Capítulo 3 - "A Viagem da Borracha"

Terceiro capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

— Pode começar, Tia Cilene?
— Vai, mas espera um pouquinho.
A professora Cilene tapou a própria boca com a mão direita e estalou repetidamente o polegar e o dedo médio da mão esquerda no ar, compondo assim o pacto compartilhado entre professora e alunos por silêncio. Aos poucos, as crianças foram se mancando, e as vozes fininhas, se extinguindo até sumirem completamente.
— Ok? Estão mais calmos agora? Gilvan, Fábio, posso falar? Então tá. Meus amores, vamos ouvir a nossa colega Gisele que tá aqui na frente de vocês para ler o lindo texto que ela escreveu, né, meu anjo? Qual o nome do texto?
— É “A linda família de sapinhos” — disse Gisele, rodopiano de orgulho.
— Vai, meu anjo!
— ‘A linda família de sapinhos’ por Gisele Vasconcelos. A fazenda do meu tio Patrocínio tem muito sapo e sapo gosta de cantar de noite. (croac, croac, croac). Minha mãe fala que ela não dorme por causa do sapo da fazenda do meu tio ela não gosta de ir na fazenda mas meu pai gosta e um dia meu tio Patrocínio levou a gente para ver o sapo mas eu não fui eu tenho medo. Toda noite é a mesma coisa canta a mãe canta o pai canta o sapinho filho e a sapinha filha. Que cantoria sensacional!”
Cilene fechou os olhos e emitiu um falsetinho:
— Aaaah, amei, amei, amei! — Que coisinha mais linda o texto da Gisele. Lindo igual a dona, palmas pra ela! — as crianças reagiram com um aplauso desordenado: “êêêêêê”.
Cilene deu um beijo no topo da cabeça e um forte abraço na menina loura.
— Agora faz o seguinte, meu anjo. — a professora se abaixou e olhou nos olhos da pupila — Vai lá na sala da Teolinda e pede assim: “Teolinda, a tia Cilene pediu pra senhora me ajudar a passar a limpo o meu texto pra ficar bem bonito pro nosso livro de final de ano”, tá bom?
— Tá!
Uma miniatura de Gilvan estendeu o braço:
— Posso ir com ela?
— Claro que não, né Gilvan? Todo mundo sabe que você nem começou a escrever o seu texto. Vem pra aula pra ficar conversando com o Fábio, igual a uma maritaca: quá-quá-quá-quá-quá!
Gisele e a criançada toda caíram numa gostosa gargalhada. Bento viu Tales até chorar de tanto rir: “maritaca, maritaca”. Gilvan permanecia seguro de si, impassível.
— É sério, gente. O recado é pro Gilvan mas serve também p’rum monte de monstrinho aí que parece que tão tudo dormindo. Já estamos em setembro. Se vocês não terminarem o texto de vocês, o ano vai acabar e vocês vão ficar de fora do nosso livrinho. Já pensou que coisa feia, todo mundo ter um textinho menos você?
— Mas, tia Cilene. É isso que eu queria falar. Acabei meu texto agora — disse Gilvan, se elevando da cadeira.
— Uai, e cadê?
— Tá aqui na minha mão, posso ler?
Bento admirava a coragem do amigo. Ler em voz alta o próprio texto, uau! O que um garoto não faz pela atenção da Gisele, não é mesmo?
— Eu faço questão, Gilvan! Vem pra frente da sala então, pros colegas te ouvirem melhor.
Bento, Fábio e Tales se entreolharam: “Lá vem”.
Gilvan, agora no centro das atenções, olhou bem nos olhos sentados de Gisele e de Karen, a vizinha de carteira: — O meu texto se chama “Oh, Susana”— Gilvan limpou a garganta:
—“Há-al-go-de-no-vo-nos-gra-ma-dos-Com-a-ca-mi-sa-10-do-Flu-en-tra-em-cam-po-a-es-cul-tu-ral-Su-sa-na-Wer-ner-A-lém-de-a-triz-e-la-sa-be-tu-do-de-fu-te-bol-e-a-ca-ba-de-mon-tar-um-ti-ma-ço-O-que-mais-a-tor-ci-da-po-de-ri-a-de-se-jar?”…
— Se aproveitando do entorpecimento geral pela recitação martelada de Gilvan, a mão de Fábio rastejou feito uma aranha até a mochila aberta do amigo. Tateando por entre os cadernos, Fábio localizou a revista e a depositou sobre a carteira vaga. Bento e Tales viram a armadilha sendo preparada e mesmo assim não fizeram nada para evitá-la. Fábio olhou os amigos nos olhos antes de cruzar os braços sobre a carteira e fingir cinicamente que dormia.
— ...No-Ma-ra-ca-nã-Su-sa-na-vi-ra-tor-ce-do-ra-fa-ná-ti-ca…
— Pode parar, Gilvan. De onde você copiou esse texto?
— De lugar nenhum, fui eu que fiz.
— Gilvan, eu sei que você copiou o texto, só que eu quero ouvir de você.
— É meu.
— Gilvan.
— O Fábio também copiou o dele!
— O Fábio é o Fábio. Você não é o Fábio, você é você. Olha, eu gosto muito de você, Gilvan. Gosto de todos os meus alunos como se fossem meus filhos. Costumo até dizer que eu tenho mil filhos. Por isso eu fico muito triste quando vejo algum deles mentindo pra mim.
Cilene, desviou o rosto para os alunos:
— Meus amores, quando eu peço pra vocês comporem um texto é porque eu quero que vocês sejam criativos, que dêem asas à imaginação que vocês guardam aí dentro de vocês. Não é pra ficar copiando texto de qualquer lugar não…uai, Gilvan, o que isso? O QUE É ISSO, GILVAN?
Cilene arregalou os olhos de um jeito psicótico e percorreu o trajeto de taco até a carteira vaga do aluno, de onde a capa de uma revista mostrava a modelo Susana Werner com um meio sorriso, e os seios protegidos apenas por uma bola de futebol.
— O que é isso, Gilvan. Pelo amor de Deus?
— Foi o Fábio que botou ela aí.
— “Placar”? — É daqui que você copia seus textos, Gilvan? É isso que você fica lendo em casa?
— Não é meu não, tia Cilene. Eu juro.
— Uma revista suja, que pega uma mocinha qualquer aí da rua e coloca ela nua na capa em troca de dinheiro, de fama, sei lá...que trata uma pessoa como um pedaço, uma coisa que serve só pra ver e pra pegar. É assim que você vê a sua irmã, a sua mãe?
— Eu não tenho irmã, nem tenho mãe.
— Isso não importa porque uma revista que denigre uma mulher, denigre todas ao mesmo tempo — Nem passou pela cabeça de Cilene que sua cólera estivesse expondo mais que escondendo a nudez de Susana Werner. Todo mundo acabou vendo a capa da revista.
— A revista é de futebol, num é mulher pelada, não. Uma risadinha abafada brotou do forte construído com os braços de Fábio.
— Eu que sou professora, mas também sou mãe de vocês aqui na escola, tenho o dever de ligar pra sua mãe em casa e contar que…
— Eu não tenho mãe, já falei! — Gilvan percebeu que era inútil se defender.
— ...que o filho dela tá trazendo revista de bobeira pra aula. Gilvan, parabéns! Você conseguiu o que queria. Gisele! Leva o seu amigo na Teolinda fazendo favor, só que o recado pra ele é diferente. Você vai falar assim ó: “Teolinda, a Cilene pediu pra te falar que o Gilvan tá trazendo revista de bobeira pra sala”.
— Ah, não.
— Pode ir — arrematou Cilene e escondeu para sempre a Revista “Placar” em sua gaveta. Gilvan só teve tempo de fechar o zíper da mochila, mas o nosso mártire não sairia sem aplicar um estalo doído na orelha esquerda de Fábio: “Cê me paga, viado”.
Bento sentia muito pelo colega. Uma manhã ouvindo um sermão pela voz sepulcral de Teolinda podia ser pior que o corredor da morte, pior até que a própria morte. Se isso acontecesse a Bento, meu Deus! Ele não saberia o que fazer, talvez engolisse o papel da advertência, talvez fugisse de casa, talvez se matasse. Qualquer coisa menos levar um pito da Teolinda. Pela porta, Bento viu Gilvan cruzar o braço sobre os ombros de Gisele e sumirem os dois pátio afora, rumo ao triste destino que esperava pelo amigo. Que coragem!
Ainda Cilene:
— Se tem gente como o Gilvan e outros monstrinhos por aí que preferem copiar o trabalho de fontes escusas, e que Deus me livre de saber quem são, tem gente que faz o contrário e parece que gosta é de inventar demais. — Cilene tirou da resma em sua mesa, três pares de folhas de almaço grampeadas — Esse daqui escreveu uma, duas, três, quatro, cinco páginas de texto. Tem até um desenho que eu nem consegui entender o que é. Alguém sabe o que é esse desenho? — As duas meninas das filas imediatamente em frente à mesa da professora menearam suas cabecinhas em negação — Bem, o problema é que a pecinha só esqueceu de colocar o nome…
A última informação fez o sangue de Bento congelar e sentir cócegas nas pontas dos dedos. Era dele o texto em posse de Cilene, com certeza.
— Esse daqui parece meio biruta, olha só o título do texto: “A Viagem da Borracha”. Ah! de certo que o desenho deve ser uma borracha, faz sentido.
O coraçãozinho de Bento passou a correr em disparada. Se Cilene dissesse o nome dele em público talvez ele explodisse de uma vez.
— Lê pra gente, tia Cilene! — Disse uma das meninas.
— Vou sim. Às vezes o dono aparece, né? Caroline, você enche a garrafinha d’água pra mim ? Brigado, meu anjo. Vamos lá:
— “A Viagem da Borracha”. Era uma vez uma borracha verde que mora no estojo escuro do seu dono….”
Cilene rastreou se algum dos alunos reagia de forma comprometedora.
— A borracha mora lá com um monte de amigos, o senhor lápis, a dona régua, a senhora caneta vermelha casada com o senhor bic azul. Eles são felizes porque eles ajudam o Lucas resolver os exercícios de matemática e deixar o caderno do Lucas mais bonito. Um dia Lucas acordou atrasado para a escola e esqueceu o estojo aberto em casa, aí o cachorro de Lucas o Xereta entrou. O cachorrinho cheirou, cheirou e cheirou tudo, parou em frente da borracha amiguinha e NHAC! — Cilene abocanhou com a mão a barriga de Caroline que lhe trazia a garrafa d’água, o que fez todo mundo rir…
(...)
Com a palma da mão contra as têmperas, Bento sentiu seu pescoço esquentar, a boca arquear e os olhos franzirem por conta própria. Choraria, era apenas uma questão de tempo. E mesmo assim, Cilene parecia não calar a boca:
— Xereta achou a borracha amarga aí ele largou ela na lata de lixo na hora que o lixeiro estava passando. O caminhão de lixo levou a borracha para o Aterro Sanitário de Uberlândia, aquele a gente foi na última excursão...
(...)
“Rá, rá, rá, rá, rá!” — As risadas infantis lhe pareceram distorcidas e a massa sonora girava em câmera lenta em torno de sua cabeça. Bento não queria enterrar a cabeça na carteira porque sabia ser esse o primeiro anúncio antes do choro público, mas foi inevitável. Bento foi obrigado a aguentar a tortura no quarto escuro de seus braços.
(...)
— A borracha ficou no topo de uma pilha de lixo mas veio uma gaivota com fome e pegou a borracha com o bico. A gaivota voou, voou, voou com seu grupo por muito tempo no céu. Aí ela ficou cansada de carregar a borracha e deixou ela cair lá nos Rio de Janeiro. Dona borracha caiu, caiu, caiu direto nos pés de Edmundo que chutou bem longe pra fora do estádio de futebol... “Meu Deus!” — RÁ, RÁ, RÁ, RÁ, RÁ! — A sala entrou em delírio.
Mesmo na total escuridão, um homem deve procurar na menor fresta de luz o motivo para restaurar a fé no mundo. Mas esse homem deve escolher por encarar sua miséria de frente. e foi isso o que Bento fez ao abrir os olhos. O que ele primeiro viu teve a força de um milagre divino, de uma revelação, uma bóia salva vidas lançada para içá-lo de suas próprias lágrimas.
Por trás do vão deixado por Gisele, debaixo do abecedário de cartolina decorado nas arestas com glitter, lhe sorriu com uma perfeita calma angelical o mais belo rosto imaginado por Deus desde a criação do mundo. A menina tinha cabelos e olhos bem pretos, e ao que lhe pareceu daquela distância, covinhas sutis nos cantos da boca. Meu Deus! um ano inteiro naquela sala, e como Bento não tinha notado essa maravilha? Diferente da manada, ela não achava graça do texto, e não obstante, ela sabia que era dele. A comprovação lhe veio na forma de um milímetro de sorriso, como se transmitisse uma mensagem a ser criptografada pela alma: “não importa se todo mundo ri de você. Eu gostei do seu texto e isso basta!”. Bento encontrou ali — naquele átimo de segundo em que seus olhares se encontraram — um sentido para a vida, e com ele, uma obrigação: daquele momento em diante, toda energia que brotasse de seu corpo e todo o amor de seu coração seriam dedicados a amar aquela menina, para sempre.
(...)
— E aí a história vai... — Interrompeu Cilene a si mesma — Gente, não é que esse texto tá ruim. Ele é só esquisito demais, a borracha vai, a borracha vem, viaja de uma cidade pr’a outra. É esquisito, né?
— ÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!
— Pois é, eu vou parar por aqui porque o sinal vai tocar. Calma, calma! Tá acabando mas ainda não acabou. Só quero reforçar com vocês uma coisinha. Lembrem que o texto tem que ser bonitinho. Lembrem do lindo texto da Gisele e seus sapinhos. Pensem assim: ‘que tipo de história eu quero contar pra mamãe e pro papai? Se vocês tiverem dificuldade, vocês vêm pra mim e me dizem: “Tia cilene, me ajuda escrever meu texto!” e a gente faz juntinho. Agora, não pode copiar e nem pode viajar na batatinha. Eu vou deixar esse aqui na gaveta, e o dono, se quiser, pode vir pegar depois do recreio.
“A Viagem da Borracha” ficou não só durante o recreio mas, talvez, o ano todo ali, esquecido na gaveta de Cilene, misturado com outras tralhas como a revista de Gilvan. Tudo bem, porque havia na mente de Bento coisas mais importantes que a ficção. O novo amor por aquela misteriosa menina o lançou a uma busca frenética e obsessiva por novas informações que começaria naquele mesmo recreio.
A garota ficou os vinte mninutos na arquibancada de cimento, num grupinho que se reunia ao redor de Gisele. Se esta, com seu cabelo cor de manhã e seu carisma de cheerleader uberlandense, conseguia obliterar até sua melhor amiga Karen, o que dirá a pobre menina de sardinhas? Ela não tinha chance alguma e poderia passar a vida inteira despercebida sob a sombra projetada de Gisele contra Karen.
Gilvan tinha sido liberado da sala de Teolinda pouco depois do sinal e resolveu descontar a raiva contra Fábio no futebol. Todos queriam assistir ao massacre.
— Tales, como que chama aquela menina que tá do lado da Gisele? — perguntou Bento.
— Karen.
— Não, do outro lado.
— Ah, é Darlene, eu acho.
— Você conhece ela?
— Não, mais ou menos. Eu já vi ela um dia no centro com a mãe, mas só. Ela é mudinha.
Ao final do recreio, Bento, rapidamente passou pela lista de alunos que estava colada ao lado da porta da sala: "O nome dela devia estar no começo, cadê? Andressa Fernandes, Carolina Guimarães, Caroline...ah, aqui:
“Darlene Castanheira Silva”
Uau! Castanheira! Que sobrenome incrível. Em casa, Bento procurou a palavra na Barsa: “Teria ela uma castanheira no quintal de casa? Ou será que a mãe dela vende castanhas?” As últimas páginas do caderno de Bento serviam exclusivamente para gravar de todas as formas possíveis o nome do novo amor. Darlene com um severo “D” maiúsculo, Castanheira com um gigante “T” em formato de árvore, por cujo tronco Bento e Darlene escalavam toda noite até a casa de árvore dos sonhos onde eles moravam. “Bento & Darlene” dentro de um coração feito de castanha. “Bento Castanheira”. “Darlene Siqueira Castanheira” — “Ihh, isso não soa bem, não”.
Num final de aula, Bento pediu ao seu irmão Beethoven que o esperava no portão da escola:
— Beethoven, ‘cê tem dois reais?
— Pra quê?
— Cê não quer tomar sorvete, não?...
O humilde bar e sorveteria ficava na rua Tapuios, na saída alternativa da escola, por onde Darlene sempre passava para ir pra casa. Bento apressou o irmão o máximo que pôde: “Vamo, Beethoven”. Enquanto o irmão escolhia os sabores, Bento procurou por sinais da menina pela turba de coleguinhas. Não viu ninguém.
— “Toma, doido. Cê não queria sorvete?”.
Quando os irmãos retomaram a calçada, uma bicicleta guiada por um rapazote quase passou por cima de Beethoven: “Cara maluco!” Na garupa, lá estava Darlene. E os olhares dos dois se cruzaram pela segunda vez. Será que ela tinha um irmão mais velho também, como Beethoven?
E assim, setembro tornou-se outubro, e outubro, novembro. E por mérito compartilhado entre tia Cilene e Teolinda, o livro de produções dos alunos da terceira série estava prestes a ser publicado. Faltava apenas a foto de final de ano.
Numa tarde de sexta feira, Teolinda anunciou da porta da sala de aula, fria como um decreto de governo:
— Bom dia Dona Cilene, dá licença. Boa tarde, crianças. Eu preciso de duas filas próximas a mim. Meninas do meu lado direito e meninos do lado esquerdo. Em si-lên-cio!
Por falta de uma ideia melhor, Teolinda e Cilene organizaram os alunos no pátio de concreto na disposição universal dos times de futebol: meninos de cócoras, meninas em pé. Bento sentiu que, talvez, o destino estivesse a seu favor naquela tarde de euforia. Num grupinho, Gilvan conversava com Gisele, ao que Fábio se uniu para entreter Karen, deixando Darlene absolutamente livre. Bento largou Tales sozinho, e se deixou ser cegamente levado pelo destino. Estas foram as primeiras palavras de Bento direcionadas à quem acreditava ser a futura mãe de seus filhos:
— Darlene, cê gosta de desenho?
— Oi? — disse Gisele, em nome da amiga.
— Para de ser esquisito, sô — disse Fábio.
A tarde fez a Bento o favor de se alargar por um instante para que ele pudesse sorver novos detalhes do rosto de Darlene: as manchas de castanho claro que explodiam sobre uma íris tida até então como profundamente negra, ou a constelação de sardas que recriavam a história do Universo ao longo da bochecha branca.
— Darlene, que desenho você gosta mais? Eu gosto do Shurato.
— Shurato é ruim demais, todo mundo sabe que YuYu Hakusho é dez mil vezes melhor — Intrometeu Gilvan.
Todos pareciam responder em nome da menina. Demorou um pouco para que Darlene soltasse bem baixinho suas duas sementinhas de palavras:
— Sailor Moon.
O fotógrafo só esperava o sinal de Teolinda para cumprir o seu trabalho. E para pôr a meninada na linha, bastou apenas um último golpe de impaciência da Supervisora: “Olha o flash em cinco!...quatro!.. Renato, sai da poça de água! Três...Gilvan, Fábio e Bento, vem sentar com os meninos. Dois...Paula, olha pra câmera….Prontos? Uuuum!
No último dia letivo, Dona Xantipa, a diretora do Joaquim Saraiva, reapareceu anunciando pelo microfone a abertura da festividade de encerramento do ano. Nem Célia, nem Vânio puderam ir, mas enviaram Beethoven em nome dos Siqueiras, o que foi bem legal. Houve apresentações de dança, um teatrinho qualquer e, claro, a leitura de “A Linda Família de Sapinhos” de Gisele Vasconcelos.
— Essa menina vai ficar bonita quando crescer — confidenciou Beethoven ao irmão.
O funcionário da gráfica rápida empilhou todos os livros encadernados sobre uma comprida mesa trazida da cantina apenas para o evento, e foram as próprias cantineiras que distribuíram os exemplares às famílias. Bento tinha escrito às pressas um novo ensaio chamado “As Belezas Naturais de Uberlândia” que tinha sido muito bem recebido pela crítica literária do Joaquim Saraiva. Darlene publicou um robótico texto chamado “Minha Família”. E mesmo assim, não se viu sinal nem de Darlene nem de ninguém da família dela na plateia. Para ver o rosto da amada, Bento teria que se contentar com a foto da contracapa. As bordas da página, como se adivinhassem seu estado de alma no dia da foto, foram ornadas com uma margem feita de estrelas cadentes com linhas pontilhadas em lugar das caudas. No topo, lia-se a inscrição, corretíssima: “Momentos e Pessoas para Serem Lembrados”. Como esquecer esse dia?
Vieram então as férias. E Bento logo percebeu que elas seriam um martírio que se repetiria todos os anos desde então: “será que ela voltaria pra turma no ano que vem”? Felizmente, lá estava ela na chamada da quarta série. Por outro lado, não houve qualquer evolução no quadro de tentativas de aproximação. Para tornar a situação ainda mais confusa, Tales perguntaria certo dia ao amigo, sem rodeios:
— Bento, você gosta da Darlene?
— Não, por quê?
— Você deixou o caderno aberto. Tava escrito nome dela, tipo, um milhão de vezes. Fez até um desenho dela.
— E quem mais viu?
— Só eu, porque eu fechei.
— Tá bom. Mas não conta pra ninguém não. Tá? Você jura?
— Juro...
Foi inocência acreditar que Tales não contaria ao primo, Fábio. A partir de então, deu-se início à era da avacalhação total. poucos dias depois, Bento voltou do recreio com um bilhete malfeito sobre sua mesa, abriu:
“Vamos conversar depois da aula? Quero te contar uma coisa muito importante...Ass: Darlene”
Fábio e Gilvan não conseguiam se manter sérios o suficiente para a pegadinha ser convincente:
— Cara, eu não sei o que é mais triste: isso, ou o pouco caso que vocês fazem da minha inteligência…
Outro dia, quando Darlene foi solicitada a resolver os exercícios de matemática no quadro, todos eles resolveram escancarar: “Baba não, Bento!”, “Aôô, coração xonado!”. Mas o pior se deu quando Bento, um eterno “café com leite” nos esportes, resolveu participar de uma partida de "três cortes” somente para poder ficar mais perto dela na educação física. Um grande erro: assim que chegou a sua vez, Bento cortou a bola direto no rosto de Darlene, a pressão da menina até caiu. Desde então preferiu se esquivar de qualquer investida e cultivar sua obsessão de forma mais discreta possível.
De vez em quando, Tales, o menos malvado dentre os amigos mas ainda capaz de alguma malícia, soltava um:
— A Darlene tá bonitinha hoje, né?
Ao que obrigava Bento a retrucar:
— Você acha? Acho que ela tá meio desleixada.
— Vou te contar um negócio. Acho que ela gosta do Gilvan. Eles estão andando muito juntos. Olha a cara que ela faz quando ele fala. Acho que eles acabar ficando...
— Tomara que eles fiquem. — Foi o suficiente para soterrar a alma de Bento até a mais profunda catacumba.
À noite, em casa, ele chorou no escuro, escondido de Beethoven. Como era difícil amar alguém!
Sua última tentativa séria de aproximação aconteceria um ano depois, na quinta série, quando Darlene caiu no seu grupo de trabalho na aula de História. A professora Edna pediu para os alunos apresentassem uma peça teatral, primeiro para a sala e depois para a escola inteira. Seria essa a grande chance de Bento aparecer, de mostrar os talentos para Darlene e todo mundo. Além do papel principal, Bento acumularia os cargos de roteirista e diretor, apenas para controlar a distribuição de papéis como bem entendesse. ele interpretaria, claro, o sanguíneo e viril D Pedro I. Como represália, pensou em separar o papel do pérfido Chalaça para Gilvan, e para a amada, a da Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, aquela que roubou o coração do Imperador e quase revirou de cima a baixo o primeiro reinado. Tudo certo!
O roteiro estava pronto e Bento já sonhava com os primeiros ensaios na casa de Gustavo. Mas, vejam só como são os caprichos do destino! Se não fosse o triste falecimento de dona Edna, um mês depois, talvez a escola inteira tivesse sido testemunha de um amor que nasceria nos palcos e que naturalmente invadiria a vida. Uma pena.
No ano seguinte, a verdadeira tragédia: Darlene Castanheira não mais constava na chamada do sexto A, e sim da Sexta B. Isso significava que não mais teria como descansar seus olhos durante a aula em sua amada, tendo Bento que esperar pelas migalhas, uma vez ao dia, nos vinte minutos do recreio. E isso não é vida que vale a pena ser vivida.
Como é de se imaginar, Bento não conseguia mais vigiar Darlene com a mesma energia de antes. E para complicar mais as coisas, Darlene parecia diferente. Ela passou a andar com umas meninas esquisitas, umas meninas que gostavam de pagode, que eram fãs do Rodriguinho d’Os Travessos e que às vezes cantavam e dançavam Funk no recreio. Com elas, Darlene voltava para casa, dispensando a carona do irmão e sua bicicleta. Seu cabelo frequentemente mudava de cor — vinho, vermelho, preto escuro — Ela ganhara uns quilos e mesmo assim, usava calças chamativas, cada vez mais apertadas.
— Ela foi se afastando, normal — disse certa vez Gisele, quando esta já namorava Gustavo.
Na sétima série, Darlene cairia para a vala da sala C. Era o fim. Bento então tomou a decisão definitiva: nunca mais nutriria aquele amor, deixaria que ele morresse por inanição, por abandono. Chega! Ninguém vive de ilusão por tanto tempo. É preciso escolher a vida, sempre.
(...)
Quanto tempo se faz necessário até que um coração se regenere e fique bom para amar de novo? Depois de um longo inverno da alma, Bento descobriria que um ano poderia ser suficiente. Na primeira semana letiva da oitava série, Teolinda acompanhou uma mulher estranha pelas escadas até a sala da oitava A no segundo andar:
— ...basicamente as chamadas tem que ser digitalizadas, então, no final da aula, você desce e preenche lá no laboratório a planilha. Mas isso eu te mostro mais tarde… “Humhmm…” — Quem estava de pé, foi obrigado a se sentar.
— Bom dia, alunos. Como vocês devem saber, a Secretaria de Estado de Educação vem promovendo recentemente, não só aqui em Uberlândia mas em todo lugar, uma reestruturação profunda na grade horária do ensino fundamental. E a escola está bastante preocupada, correndo atrás para dar conta das mudanças que nos chegaram de uma hora pra outra. A começar pela instituição do sexto horário para algumas séries que…
Conversinhas emergiram — todos odiavam o sexto horário.
— Silêncio, que eu estou falando!...Bem, a começar pela instituição do sexto horário, mas essa não é a única mudança. Outra novidade é que esse ano vocês terão aulas de disciplinas daquilo que o MEC chamou de “Ciclo Formativo”. Compreendendo as disciplinas de Educação Sexual — aêêêêêê... — de Artes e Música. Quero aproveitar o ensejo e apresentar para vocês a Giovana que estará com vocês o ano todo, né professora? A Giovana será professora de Artes de vocês. Dito isso, vou deixar vocês a sós. Espero que vocês façam um ótimo trabalho juntos e não dêem trabalho para a Giovana, posso contar com vocês? Professora, deixei o projetor e os cabos na mesa. Se precisar de mim estou lá embaixo...
— Muito obrigado, Teolinda.
Alguém esperou Teolinda sair completamente para assobiar para Giovana de forma anônima: “fiu-fiuuu”. Ao que Gisele, Karen e outras meninas responderam com cara feia.
— Bom dia, pessoal. Que calor, hein? Bem, deixa eu me apresentar de novo. Meu nome é Giovana, todos já sabem, e sou mestranda no curso de Psicologia aqui na UFU. Meu mestrado é na área de Psicanálise e Cinema e venho trabalhando há dois anos com ensino em várias escolas daqui de Uberlândia e posso dizer que estou adorando a experiência...
— Quantos anos a senhora tem? — Perguntou Goianinho, do fundo da sala. Todos riram de leve.
— Eu tenho vinte e quatro anos. E você, qual o seu nome?
— Jadson, mas todo mundo me chama pelo apelido, Goianinho. A senhora tem namorado? — Dessa vez a turma riu violentamente.
— Não, tudo bem. Eu gosto de gente curiosa. Não, eu não tenho namorado, ô Goianinho. Mas agora eu tenho uma pergunta pra você: qual foi o último filme que você assistiu?
Goianinho não titubeou: “Jackie Chan”.
— Jackie Chan é um ator e não um filme.
Várias respostas surgiram, indistintas: “As Panteras, sei lá”, “não lembro”, “acho que foi X-Men”.
— Vocês sabiam que o cinema é um tipo de arte? Vocês por acaso sabem pra que existe a arte?
— Sei não, fessôra… — disse Goianinho.
— A arte existe porque todos nós precisamos de sonhar, da mesma forma que precisamos de pão, de água e de uma casa para morar. A arte existe para que a gente se expresse diante das alegrias, das tristezas e das incertezas da vida. A arte existe, gente, pra complementar a vida, porque a vida não é o bastante!
Talvez não para a vida, mas foi o bastante para o coração do pobre Bento: estava entregue. Vejam só como são os caprichos do destino!