surpresa como essa e que, sem dúvida, acontece somente uma vez na vida de um jovem. Bento não sabia até então para que servia um Mega Drive, mas tinha aprendido naquele dia como um videogame novo podia trazer alegria a uma casa. Bento viu por entre os óculos fundo de garrafa do Beethoven os olhos sanguíneos antes de este tomar o embrulho do pai e destroçar a caixa de papelão, feito um leão no pescoço de uma zebra. Até Dona Célia, que por obrigação sempre via qualquer alegria excessiva como um luxo a ser vigiado, se rendeu ao raro momento de comunhão, e sorria em torno do mais novo membro da família. A cena de Beethoven e Vânio quebrando a cabeça pela instalação do videogame ficaria por muito tempo gravada na mente de Bento como um retrato em movimento: “como éramos felizes!”
— Presta atenção, o pino vermelho vai no vermelho e o amarelo no amarelo.
— Olha, mas não me diga, Einstein!
O Mega Drive foi a porta de entrada de todos os meninos do Saraiva até a sala da família. Os mais frequentes eram o Elias e o Nathaniel, a quem seu Vânio não suportava, por causa do chulé com que inoculava a casa, mas sobretudo, porque ele acabava com todos os pães da cozinha. Os amigos de Beethoven passavam tardes e tardes inteiras depois da escola tentando zerar um jogo cujo nome Bento descobriria só muitos anos depois chamar-se “Streets of Rage”, e não “barreque nucle”. Bentinho, embora se contentasse com os olhos arregalados em apenas vê-los jogar, sofria com os desafios que os personagens do jogo eram forçados a superar pela sobrevivência e pela proteção da própria cidade dos mafiosos. Quando um deles tinha que desviar de uma bala, Bento abaixava também; quando o herói tinha que saltar de um andaime para um plataforma metálica em movimento, Bento pulava sobre o seu próprio eixo no sofá da sala.
Conforme novos jogos iam sendo alugados, Beethoven e os amigos iam folgueando cada vez mais, rindo alto, comendo muito, rasgando o couro do sofá e sujando a parede da sala com marcas de pé sujo. Enquanto isso, Vânio se arrependia cada dia mais do presente, tanto que jurou para Bento e a esposa, numa noite longe do filho mais velho bebendo cerveja na cozinha, que nunca mais compraria nenhum videogame em vida. Quando veio o aniversário de Beethoven e Vânio se negou a lhe dar o Super Nintendo, a mais nova proeza tecnológica que tão certo suplantaria os limitados 16 bits do já velho Mega Drive, pai e filho tiveram uma briga feia que fez Dona Célia chorar e Bento se esconder. Desde então, Beethoven e seus amigos foram obrigados a matar o tempo livre na rua, enquanto a sala da TV foi ficando cada vez mais de Bento.
Na verdade, se ao Bento fosse dada a chance de escrever uma biografia, ou dirigir um filme sobre sua vida desinteressante, não haveria capítulos nem cenas, nem histórias nem conquistas, apenas imagens sobrepostas, projetadas desde o centro do Universo na sala de casa, capturadas pela almas desatenta de criança. Tudo se mistura num grande bolo de memória: o funerário Plantão da Globo, e a morte do ídolo de irmão que “bateu forte porque correu demais”, o percurso com Romário e Bebeto desde o estádio nos Estados Unidos até os braços de sua mãe para celebrar o nosso Tetra. Carne humana, sangue e terra da Serra da Cantareira assombrando os pesadelos de Bento: “piloto filho da mãe” — A nova loira do Tchan, banheira do Gugu e Castelo Rá-tim-bum. A província ingressando no mundo grande, na tarde em que o técnico deixou Bento livre para experimentar a TV à cabo — o único dia em que o menino considerou a ideia inédita a não ir à escola. Os Animaniacs, desenho animado que conhecia apenas da estampa na mochila da Gisele. O Cartoon Network, Dragon Ball, os seriados enlatados em Inglês. A MTV Brasil, que cultivou nos irmãos o amor em comum à música, e que, no caso de Beethoven, lhe imprimiu a ilusão de que Deus lhe havia reservado uma carreira no rock. Daí vieram o professor de guitarra e o sôfrego riff de “The Man Who Sold the World”, que Vânio se recusava a reconhecer como música, a guitarra abandonada, os sumiços, o carro batido, as agressões, a viagem clandestina de Beethoven para os Estados Unidos, o visto vencido e o choro de Dona Célia, vendo caírem as torres gêmeas, ansiosa por notícias do filho.
(...)
Um giro de fechadura rompe o som da TV. Beethoven sai do quarto:
— Pai, depois eu tenho que usar a internet depois.
— Que que eu te falei, Beethoven? Internet, só final de semana. Amanhã ‘cê usa.
— Eu tenho que ver umas coisas de trabalho, pai.
— Trabalho? Desde quando muamba é trabalho?
— Só pegar uns endereços, dois minutos.
— Isso não é trabalho não, é bico, pelo amor de Deus. E tira aquela desgraça da garagem antes da sua mãe chegar!
Beethoven inspirou fundo:
— Ô pai, acho que o senhor não entendeu. Não sou criança mais, não. Acabou. Cê não tem mais autoridade em mim, nunca teve na verdade. Eu não vou descer no seu nível, não porque eu já cansei de brigar. — Beethoven foi pra cozinha — Tem problema não, vô na lan house mais tarde. Bento tá aí?
— Tá.
Era a vez de Beethoven almoçar e isso significava que logo ele estaria na sala com o irmão mais novo.
Foram cinco anos em que Beethoven havia ficado fora de casa. Cinco anos de muitas lágrimas vertidas de Célia. Numa estadia de muitos mistérios e poucas notícias, vindas normalmente da boca de amigos e de outros brasileiros nos Estados Unidos, clandestinos como o irmão. De repente, como se nada tivesse acontecido, o Beethoven estava de volta a Uberlândia desde o início do ano, revigorado; com os mesmos óculos grossos, apenas com uns quilos a mais e um novo cabelo raspado em vez da cabeleira. E quem diria? Beethoven havia se casado com uma tal de Isabel do Tibery.
Cinco anos longe de alguém, é tempo suficiente para se perder a naturalidade de se estar num mesmo cômodo e dividir o silêncio. Como quebrar o gelo? Foi Beethoven que deu o primeiro passo, sentando-se ao lado do irmão:
— Fala Chico Bento, que que cê tá assistindo?
—Ah, é um programa aí, o Saturday Night Live.
— Sim, eu sei. Esse negócio passava muito lá em Fort Lauderdale. Quem é o gordão?
— Ah, é um cara, comediante. É um programa de comédia.
— Hmm… — Beethoven engoliu — Nó, sem graça pra caramba.
— Ah é, pode mudar se você quiser.
— Bota naquele programa que tinha um cara que fazia um monte de arte. Ele ia no supermercado, fazia um desenho grandão com os produtos. Ia no lixão e fazia uma escultura.
— Ah, o “Art Attack”.
— É!
— Não passa mais não, há muito tempo.
— Ah, tá certo — Beethoven deu um gole no refrigerante e mudou de estratégia: — E você, Bento. O que que tá fazendo esses dias?
— Nada. A mesma coisa de sempre: escola, inglês.
— Cadê aqueles meninos que eu conheci da sua sala? Tinha o branquelo, o altão e o baixinho, não tinha? Tem aquele também que eu até já vi num racha, o…
— Gilvan? Eles tão bem. Amanhã eu vou até encontrar com eles. Vai ter uma festa aí.
Beethoven ergueu o garfo e faca:
— Olha, mas tá virando mocinha esse menino! Desculpa, mas eu esqueci de trazer o sutiã pra Bentinha da Silva! (...) Que isso, tá indo em festa agora? Cê sabe que eu, na sua idade, a Célia não deixava eu nem ir na Represa. E olha que eu não fazia nada. Vem cá — Beethoven abaixou o tom de voz — você tá bebendo não, né?
— Claro que não.
— Fumando?
— Pára.
— E os seus amigos?
— Se tiver eu não sei.
— E onde que é essa festa do’cês?
— Morada da Coli-...
— Cara, cadê aquela menina que você gostava, cê lembra? A do rostinho redondo? Cês já ficaram? Ela era bonitinha.
Antes mesmo de terminar a pergunta, o rosto de Bento já queimava de ódio. Não podia acreditar que o irmão trouxesse esse tema à tona assim, do nada, e teve ele que segurar as palavras que lhe explodiam de uma fonte desconhecida como lava de vulcão.
— Não, não. Pára! Gostava de ninguém não. Foi há muito tempo, nem vejo ela mais. E cadê a sua namorada?
— Esposa, né? A Isabel? Aquela mulher é louca, cara… — Beethoven baixou o rosto por um segundo — Mas olha só, eu sei o que você tá pensando: você e o Vânio devem tá preocupado achando que eu vou voltar a morar aqui com vocês, né? Mas pode ficar tranquilo, bentinho. Eu não vou voltar a morar com eles nunca mais. Eu tô só dando um tempo mesmo. Só um tempo até tudo acertar com o filho dela lá. Um dia você vai entender, cara. Mulher não é fácil. Não é fácil porque mulher quer dominar tudo. Mas é por isso que você tá certo mesmo. Tem que sair e divertir mesmo, porque depois de um tempo a graça acaba. Mas vem cá, foi bom você ter lembrado, porque eu trouxe um negócio pra você. Faz o seguinte: vai lá no nosso quarto e abre a minha mochila. Pega uma sacola do Carrefour que tá lá.
Enquanto dava as costas ao irmão, Beethoven tomou de vez o controle remoto. Embora soubesse exatamente o que estaria lhe esperando na mala — ainda que estivesse curioso para saber a cor — Bento se preparou para fingir naturalidade e surpresa na hora certa. Ao cruzar a copa, depositou a pressão na ponta dos pés para não chamar a atenção de Vânio. Abriu o zíper devagar e, na volta, tentou esconder o conteúdo ao lado do flanco esquerdo, tomando cuidado para escapar da visão periférica de seu pai. Bento estendeu o conteúdo em direção ao irmão: “aqui”.
— Abre, doido. É seu.
— Nossa, um Olympikus!
— Vi lá no armário que você calça quarenta, né? Esse daí, Bentinho, é pra você usar amanhã lá com seus amigos. Mas também é pr’um dia que vocês quiserem ir para o Shopping, entendeu? Tomar um açaí. É tênis pra sair.
— Não sabia que sabia que o pessoal falsificava marca nacional também. — Não é falsificação, não. É réplica. Tem gente que trabalha, mas eu não trabalho com produto falsificado porque produto falsificado é só dor de cabeça. E não vale a pena no final das contas.
O tênis era verdadeiramente horrível e anti ergonômico em todos os seus ângulos. Tinha uma cor de cimento queimado, um solado reto e chapado, pouco aderente. Certamente renderia ao infeliz que o usasse umas belas derrapagens, sobretudo no piso molhado. Além do mais, Bento sentiu que, mesmo sendo seu número, lhe sobraria um bom espaço entre a ponta dos dedos e o bico do tênis.
— Sim. ‘Brigado, Beethoven. (...) Agora, o que é esse tanto de papel dentro do tênis?
— Isso aí é pra você espalhar lá pros seus amigos amanhã. Pro Gilvan, pr’os meninos. — Beethoven tirou o prato do colo e se levantou — Fala pra eles que eu tenho tudo. Nike, Qix Hexagón, o Stéibol, olha que show. Esse aqui todo mundo tinha em Miami. O que eu não tiver eu peço e chega em Uberlândia em um mês. Fala também que se eles gostarem de algum, eu levo na casa deles pra eles verem.
Cortando o ar, há um cômodo de distância, ouviu-se então a voz de Vânio, de início abafada, mas crescente em definição à medida em que se aproximava da sala:
— Devolve pra ele!
— Que isso, pai!
— Ninguém vai usar essa merda, não!
Bento chegou a estender o braço com o saco rasgado a Beethoven.
— Pelo amor de Deus, pai! é um presente, deixa o menino.
— Tênis pirata estraga a coluna!
— É um presente pro Bento, pra ele sair com os amigos dele, uai.
— Já falei pra devolver pra ele, Bento!
— Beethoven, deixa. Tá beleza...depois a gente vê isso.
— Não, não, não. A gente não tá fazendo nada de errado, não.
— Tá sim — bradou o pai — já num basta a gente ficar cinco anos inventando desculpa pros outros sem saber onde você tava. E aí aparece vendendo coisa do Paraguai, jogando o nome da sua mãe na sarjeta. (...) “O Beethoven tá bem, o Beethoven tá juntando dinheiro”. Porra nenhuma. Tudo mentira!
— Eu pelo menos tô trabalhando, tô honestamente tentando trabalhar. Cê que fica aí mofando o dia inteiro enchendo o saco.
— Sai da minha casa. E tira aquela desgraça da garagem!
— Pai, olha o tênis que o Bento usa. Cê viu? Que que tem eu dar um novo pra ele?
— Se ele precisasse de um tênis novo, ele chegava pra mim e pedia um tênis novo.
— Mas ele gostou do presente. “Você não gostou, Bento?”
Bento, aterrorizado, teve de pensar rápido:
— Gostei. Eu acho que tava precisando de um tênis mesmo.
Somente à poucas pessoas Deus confere o dom da justeza. Naquele momento, Bento provou ter muito a aprender sobre a arte da conciliação. Se tivesse parado na primeira frase, Bento teria alcançado o mínimo denominador comum entre o consolo ao irmão e certa ofensa inevitável à exagerada cena em do pai. Mas, por ter continuado a falar, Bento impôs ao pai uma amarga derrota que ficou inscrita na ridícula feição com que sua cara se cristalizou ao ouvir de Bento a triste confissão. Seu Vânio, sem nada para acrescentar, deu a volta e desligou o computador, foi ruminar a derrota em seu quarto.
Havia ainda comida no prato de Beethoven. Sentou-se então, dizendo:
— Bento, escuta o que eu tô te falando: o nosso pai é doente. Doente.
— Ele vai encher o saco da mamãe demais — Disse Bento, espremendo o rosto com a mão.
— Você tá com quantos anos?
— Quatorze.
— Quando você tiver dezoito, ó...rua daqui.
Oficialmente desalojado de seu posto como líder da sala de TV, título pelo qual nunca haveria de reivindicar, pelo menos enquanto Beethoven estivesse por perto, restava a Bento se isolar no quarto durante o resto da tarde, até arranjar alguma coisa melhor para fazer. Deixou os pratos sujos na pia e passou o restante da tarde na horizontal, ouvindo música e, de vez em quando, olhando para o novo presente, pensando numa estratégia para usá-lo ou não no dia seguinte. Mas era não era a única preocupação sua mente, havia ainda a festa. “Ah, não”. Pensou em ligar pro Gustavo, mas ele sem dúvida estava ocupado, de certo não estava em casa. Tentou, então, criar a sua estratégia para sobreviver a infinita encheção de saco e a provável humilhação a que Bento passaria na casa de Gilvan. Se a tal amiga da Mayara não fosse à casa de Gilvan, estaria tudo bem. Não havia nada que ele pudesse fazer. Mas e se ela fosse? Então seria melhor encher a cara de uma vez, aí fica muito mais fácil justificar uma eventual, mas certa, broxada: “ah cara, tava muito bêbado”, ou: “cara, você não vai acreditar, mas eu vomitei!”. Quanto mais pensava no dia seguinte, mais nervoso Bento ficava. Sentiu, com a mão na virilha, que seria impossível ficar ereto naquele estado emocional.
A noite veio e Dona Célia também. Bento aumentou o que pode o volume do Heavy Metal. Mas, mesmo por trás da muralha de som, era possível distinguir a voz sofredora de sua mãe, surgindo da cozinha: “Cê tem que arranjar um trabalho de escritório, Beethoven. Já procurou na Itambé, No Martins?”, “você nem vai ao centro espírita mais, Beethoven”, e ainda: “Onde você vai? Você tá misturando remédio e bebida! Tem dó de mim!”
Mais tarde, Bento abriu os olhos com o barulho da porta. Era sua mãe: — Bentinho, vamo lá jantar?
Enquanto Bento tentava dissipar a marofa adolescente do ar no quarto, percebeu os olhos marejados de Dona Célia, e quando passou pela porta, sentiu os dedos da mãe entrelaçarem seu cabelo:
— Ainda bem que você estuda, meu filho.
(...)
No meio da madrugada, Bento seria acordado pelos gestos rudes do irmão ao entrar em seu quarto. Beethoven acendeu as luzes, sentou-se na cama e tirou a bota. Tirou também a escova de dentes da mochila e foi ao banheiro soterrar o bafo de álcool. Um minuto depois, as luzes estavam apagadas e Beethoven já roncava profundamente: “que desgraça”. Sempre quando Bento era despertado assim, ele tinha uma estratégia infalível para reencontrar o sono. Afundava o rosto no travesseiro, abraçando-o mais forte que pudesse, e, ali, projetava na mente um cenário idílico, um bangalô na praia com uma jangada ancorada sobre um banco de areia, ou uma rústica casinha no campo de onde sua pastora o esperaria no batente da porta, debaixo dos últimos raios do arrebol.

Quando o feitiço da lua atravessa o quarto de dormir, os amantes se envolvem num beijo de profundo desejo. Ele desliza a alça do vestido da amada e deita o torso despido sobre o rústico catre, cobrindo-lhe os alvos seios com a saliva e a sede de seus beijos, mordiscando os mamilos e o lábio da dama vermelho em fogo crepitante: “Eu te amo, meu amor. Eu sou sua, meu amor”

E assim, leve como uma andorinha penetrando em uma nuvem feita de sonhos, Bento adormeceu confundindo o toque da capa de algodão com a pele imaginária de Darlene.