Capítulo 4 - “É só beber, beber até passar mal”

Quarto capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

“Bora acabar com isso logo, vai doer menos se for rápido”. Foi o que Bento pensou enquanto espalhava com o dedo médio, ao longo da jugular, mais uma gota da amostra de perfume. Respirou fundo para ganhar coragem e destrancou a porta do quarto. Não tinha jeito, estava na arena pública e teria que enfrentar o escrutínio familiar sozinho. Por mais que Célia, sua mãe, pudesse protegê-lo de uma investida mais cruel vinda do irmão ou do pai, o achincalhe é certo. Ninguém se veste com as melhores roupas e vai embora incólume sem um mínimo de encheção de saco. Na cozinha, Célia misturava com uma colher de pau uma panelada de frango caipira, e Vânio, por sua vez, estava sentado à mesa, abrindo o apetite com azeitonas e uma meia lua de queijo fresco. Bento então, apareceu à porta:
— Mãe, Pai. Tô indo.
—Por que cê tá vestido assim? — disse o pai.
— Ele não vai almoçar hoje não, Vânio. Ele tem festa pra ir — disse Célia, limpando as mãos no pano de prato — Beethoven, tá pronto!!!
— Festa? Ninguém me falou de festa nenhuma.
— Festa da sala, pai. Eu não falei porque achei que o senhor não ia se interessar.
— Cê vai com quem?
— C’os meninos de sempre.
Beethoven entrou na cozinha com uma pergunta: — Cês sabem qual foi a coisa do Brasil que eu mais senti saudade lá na Flórida?
Ninguém pareceu curioso em saber.
— A coisa que eu mais senti saudade foi açafrão. Lá não tinha de jeito nenhum, nem nas lojas dos brasileiros nem no Farmers Market. — Beethoven pegou um dos pratos de vidro escuro e continuou — Falei que o tênis ia ficar bom em você, Bento. Cê ficou até mais alto. Agora, essa bermuda de flor é de viado.
— Bento, eu só te falo um negócio — Vânio levantou a faca do queijo — se você beber você vai ver, escutou? Já não basta o outro aí dando trabalho.
— Ele não vai beber, não. Porque ele sabe que ele não pode por causa do remédio né, Bento? — respondeu Célia ao marido, mas com o olhar sobre o filho mais novo.
— Claro.
— Que remédio que ele toma? — tudo era novidade para Vânio.
— O de espinha.
— Não pode beber e nem pode ter filho também não. Beethoven interrompeu cientificamente — Dizem que se você engravidar tomando Roacutan, o filho nasce deformado...
— Ah, então já sei o que a mamãe tava tomando quando teve você.
— Rá, rá! Boa. Mas ‘cês podem ficar tranquilos que não tem perigo do Bento ter filho, não. E outra coisa. Cê exagerou no perfume, dá pra sentir a murrinha lá da sala.
— Você vai como pra lá? — perguntou Vânio.
— De carona com a mãe de Tales.
— Não conheço.
— Vânio, a mãe do Tales é a Carmem, pelo amor de Deus. Ela foi professora dos meninos por muito tempo.
— Lá no Messias?
— Não, quem estudou no Messias foi o Beethoven, o Bento estuda no Joaquim Saraiva, desde sempre.
Novamente Beethoven:
— Por que que eles chamam o Tales de Jegão?
—Beethoven, vai pra sala! E Bento, se não for almoçar, pode ir.
Era uma pena abandonar o almoço de sábado porque ele era feito com mais carinho do que o do meio da semana. Por outro lado, nem passou pela cabeça colocar qualquer coisa para dentro além da vitamina que havia tomado de manhã, afinal sua boca estava amarga e o esôfago rígido feito pedra. Tal qual um animal sozinho na selva escura, era preciso manter-se alerta, porque seria aquele um longo dia em que o fantasma da humilhação estaria à espreita em qualquer canto. Forçando a não pensar em nada e sem saber que força misteriosa guiava seus passos, Bento se arrastou até o portão de ferro da garagem e seguiu seu destino a pé, debaixo do onipresente sol de cerrado.
A apenas a um quarteirão de distância, Bento já se sentia suado. Seu cabelo penteado para trás e úmido pela água do banho perdia aos poucos a forma coesa, com uns fios arrepiados saltando à revelia. Uma poça de suor se formava pelas costas, depreciando a camisa verde da Cavalera que a Célia havia lhe comprado para a especificidade de uma festa. Bento vestia também uma bermuda azul com flores brancas, “de viado”. E, finalmente, abaixo das canelas, o horroroso presente de Beethoven. Nenhuma das peças harmonizavam entre si, mas eram, pelo menos, roupas novas, as melhores que tinha.
Com os mercadinhos e padarias fechados e sem os alunos fazendo escândalo na volta das aulas, as ruas do Saraiva eram silenciosas nos fins de semana. No ar, ouvia-se apenas um mesmo som, a voz de um repórter, escapando pelas portas abertas e pelas grades das casas ao longo da rua Tamôios:

— ...Nascimento, os presos ainda mantêm pelo menos oito pessoas como reféns. Seriam policiais, agentes penitenciários e operários de uma obra. A rebelião começou por volta das oito e meia da manhã, quando bandidos da facção criminosa comandada por Fernandinho Beira-mar invadiram uma galeria vizinha e atacaram um grupo rival. Segundo a polícia, entre os seis mortos estão Ernaldo Pinto de Medeiros, “o Uê”, e Celsinho da Vila Vintém, dois dos traficantes mais perigosos do Rio...

“Será que a Mayara já estava na casa do Gilvan?” Bento tentou notar qualquer movimentação feminina pela janela, enquanto andava pela calçada oposta à casa de onde aconteceria a orgia. De certo que não, porque o Fiat Uno do Gilberto, o pai de Gilvan, ainda estava na garagem. Bento então fez de tudo pra proteger uma fagulha de pensamento positivo que acendeu em sua alma: talvez daria tudo certo, haveria uma menina pra cada um e finalmente Bento se livraria da mancha da virgindade sobre o seu nome. E mais! Na segunda-feira, todos se encontrariam na escola, felizes da vida, trocando detalhes da própria performance sexual. Mas a chama facilmente se extinguiu com a primeira brisa de realidade. Convenhamos que o mais provável é que dê tudo errado. Bento tentará esconder seu pênis flácido sob os risinhos de desprezo da garota. Mais tarde, ela vai contar para as amigas, e depois, pra escola inteira que Bento Siqueira era um incrível broxa. Seus amigos, sem dúvida, o ridicularizariam até o final do ano...Isso não! Broxar, nunca! Qualquer medida para evitar as vias de fato seria preferível a ser marcado como broxa. Melhor mesmo seria retornar à estratégia inicial: beber até passar mal. Assim, Bento não poderia ser cobrado por algo que ele não estaria em condições de executar. Ou seja, não chegaria a ganhar nenhuma batalha, tampouco perderia batalha alguma, pois não terá sequer chegado a lutar por ela. É isso: beber, misturar tudo e passar mal. Em frente ao prédio dos primos. Bento optou por interfonar o apartamento de Fábio antes do de Tales. Não queria dar de cara com a ex-professora, não sozinho.
— Quem?
— Eu, Bento.
— Sobe aí — KREEK!
Bento subiu as escadas e, na porta, Fábio o recebeu de cueca. Por reflexo, conforme era do feitio dos uberlandenses, Fábio analisou o vestuário de cima a baixo, demorando um olhar de espanto no tênis cor de cimento. Espanto que Fábio não conseguiu disfarçar direito:
— Olha só, tênis novo, hein?
— Uai, Fábio. Cê não tá pronto, não? Cê falou pra gente sair meio dia e meio.
—Nada sô. Tomar um banho rapidinho. Espera lá no quarto, daqui a pouco eu chego aí.
A TV insistia no noticiário criminal e mostrava uma imagem aérea, dessas filmadas provavelmente por um helicóptero, de um presídio no Rio cercado por policiais. O pinscher de Fábio desatou a latir e a ameaçar Bento, obrigando a mãe de Fábio, que ainda terminava o almoço em frente a TV, a estender o chinelo no ar em ameaça: “Princesa! Vem pra cá!”.
O quarto de Fábio parecia um verdadeiro forno, talvez uns cinco graus a mais em comparação à média da sala. Um velho lençol infantil, com a estampa do Mickey, fazia o papel de anteparo contra o sol poente de todo dia. A cama, pequena como o próprio dono, estava perfeitamente arrumada. Na parede, ficavam penduradas algumas medalhas de campeonatos de futebol, algumas delas celebrando Fábio como artilheiro do torneio de 99, 2000 e 2001. Havia, na escrivaninha ao lado da cama, dois porta retratos com fotos de Fábio criança, a primeira, da formatura do primeiro ano, com o menino praticamente um bebê segurando um diploma e vestindo uma gigante beca azul, a segunda foto, mostrava Fábio no gramado do estádio João Havelange com o antigo ídolo do Palmeiras, Paulo Nunes. Havia ainda um minúsculo ventilador que, sem dúvida, não fazia muita diferença naquela estufa. E claro, o fichário, ao qual Bento se habituara a ver todos os dias na escola.
Fábio reapareceu envolvido numa toalha. Como se o quarto não estivesse quente o bastante, o amigo fez o favor de dificultar a circulação de ar, quando, com cuidado, foi fechando a porta e perguntando a Bento, bem baixinho:
— E aí, cê comprou?
— Comprou o quê?
— Camisinha, uai! Ou cê vai jogar sem chuteira?
— Porra, cara. Esqueci! — Na verdade, nem passara pela cabeça de Bento que ele devesse ter comprado. Nem ao menos para tornar seu disfarce mais verossímil.
— Tem problema não, eu tenho. Quantas você acha que você precisa?
— Ah, acho que uma tá bom.
— Rá, rá, rá - Tá certo…
Fábio abriu a porta do armário que escondia um grande espelho no lado interno. Bento viu seu reflexo tentando pegar no ar a Jontex que o amigo havia lhe lançado. Fábio —Bento Sabia — sentia uma espécie de prazer em se perceber sendo visto e admirado, seja por homens ou mulheres, e não perdia a oportunidade de exibir seus músculos bem delineados e harmoniosos em seu pequeno corpo atlético. Talvez pela experiência em vestiários em campeonatos de futebol estado afora, Fábio ficou totalmente nu sem pudor nenhum. No armário o amigo guardava três vezes mais o número de peças de roupa que Bento. Suas cuecas pareciam caras, com um elástico reforçado, diferente do coador de café que Bento usou desde criança. Perfumes, Fábio tinha uns sete, um para cada humor. O amigo vestiu a bermuda e, de um jeito muito próprio, como se exibisse certa prática, arrumou a própria genitália de forma a torná-la um montinho visível pela braguilha.
— Bento, você acha que elas batem também?
— Como assim?
— Siririca, cê acha que elas batem siririca pra gente?
— Ah, não sei, que que você acha?
— Eu acho que sim. Acho que elas batem igual a gente. E eu acho que mulher gosta mais de sexo que a gente.
— Posso ligar o ventilador?
— Liga aí. Saca só o que eu arranjei, ó.
— Que isso?
— Lubrificante, quer ver? Estica o braço. Agora cheira.
— Hmm. Hortelã.
— Elas ficam loucas, Bento. Loucas, com esse negócio. — Mas passa isso no homem ou na mulher?
— Rá, rá. Cê é engraçado demais! Na xaninha, claro. Elas ficam loucas!
— Que isso, que sorte da Monalisa. Cê vai matar ela de prazer.
— QUE DEUS TE OUÇA! — Fábio voou para cima de Bento simulando repetidas penetrações no ar. “Sai fora, cara”.
— Me chamou, Fábio? — disse a mãe ao fundo.
— Chamei não, mãe!
— Penteia o cabelo logo, cara. Tô derretendo aqui.
— Calma, calma. — Fábio estava apenas no meio de seu lento ritual. Voltou ao banheiro para secar e pentear o cabelo. Lá, passaria o gel, o laquê, o desodorante e outra leva de perfume. Para o ponto alto de sua exibição, Fábio, de volta ao quarto, retirou da última porta do armário uma urna de papelão toda preta com apenas uma inscrição: um elegantíssimo e minimalista logotipo da Nike. Dentro dele, jazia, talvez, o maior troféu de Fábio, um doze molas absolutamente cromado e que lhe emprestava um ar futurista. O tênis era lindo e mais parecia um carro importado. Talvez Fábio preferisse vesti-lo na cabeça ou pendurá-lo no pescoço em vez de sujá-lo com o barro vermelho das calçadas e, mais tarde, com a nhaca pegajosa da cerveja derramada, mas acabou vestindo nos pés como era de se esperar. Mesmo com o penteado perfeito, o pequeno galã não sairia de casa sem o apetrecho obrigatório do jovem Uberlandense, o boné de tecido de marca cara. Fábio afofou o boné de leve contra o topo da cabeça, sem que desmanchasse o topete e disse: “Bora”. Bento se levantou em direção à sala, mas o amigo ainda encontraria tempo para borrifar perfume dentro da cueca e desligar o ventilador.
— Mãe, tamo indo pro Jegão, quer dizer, o Tales.
O pinscher correu para morder a canela de Bento, mas foi interrompido com a interjeição: “Princesa!”.
Bento e Fábio desceram um lance de escadas, e Fábio se antecipou no corredor diante da porta do 102: Alô, meu amigo Jegão, você está sendo convocado para a festa da sua vida! — TUM, TUM, TUM…
Tales atendeu à porta completamente vestido e pronto para ir embora.
— Seu cabelo tá duro — disse Fábio.
— É gel.
— Você passou maquiagem?
— É base pra disfarçar as espinhas.
— Bora?
— Bora, só avisar a minha mãe. Mãe, tamo descendo!
Quando a porta da garagem se abriu, Tia Carmem surgiu da janela de seu Ford Ka com a cara amassada dos que fazem um grande esforço para sair de casa num sábado à tarde. Os meninos entraram no carro que estava mais abafado que o quarto de Fábio, e Bento sentiu que precisava de um segundo banho. Tia Carmem reconheceu Bento pelo retrovisor:
— Oi, Bento, quanto tempo você não vem aqui em casa! Sua mãe tá boa? Num vejo ela mais no banco...
— Tá boa sim. Ela tá no banco ainda, só que ela não tá no centro mais, não. Ela mudou de agência depois do assalto… — Hãn… — Partiram.
Era sempre estranho encontrar uma professora num momento de intimidade, com as roupas de ficar em casa; mas Bento sentia um certo carinho pela eterna tia Carmem, simplesmente porque, certa vez, ela elogiou um desenho de um corpo humano que Bento havia feito para o trabalho de ciências. "Tá na hora de investir no seu talento, hein!” foi o que ela disse. Grande tia Carmem! Era uma pena que ela não gostasse muito do Gilvan, nem do Goianinho e nem de outros colegas do filho. Os únicos amigos que Tia Carmem efetivamente aprovava como companhias confiáveis para o filho eram Bento, Gustavo e Fábio, ainda que não tivesse escolha em relação ao último, já que se tratava de seu sobrinho.
Tanto Fábio e Bento no banco de trás, como Tales no da frente, não perderam a oportunidade de espiar por um átimo de segundo e de um jeito não natural a movimentação no cafofo de Gilvan. Não havia nada de diferente. Mesmo assim, Fábio não conseguia se conter de excitação, ora se buscava no reflexo do retrovisor para arrumar o topete, ora dava tapinhas na nuca de Tales: “Pára!”.
— Esse clima abafado assim não é normal. Prepara que hoje é chuva, e chuva até amanhã. — Disse Carmem, olhando para o amplo céu após ganhar as longas vias da avenida Rondon Pacheco. Seguiram.
No início da avenida Nicomedes Alves dos Santos era possível avistar, emergindo no horizonte, as primeiras mansões que compunham o cenário do Morada da Colina, um bairro que vinha sendo lentamente ocupado, lote a lote, pelos novos ricos do triângulo mineiro. O bairro era um verdadeiro Shopping a céu aberto, ou talvez, uma vitrine sem vidro de casas prósperas, cada uma delas mais ampla e luxuosa que a outra, seguidas, por sua vez, por alguns lotes baldios que tão cedo seriam adquiridos e ali abrigariam casas cada vez mais amplas e luxuosas. Não havia pedestres no Morada da Colina e, em algumas ruas, as casas nem tinham muro, o que emprestava ao bairro um invejável aspecto de subúrbio americano.
— Ó o carro do Goianinho ali — avistou Tales.
— E o Jadson dirige, por acaso? — perguntou tia Carmem.
— O carro é do pai dele, mas parece que ele pega às vezes.
— Que isso, que música alta! Quem que mora aí?
— É um primo dele, não sei quem é não.
— Olha só, meu filho... — Carmem estacionou o Ford Ka na primeira vaga que viu, anunciando que viria um assunto sério — Eu tenho muita experiência de vida e sei dizer que isso daí, apesar da casca de riqueza, tem a cara de república. Isso aí é uma república de gente rica. Então...— Carmem segurou com carinho o rosto de Tales, forçando todos a compartilharem a intimidade entre mãe e filho — eu sei que vocês são jovens e devem tá tudo doido para experimentar a liberdade de vocês. Mas eu só peço que vocês não troquem, nunca, uma amizade incerta de alguém que pode te forçar a, sei lá...entrar num carro em alta velocidade — (“Pff...” - Fábio debochou em silêncio) — de alguém que pode te oferecer uma droga — “ah não, mãe, pára!” — pelas pessoas que realmente se importam com você pelo o que você é e que sempre vão estar do seu lado — “Já entendi, posso ir?”. Eu sei que eu estou falando demais, mas é algo que eu aprendi com a vida: família é pra sempre. Sei também que vocês são responsáveis e os santos acabam pagando pelos pecadores. Mas eu me preocupo mesmo é com os outros. O Goianinho é filho de vereador famoso, você não pode esquecer. Sua mãe, meu filho, infelizmente, é só uma professora. O Gilvan era outro menino bom e que agora parece que foi na onda do outro — “Eu vou embora, Tchau mãe…”— Péra!... Então me dá um beijo — “Pelo amor de Deus, mãe. Tá bom”.
Tales beijou a mãe, acanhado.
— Tchau, Carmem. Tchau, tia. Pluft, pluft! Estavam livres.
Os três meninos foram deixados em frente à muralha branca que escondia uma inconfundível marofa de carne na brasa, maresia de piscina, cerveja e pagode. Fábio se certificou de que a tia Carmem havia sumido do horizonte para acionar o interfone. Bento lembrava-se do mantra: “É só beber, beber até passar mal”. Quem os recebeu no portão foi um agroboy que mais parecia um sósia de Fábio mais alto e mais gordo: “Nome?”
— Fábio, procura aí, “Fabinho”. Eles estão comigo.
— Ah, cê que é o Fabinho. Entra aí, sô.
Quando entraram, Bento sentiu os olhares de todos pesarem contra ele e os amigos, seguido por uma expressão geral de decepção e desdém. Talvez as pessoas da festa esperassem convidados mais importantes, ou um grupo de meninas bonitas, quem sabe? Mas eram apenas eles.
O público da festa era composto um sessenta por cento de rapazes, alguns deles mais velhos, prováveis calouros de uma engenharia, ou de um curso de Faculdades privadas, mas todos eles gravitando em torno de um quarenta por cento de meninas, dentre elas, vários rostos conhecidos.
Essas festas eram um momento em que as meninas mais jovens, como as colegas de Bento, poderiam se aventurar democraticamente por entre o público universitário. Algumas delas, como a Raíssa e a Letícia, nem eram naturalmente bonitas — Bento sabia disso pois as via todos os dias de uniforme e sem chapinha — mas, quando vestiam suas blusinhas laranja e verde limão e seguravam o copo plástico de cerveja elas ganhavam novo frescor e, de repente, tornavam-se desejáveis, de igual para igual com qualquer mulher da faculdade.
Bento sentiu-se aliviado quando achou o Gustavo no meio da multidão. Tentou acenar para ele sem sucesso, mas tinha muita gente ao redor da piscina e o som estava realmente alto demais. Além disso, Gustavo estava com Gisele, e quando Gustavo estava com Gisele significava que Gustavo estaria exclusivamente com Gisele, cumprindo seu papel de namorado em detrimento do de amigo. Não havia como contar com ele, Bento sabia.
— Bora lá, falar com o povo — Fábio postou-se como um líder natural.
Os meninos foram lentamente deslizando por entre os espaços vazios dos núcleos de gente, palmilhando com cuidado as pedras da borda da piscina.
Havia na mansão um quiosque situado no lado esquerdo do jardim de entrada que havia sido transformado numa sala de comando da festa, onde um churrasqueiro cuidava da carne e a fatiava em tiras quando estivesse pronta. Ao lado dele, dois voluntários distribuíam a cerveja infinita aos que estendiam o copo de plástico em frente ao freezer feito de balcão. No lado oposto, à direita da piscina, alguns integrantes do D’Sunga — banda de sucesso local e que contavam com Goianinho como um dos integrantes — montavam lentamente o próprio equipamento. Um homem gordo, provavelmente o dono da mesa de som, testava os microfones, sobrepondo sua voz à música mecânica: “um, som; um, dois; som...”.
“Olha quem ta aí!!” — Abriu-se o espaço para formar um grupo composto pelos três meninos, Gustavo e Gisele.
— Gente, eu sei que vocês acabaram de chegar, mas eu já vou pedindo licença. Amor, eu tenho que ir lá no portão porque a Karen deve tá chegando, fica aí que eu vou lá ver — Disse Gisele, abandonando o namorado. Gustavo aproveitou o ensejo para puxar assunto:
— E aí, parece o que o rock já começou lá na casa do Gilvan. Cês tão de boa?
— Claro, né meu parceiro? O foda é que tem muita mulher aqui também — disse Fábio olhando de um lado pra outro.
— Gilvan te falou quem tava na casa dele? — Perguntou Tales, sisudo, tentando esconder o nervosismo.
— Não. Só falou que o pai dele vai passar cedo, então fica esperto.
Não havia muito tempo para Bento, era preciso beber rápido. Ele se prontificou a pegar a primeira cerveja. No caminho até o freezer, viu Goianinho, vermelho de cachaça, beijando Raíssa atrás de uma palmeira (Bento a reconheceu pela saia jeans). Viu também Wellington, o menino mais velho e mais alto da sala, fumando um cigarro com o rapaz que guardava os carros. Na pia do quiosque, ao lado do freezer, havia um galão de vinte litros preenchido na sua quase totalidade por um líquido turvo da cor amarela. Perguntou à universitária do outro lado do balcão:
— Que é isso?
— Batida de abacaxi, quer?
Bento resolveu passar a pena nos amigos e bebeu dois copos daquele negócio de uma só vez. Quase se esqueceu de resgatar a cerveja e os copos. Quando voltou, já sentia os reflexos lhe faltarem e a vista um pouco menos definida.
— Porra, eu já tô bêbado! - disse Bento a Gustavo.
— Calma, cara. Come carne, se não você vomita aí.
— Cê vai beber?
— Ai, cara. Pior que eu não posso, a Gisele não gosta. Mas bota um copo p’ra mim rápido.
— Velho, de onde veio essa galera? Achei que ia ser só o povo da escola mesmo. Toma...
— Sei lá, deve ser um povo da UFU.
— Véi, e tipo. Como que eles arranjaram tanto dinheiro assim? Tipo, tem flanelinha, tem churrasqueiro, tem até garçom! — Bento buscava um sentido em tudo.
— Cara, vou te falar: parece que foram 50 engradados! E pior que não é de Skol não, é caixa de Bohemia! A última vez que eu vi Bohemia foi quando eu viajei para Itanhaém com meus pais...
SSSPLAAASH — Goianinho, em êxtase, chutou com a ponta do pé enchinelado o olho d’água da piscina — molhando a lateral dos meninos, especialmente a de Fábio, que por sua vez tentou sem sucesso chutar a bunda do amigo, criando uma pequena perseguição: “Que desgraça, cara. Vai tomar no meio do seu cu!”. Bento conseguiu proteger seu copo.
— Cadê sua mulher, Goianin? — perguntou Gustavo.
— Hã, oi?
— Tava ali dando esparro, até apertou a bunda da menina e agora tá dando uma de louco?
— Que mulher, meu filho? Eu só dei uns abraços nela, me prende! (risos). Além disso o meu coração já tem dona. — Goianinho pôs a mão direita no peito, abaixou a cabeça cinicamente reflexivo, enquanto abraçava Tales com o braço esquerdo, segurando ainda o copo de cerveja — a partir de agora eu só homenageio a Giovana, a professora de Artes… Todos caíram numa convulsionada risada. Todos, exceto Bento, que não achou graça nenhuma.
— Tô pensando até em começar a fumar um pra ela gostar de mim.
— Começar? — perguntou Fábio. Mais risos:
— Rá, rá, rá, essa é boa! Meu filho, ela gosta é dos barbudos. Cê não tem chance, cê é playboy — disse Gustavo.
— Nada sô, ela é dos rock também. Nem te conto onde eu e meu primo vimos ela.
— Onde?
Ela tava no sarau da filosofia, mermão. Debaixo do Jambolão — ‘Ihhhh’ — Diz o Nêgo que ela tava louca, só fumando aquele do bom. E diz que ela sumiu uma hora com um cara no mato...
Bento não conhecia Goianinho a fundo, mas desejou a sua morte naquele momento. Ele não parava:
— E eu como! mesmo com cabelo no suvaco. Mesmo no mato, eu como!
Gustavo se certificou que a namorada não escutava a conversa.
— Tô te falando, sô. Ela tava no Jambolão, ela é vagabunda.
Olhando pela primeira vez nos olhos de Goianinho, Bento disparou:
— E o que que você tava fazendo lá? Será que cê não é vagabundo também, não?!— Bento flertou por um segundo com o descontrole, e os amigos não souberam interpretar sua reação, não sabiam se era sério ou brincadeira.
Para o bem de todos. Chegaram naquele instante Gisele e Karen, seguidas por outras meninas que, com sorte, poderiam moralizar o assunto. Elas se juntaram ao grupinho e cumprimentaram os meninos numa mortificante fila de beijinhos na bochecha a qual Bento fez questão de se colocar em último lugar, quando elas não tinham mais forças para serem educadas.
Do microfone, um dos integrantes do D’Sunga anunciou:
— Alô, alô Jadson, também conhecido por Goianinho, também conhecido por “Empaca-foda”, você está sendo intimado a comparecer no palco por seus companheiros de banda, pois o show do D’Sunga está prestes a começar e essa galera tá doida pra dançar…
Umas dez pessoas gritaram: “aaêêêêê!”
— Eita, deixa eu ir lá.
Bento abandonou o grupo para pegar mais uma cerveja. Esvaziou a garrafa nos copos de todo mundo e bebeu o seu num gole só. Fábio, ao lado, conversava maliciosamente com Taline, uma das meninas do grupo. Gustavo se atracou Gisele num abraço, ambos olhando em direção à banda, Tales estava taciturno. Só restava então a Bento ir ao banheiro.
No caminho, por dentro da casa, reconheceu rostos familiares mas subiu a escada sem cumprimentar ninguém. Havia pessoas em cada quarto do segundo andar. Felizmente, o banheiro do estava livre. Bento entrou e fechou a pesada porta. Estava entorpecido e elétrico. Olhou as veias vermelhas de seus olhos no espelho sob a luz amarelada. Notou outros detalhes daquele banheiro de gente rica: a fofa toalha de rosto pendurada numa argola dourada, a porcelana da pia grande e lisa, o mármore caro da bancada, o sabão líquido, o chuveiro amplo e quadrado. Após abaixar a bermuda para mijar, Bento sentiu uma vontade demoníaca de violar aquele lugar imaculado que o levou a desviar o arco de sua própria urina para longe do alvo na privada, primeiramente num lance rápido, depois, num desvio duradouro que molhou as bordas da privada, o piso e, finalmente, a porta. Sentiu uma liberdade inédita que o fez querer testar a acústica daqueles azulejos:

“Remember today, I've no respect for you and I miss you, love…”

Terminou de esvaziar a bexiga na pia. Lavou a mão, e, tão logo saiu do banheiro, outro rapaz, que esperava a sua vez, tomou o seu lugar. Bento desceu a escada rapidamente enquanto o som familiar de um dos sucessos do pagode regional cresciam em volume e definição em seu ouvido:

“Smirnofy, uou she rou, siui Smirno-uou, roushe roupshi uou”

Bento garantiu mais uma cerveja para si e para os amigos. Bebeu meio copo de batida de abacaxi. Na volta, viu que Fábio já estava atracado com Taline num longo beijo — “Uau, impressionante” — Graças a Deus, Tales ainda estava sozinho e dividiu com ele a cerveja.
— Velho, onde você tava?
— Banheiro.
— Pode encher, mas acho que essa é minha última. Enquanto isso o D’Sunga fundia uma música na outra, incansável:

“Encaixa, encaixa, encaixa. Remexe e agacha...”

Goianinho espancava o couro do pandeiro com sua gigante mão que parecia inchar a cada nova música. As meninas rebolavam, empinavam e sambavam. E a festa ganhava ares de transe coletivo.
Em certo momento, Fábio puxou o braço de Bento:
— O Gilberto chegou. Vai lá que eu tô chegando.
É tudo ou nada. Não há nada mais a se fazer. Bento queria sumir, ou pelo menos, diminuir suas dimensões atuais até a altura de sua última célula e ser esquecido ali mesmo no meio daquele chão sujo de barro, grama e cerveja. Não importa se ele estivesse no Alaska, na Amazônia ou na Lua, Bento preferia voltar sozinho e a pé para casa. Sua última participação na festa, antes de entrar no carro, foi encher até quase transbordar mais um copo de batida de abacaxi.
Fabio daria ainda seu último malho de despedida na garota, enquanto Bento e Tales entravam no banco traseiro do carro de Gilberto. “Opa, licença”. Bento já tinha visto o pai de Gilvan em outras situações, claro; mas não tinha notado o quanto ele era parecido com o filho, sobretudo usando chuteiras, a caneleira e o short de futebol que lhe emprestavam um ar infantil.
— Bora então moçada?
— Calma, falta o meu primo ainda.
— Uai, e vai mais um?
Fábio apareceu por entre o portão com o lábio manchado de vermelho, com dificuldade de se manter em pé. E assim o Fiat Uno deu partida, e os meninos seguiram de volta ao Saraiva, quarenta minutos depois de terem saído de lá. Seguiram.
No caminho, Tales não conseguia esconder o nervosismo por trás de seus movimentos visivelmente afetados, ora com as mãos sobre as pernas, ora no banco. “Que bosta”, o pai do Gilvan chegou cedo e Bento sentiu que poderia ter bebido bem mais. Lembrou-se também de que não comera nada e mesmo assim, o álcool já tinha se esvaído quase completamente, do quão rápido seu coração forçava o sangue circular. Gilberto nem se despediu quando despejou os meninos na calçada de sua casa na rua Carijós.
— Fala pro Gilvan pra não deixar a Feiticeira de fora não. E se chover, fala pra ele tirar o lençol do varal. — Gilberto partiu.
Estavam a sós. Seja o que Deus quiser.
Para entrar na casa de Gilvan não era preciso apertar nenhum botão de interfone eletrônico, era esta uma fachada de grades finas, bem aos moldes das casinhas do interior de antigamente. Bastava um golpe leve na fechadura destrancada e estavam todos dentro da pequena garagem que cabia, no máximo, um carro estacionado de través.
Por trás dos vidros coloridos da estreita porta de entrada era possível ver o trote de pernas femininas cruzadas sob o sofá da sala. Os nervos da mão e dos dedos de Bento lhe faziam cócegas e seu estômago ulcerava, precisava ir novamente ao banheiro. Feito um gado marcado para o abate, Bento deixou ser guiado por Fábio e Tales: “ô de casa”.
Fábio abriu a porta com um sorriso de seu rosto sempre amável: “oi, meninas!”. Tales, meio sem jeito, entrou pedindo “licença…”. O dia estava sufocantemente abafado e um fio grosso de água caiu no chão da garagem, seguido de outro e mais outro. Bento entrou na sala e viu apenas a Monalisa e a amiga dela do oitavo C, Ariadne, sentadas. Menos mal. Fazia muito calor lá dentro, mas achou prudente fechar a porta da sala. Fábio deu dois beijinhos em cada uma e tratou de sentar na poltrona ao lado de Monalisa. Tales, repetiu os gestos do primo e garantiu para si o encosto direito do sofá, ao lado de Ariadne. Não havia sinal de Gilvan ou de Mayara, provavelmente estavam por trás daquela porta fechada no lado oposto da sala. Ao fundo da casa, Feiticeira, a cadela de Gilvan, latia raivosa, pressentindo a chegada de estranhos.
Deslocado, mas aliviado; Bento cumprimentou as garotas à distância, e tomou logo o corredor à esquerda. Enquanto caminhava, sentiu o corredor escuro demais para aquela hora da tarde, a chuva que se armava lá fora abafando até o som da tevê. Tateando em busca da porta do banheiro, Bento ouviu o som de fio d’água constante caindo da torneira de um filtro de barro até o fundo de um copo de vidro. Talvez houvesse mais alguém na casa, afinal de contas.
Antes de empurrar a porta do banheiro, Bento lançou o olhar sobre a pessoa na cozinha. Viu também, por entre a porta dos fundos, a jaula de onde a Feiticeira latia desesperada. — “Feiticeira, fica quieta!” — foi o que disse a voz feminina, que lhe ecoou de uma gruta do passado e lhe lançou um jorro radial de adrenalina por todo o corpo. Era ela. Bentiu sentiu vergonha, pena, desprezo, medo, raiva; nojo, tudo ao mesmo tempo naquela tarde negra. Era Darlene, e Darlene era a outra menina. E por quê, meu Deus?
Como se quisesse entrar num cômodo que tivesse saída para o mundo, Bento se enclausurou no banheiro. Lá fora, Darlene insistia:
— Feiticeira, fica quieta por favor!
Bento ouviu então uma trovoada lhe chamar pelo nome desde o alto do céu.