Capítulo 12 - “Ordem de Restrição”

Décimo segundo capítulo de "Darlene, meu Amor" a ser lançado em alguma data do ano de 2022, espero.

Façamos por um momento o seguinte exercício imaginativo. Suponhamos que os espíritas estejam certos a respeito da reencarnação, e que aquele seu requerimento, o que solicitava junto ao ministério celeste voltar à Terra sob a forma de um menininho ou menininha em um dos 66 municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, tenha sido deferido.
Das duas uma. Ou você encarnou no seio de uma tradicional família de Uberaba, no crepúsculo da hegemonia viril e sensual do pater familias, ou então sua família é uma das muitas de Ituiutaba, Araguari, Tupaciguara, Prata, Patrocínio, Coromandel, Monte Carmelo, Frutal, Patos de Minas e Araxá, que encontraram na promissora capital do agrobusiness um lugar para transformar o excedente do campo em novos bacharéis.
Em qualquer caso, você ainda carrega nas veias parte do sangue aventureiro e inconsequente dos moleques da roça, e teria gostado de crescer em uma das muitas ruas do Saraiva, do Vigilato Pereira, mas sobretudo as do Santa Mônica, onde ainda se era possível brincar na rua sem se preocupar com a hora ou ter que interromper o jogo a toda minuto para algum carro passar. Esse era o caso dos amigos de Bento, todos eles meninos de bem e nada complicados, justamente porque se entregavam a essa distração sadia e edificante que é o esporte.
Caso você não tenha recebido nesta reencarnação o dom divino da bola, como Bento que nem chegou a voltar para a segunda aulinha de futsal, então sua vida seria um pouco mais difícil e confusa. Para esse tipo de gente existem os livros. O Joaquim Saraiva tinha vários deles em sua biblioteca, desde a “Barsa”, o “Tesouro da Juventude” e a coleção “Vaga-lume”. De vez em quando Bento abria mão da educação física e do recreio e lia de cabo a rabo um livro naquele recanto de paz dentro da escola. Os adultos o admiravam à distância e maldiziam seus filhos preguiçosos, sem saber que na verdade o prodígio absorvia quase nada dos livros que lia.
Mesmo assim, Bento gostava de pensar sobre si mesmo como um artista, alguém que “gosta de escrever e que escreve bem”. Mas sem nunca ter conhecido um leitor sequer, o aprendiz não pôde desenvolver a técnica de copiar a mão trechos de poesias bem feitinhas e tomar emprestado os sentimentos já digeridos por alguém como um meio para emular e ensaiar o que poderia ser mais tarde uma real demonstração de espírito.
Em outras palavras, Bento não era dono dos meios de expressão, era no máximo um escravo de seus sentimentos, em geral melancólicos, mas sujeitos a erupções como um vulcão adormecido. Às vezes, no meio de aulas chatas como as de Matemática e de Ciências, um enredo de conto ou uma cena de uma peça brotavam de sua lapiseira, bem ali no meio da sala, sem que ninguém soubesse do seu surto criativo. Soado o sinal, porém, o artista abandonava sem pestanejar sua obra incompleta na carteira, e a coisa toda esfriava como um almoço na varanda.
Diferente dos livros que podiam ser longos e tinham a letrinha muito pequena, e fora a TV à cabo que para Bento se confundia como uma segunda natureza, não havia muito o que fazer para se divertir em Uberlândia. Ou se havia, ele ignorava. Havia, claro, o Center Shopping, o milagre do empreendedorismo local e para onde todo mundo peregrinava nos finais de semana. Há uma década, o gigante do tamanho de um bairro, com sua cúpula de sinagoga de espelhos, sua imponente torre-hotel e seu estacionamento intercalado por palmeiras, afirmou-se como cartão postal inconfundível no vale que nasce entre a Avenida João Naves e a Rondon Pacheco. Lá dentro, a praça de alimentação do Center Shopping emprestava novos ares refrigerados aos antigos calçadões, onde as pessoas iam para ver e serem vistas e namorar pela vitrine aquilo que ninguém tinha o dinheiro para comprar. Era também o Shopping o único lugar do mundo em que as pessoas se cumprimentavam de baixo para cima, acenando antes para o seu par de tênis, depois para os olhos do cidadão.
Anos atrás, era comum encontrar Bento, Fábio e Tales uma vez por mês na porta do cinema do Center Shopping, tentando capturar algum grupo de meninas dando sopa na fila de um filme. Depois da sessão, sem naturalmente terem pegado ninguém, os velhos amigos sempre voltavam para casa a pé, tirando sarro um do outro, com uma casquinha de sorvete do McDonald's em cada mão. Fizeram isso por muito tempo, até que a tradição foi sendo abandonada lentamente.
Para o leitor, toda essa reflexão sobre esportes, livros e o Shopping, serve para ilustrar um pouco do tédio existencial pelo qual muitas pessoas como Bento estão acometidas em Uberlândia. Um tédio quase físico, que faz com que a vida pareça sem sentido e mais longa que o necessário. Tédio que também explica por que eventos como a Exposição Agropecuária, ou o “Camaru”, com suas duas semanas de shows, seu parque de diversões e suas milhares de barraquinhas de rua, faziam o coração dos uberlandenses bater mais forte.
Em paralelo às transações de gado e maquinário que davam viço à capital do agronegócio, Uberlândia em peso ia ao Camaru não apenas para ver seus ídolos sertanejos de longe, mas para andar na roda gigante, comer um espetinho e tomar um copo de capeta. Levavam também suas melhores roupas para sair, e voltavam de lá com elas sujas de barro, mas de alma lavada de tanto cantar.
Lá pelos meados de março, logo depois do Carnaval, começava a brotar na boca pequena as especulações e os boatos sobre as atrações musicais do Camaru. Quando o calendário finalmente saiu, todo mundo ficou bobo: a 39ª edição prometia ser a maior de todas, com Bruno & Marrone na sexta-feira e o encerramento no sábado com Zezé di Camargo & Luciano, no mesmo dia do 102º aniversário de Uberlândia. Parecia uma conjunção perfeita dos astros no céu e na Terra. E as pessoas começaram a enlouquecer aos poucos como em uma véspera de apocalipse. Todo mundo correu para garantir seu passaporte. Havia outdoors na cidade inteira e inserções na rádio e na TV divulgando o Camaru.
Uma semana depois veio a notícia: os 65 mil ingressos disponíveis para o show de sexta haviam se esgotado! Muita gente ficou com medo. O prefeito, Zaire Rezende, teve de ir para a TV para acalmar os uberlandenses e dizer-lhes que a segurança do evento seria duplamente reforçada, mesmo que para isso, a segurança da cidade ficasse duplamente desfalcada.
O principal acontecimento cultural do ano e as articulações sobre como descolar cerveja e mulheres eram só o que se ouvia das bocas dos cinco menores de idade na saída do Joaquim Saraiva, após mais um final de um dia letivo. Talvez não dos cinco, mas dos quatro, isso porque Bento, desde que começou a desconfiar de Gilvan, não abria a boca quando seu nêmesis estivesse por perto, e se entregava a uma lenta ruminação de seu ódio. Ódio que competia com o seu amor por Darlene, tendo, inclusive, se expandido nos últimos dias em um desprezo integral ao mundo ao seu redor.
Era impressionante como Fábio crescia como articulador quando havia alguma festa em vista:
— O negócio é o seguinte. Tia Carmem disse que quer sair de casa cedo, porque vai ter muito trânsito lá na Pampulha, e ela quer voltar cedo também porque ela tem aula do outro dia de manhã. Beleza. Então a gente deve chegar lá umas sete. Só que, quem for beber, vai ter que ir comigo encontrar o Goianinho no camarote, porque ele vai estar lá e lá é open bar. E ele falou que às vezes bota a gente pra dentro.
— Quem tá indo com vocês? — perguntou Gustavo de curiosidade.
— Por enquanto Tia Carmem, eu, Jegão, Ariadne e só.
— Uai, Jegão — Gustavo deu um soquinho leve na barriga de Tales — você já apresentou a Ariadne pra Tia Carmem?
— Então: nem precisou. Quando eu fui mostrar a foto dela, minha mãe ficou olhando e depois disse: “ah, essa daí é do grupo de jovens, lá do Nossa Senhora do Caminho”. Aí ficou tudo certo.
— E você contou pra tia Carmem que conheceu ela no frevo? — lembrou Fábio.
— Não, aí é osso. Mas, ei. Ela só estava lá porque a Monalisa forçou ela a ir.
— Uhum, claro, claro — Gustavo coçou o queixo — Falando em Monalisa, Fabinho esnobou tanto que ficou é sem ninguém, coitado. Vai segurar vela pro Jegão. Quem diria?
— Que mané segurar vela, sô. Hoje eu tô de esquema.
— Com quem?
— Com a Thábatha.
— Quem é Thábatha, meu Deus?
— A filha do Cláudio.
— Cláudio, de Matemática? Ela é mais feia que bater na mãe.
— Né, não, sô. Ela é gata.
— Ela é igual ao Cláudio.
— Cara, você já viu a bunda dela?
— Gustavo… — Tales pousou a mão no ombro de Gustavo — não entra na dele, não. Fabinho não tem nada arranjado. Falou com a menina duas vezes na vida, a primeira na feira de ciências e agora, essa semana. Para começar, a menina é mais alta que ele e nem deu certeza se ia no Camaru.
— Aaaah! É por isso que você tava falando hoje com a Monalisa no recreio, hein? Se o esquema não der certo, né? Tem o estepe. Tá certo.
— Uai. Ela já vai estar lá, né? O que eu posso fazer? O bom é que ela já sabe que eu faço gostoso... — Fábio riu com a língua de fora feito um velho debochado.
— E você, Gilvan? — Gustavo moderava a conversa de todos.
— Quê?
— Vai com quem?
Gilvan que não tinha o mesmo ânimo para zoar os outros e só gostava de falar o necessário, mantendo-se calado até então.
— Com quem você acha? Com meu pai. Eu não entro sozinho ainda não. Eu sou de menor.
— Eu sei, zé. Todo mundo é de menor aqui. Tô falando de mulher. Você vai pegar alguém lá?
Gustavo piscou para Bento, que pareceu não ter aprovado o movimento do amigo. Gilvan, por sua vez, olhou para o sol com seus olhos apertadinhos, cuspiu no asfalto feito um cowboy e disse, monotônico:
— Esquema sempre tem. Mas hoje eu vou ficar quieto. Talvez eu vou com uma amiga.
— Larga de ser gay, sô. Achei que você ia com os amigos do Goiano. Vamos lá com nós então? — disse Fábio.
— Vou não. Tia Carmem não gosta de mim. — fungou —Eu vou com meu pai. Ele agora quer ir.
Como se riscasse o primeiro fósforo contra a lona do circo, Fábio olhou para o lado oposto, e deu uma esmola de atenção para o elo mais fraco do grupo e que se descolava um pouco dos demais a cada nova volta para casa.
— E o Bentoso? Vai com quem?
— Hã?— pigarreou — Então…eu vou com o meu irmão, né? Ele é, tipo, o maior fã de Bruno e Marrone do mundo.
— Além da professora, você tá pegando alguém?
— Hã? — Ah, não, não. Ninguém, a não ser que eu encontre alguém lá. Mas aí é outra história.
— Sendo mulher, tá de boa.
— Cadê a Silvia? — Perguntou inesperadamente Gilvan.
— Hã?
— Você é surdo? A Silvia. Você deixou ela mofando, cara! Sabe o que ela veio me perguntar esses dias? Ela veio perguntar se você era gay, se você preferia homem. Eu falei pra ela que eu não sabia — fez uma longa pausa — Você tem que largar de ser otário!
Pela segunda vez, Gilvan o ofendeu. E pela segunda vez Bento foi covarde de não revidar como a sua consciência mandava. Se fosse mais forte ou corajoso, teria pegado Gilvan pela gola e o lançaria sobre o parabrisa de um carro em movimento, sem se importar se ele sofresse um traumatismo e morresse ali no asfalto. Mas no mundo real, Bento tinha medo de apanhar. E se tinha algo que ele temia, mais que a dor física, era a humilhação de fazer uma cena diante de muitos alunos que ainda desciam a rua Caetés. No mais, engoliu a humilhação como um copo cheio de areia. E devolveu em voz chorosa uma resposta de superioridade débil:
— O que vem de baixo não me atinge.
Naturalmente a frase não teve efeito algum. Só ficou ali pairada no ar, incompreensível e incômoda até que Fábio viesse com o próximo tema. A alegria de viver de Fábio, se era irritante, tinha no mínimo essa contrapartida socialmente útil. Ela passava por cima de qualquer desconforto com a leveza com que ele tocava a própria vida:
— Vem cá: vocês preferem bunda ou peito?...
— Bunda.
— Bunda.
— Peito.
Momentos depois, Fábio e Tales se recolheram em seus respectivos andares do mesmo prédio, de onde exalava um cheiro de comida refogada. Depois foi a vez de Gilvan desaparecer sem se despedir. Destravou o portãozinho e ainda por cima quase arrebentou a frágil porta de ferro da sala ao fechá-la. Gustavo esperou que virassem a esquina para dizer.
— Bento, foi mal. Devia ter ficado calado. Esquece ele, beleza?

Bento retardou o passo o máximo que pôde antes de chegar em casa, e usou o tempo a sós para preencher de imaginação o vazio da vida real.
Sua mente o levou de volta para época em que seus pais haviam se mudado para o Saraiva. Houve um período em que uma família de pedreiros, um pai e dois filhos, todos eles parecidos entre si, todos eles mulatos magros de boné, passaram a frequentar a casa para construir a parte que hoje é edícula ou a área da churrasqueira. Apesar do medo inicial de gente nova, Bento, com pouco mais de seis anos, se lembra de espiá-los de longe. Via o pai bater a pasta de cimento no chão enquanto os filhos empilhavam tijolos e raspavam o excesso com a espátula. O pai era severo e parecia não conversar a não ser para dar ordens: “vem cá!”, “Bota ali!”, “Segura!”. Mesmo assim, sentiu inveja do filho mais novo que podia manejar o carrinho de mão dos fundos da casa até a rua. Eles bebiam duas garrafas de café por dia, até nos dias mais quentes, e só paravam de trabalhar para filar a bóia que Bento levava para eles a pedido de Célia. Depois deitavam-se no chão para a sesta, os três de boné na cara e com os pés para cima apoiados em um tijolo solto. Quarenta minutos depois, retomavam no batente. Apesar da sujeira que os pedreiros deixavam, Bentinho ficou triste quando a edícula ficou pronta. No último dia da obra, depois que Célia pagou pelo serviço, Bento começou a espalhar para os adultos que queria ser pedreiro quando crescesse. Ao que a mãe respondia:
— Para de falar besteira. Vai acabar atraindo.
Hoje em dia, que ironia, Bento considerava seriamente ser pedreiro, mas um pedreiro na Irlanda e não no Brasil. Arranjaria um emprego de construtor de casas, marceneiro, serralheiro, qualquer coisa, mas nunca de lavador de pratos. Isso não.
De repente, não estava mais percorrendo a sua própria rua, mas uma rua imaginária de Dublin, empacotado em um grosso casaco com capuz para se proteger do frio. Em seu delírio futurista, voltava do expediente de alguma obra no centro da cidade. A certa altura tomava um vagão numa estação de metrô (já que nesses países sempre havia um sistema moderno de metrô) até o distrito mais próximo de sua casa, um subúrbio cheio de latinos, indianos e brasileiros. Sua casa era um “flat” alugado no segundo andar de uma loja, no topo de uma estreita escada de madeira. A porta estaria destrancada, e por ela entraria até um sala quentinha, onde Darlene, grávida de uma menina, seu segundo filho, estaria polindo as unhas de alguma vizinha qualquer por 10 libras. Enquanto isso, o primogênito, uma bolinha rosada e sorridente, estaria brincando com blocos de letras, perto da TV ligada, dentro de um daqueles cercados de sanfona que impedem o bebê de sair andando por aí. Um beijo na esposa e no filho, um “hello, miss…” e um merecido banho quente. Mais tarde, num modesto jantar brasileiro, Darlene, com dores nas costas e o mesmo ar preocupado de menina, cobrava planos do marido para mudar de trabalho e de juntar mais dinheiro para mandar para a mãe aqui no Brasil. Bento, embora cansado e quase dormindo em pé, tentaria acalmá-la com um beijo na nuca, e um abraço sob o cheiro e o bafo fumegante do frango com açafrão. Na mesa de jantar, enquanto lutavam para dar de comer ao filho, Bento e Darlene, ainda apaixonados, compensariam a saudade do Brasil dando risada da gente besta que eles conheceram na escola quando jovens.
Mesmo traindo a si mesmo e a sua mãe no seu destino de psicólogo e acadêmico, rastejar na base da pirâmide social de outro país como imigrante, lhe pareceu de repente o melhor destino que ele poderia almejar. Pois estaria do lado da menina que lhe deu seu primeiro beijo.

O portão de casa funcionou como um estalo de um mágico hipnotizador dizendo-lhe: "despierta", trazendo-o bruscamente de volta à realidade. Mas a casa não era a mesma de todos os dias.
A porta de entrada, na lateral da garagem, estava aberta e a impressão que Bento teve era a de ter visto gente lá dentro. Não poderiam ser ladrões, o Saraiva ainda não era esse tipo de bairro. Tampouco poderiam ser amigos de Beethoven. Desde que voltou dos Estados Unidos, ele havia perdido o contato com todo mundo que conhecia em Uberlândia, a não ser a atual ex-esposa.
Como toda desgraça é antes apreendida pelo espírito na forma de uma intuição, Bento palmilhou pela sala esperando o pior. Mas o que poderia ser o pior?
A TV jazia ligada sem ninguém para assitir. Na copa, Bento encontrou com surpresa Dona Genoveva, a vizinha do lado direito, moradora antiga da rua Tabajaras, sentada na cadeira móvel com um copo d’água na mão. Ela parecia ter saído de casa com a roupa do corpo e ficou sem jeito com a chegada do irmão mais novo da escola.
— Ele chegou! — disse Genoveva alto para os homens no corredor ouvirem — Bento, senta aqui…
— Uai, gente. O que tá acontecendo?
No corredor que alimentava os quartos, Beethoven e Zé Maria, marido de Genoveva, discutiam sobre alguma coisa grave. A porta do quarto dos pais estava trancada.
— Bento, senta aqui — Genoveva cobriu as mãos do menino com as suas próprias, feito uma concha mãe — Antes de qualquer coisa, relaxe. Tá tudo bem. O seu irmão e o Zé estão tentando entender o que está acontecendo.
— Cadê o Vânio?
— Seu pai está lá no quarto, mas não está atendendo a porta. Mas, calma! Provavelmente não é nada, o Zé já viu pela janela que ele tá respirando. Deve ter passado mal, mas, de qualquer forma, a gente vai ter que entrar no quarto dele à força.
— Como eles vão fazer isso?
— Seu irmão tentou desparafusar, mas não é tão fácil assim. Como você sabe, a porta é muito pesada, é madeira maciça. Achamos melhor chamar o irmão do Zé. Ele é chaveiro 24 horas e tem as ferramentas. Então é só esperar.
— E a minha mãe, tá sabendo?
— Pode ficar relaxado, sua mãe tá sabendo sim. Já chamamos a ambulância. A mocinha falou que vai demorar um pouco, mas que tá chegando. O importante é que seu pai tá bem, de vez em quando ele faz um barulho lá de dentro.
E Bento, frágil como um filhote para as tragédias inegociáveis da vida real, e de certa forma humilhado por ter se tornado objeto de pena da vizinhança, não conseguiu ajudar Zé Maria ou o irmão, e apenas sentou-se em sua própria cama para chorar um pouquinho e talvez se arrepender por algum pensamento de filho ingrato. Sem saber rezar, Bento pediu desculpas em silêncio pelas vezes que havia xingado o pai mentalmente sempre que ele brigava com a Célia e dizia algo de uma insensibilidade doentia, como quando chamava a mãe de “mulher chata” e “boca de cemitério”. Ou ainda quando Vânio monopolizava o computador no final de semana. Nesse momentos, lembra ter chegado a desenvolver pensamentos homicidas, dizia abertamente para Gustavo que não gostava do pai. Tudo isso, diante da possibilidade de uma tragédia, parecia uma brincadeira supérflua e sem graça. Um capricho de menino.
Perdeu-se olhando para as próprias mãos que massageavam uma à outra, enquanto os adultos pensavam no resgate. Até Beethoven pareceu se superar e agir com rapidez e inteligência diante do perigo. Revezavam ele e o Zé Maria em suas posições. Um batia na porta e outro contornava a casa pela cozinha, acessando a janela do quarto onde Vânio estava pelos fundos. Conseguiu a certa altura abrir a janela com uma chave de fenda antiga. Chamou por Vânio repetidamente: “pai, ô pai!” — sem resposta. Continuou assim por muito tempo, até que dele ouviu um murmuro.
— Ele acordou! Zé! Ele acordou!
Vânio parecia um bebê recém-chegado ao mundo, ocupado em apenas retomar o domínio de seu corpo. Não se sabe se ele havia reconhecido o próprio quarto ou se sabia que algo havia lhe acontecido. Nem conseguia pronunciar uma palavra. Apenas olhava o rosto do filho mais velho como se visse dentro de um sonho.
— Pai, o senhor consegue abrir a porta?
Vânio não sabia de onde vinha aquela voz.
Um barulho de moto na garagem anunciou a chegada do chaveiro Reginaldo. Logo em seguida, ouviu-se também o ronco familiar do Corsa de Célia.
A personalidade da matriarca era um enigma. Quando nada de importante estava acontecendo, quando reinava a mais completa paz na casa, Célia parecia ter medo de tudo: medo de cachorro grande, medo de facas afiadas, medo de botijão de gás; medo de ladrão, medo de os filhos envolverem com drogas, medo de dois homens numa moto, medo das privatizações. Medo que ficava sempre maior quanto mais invisível fosse. Os filhos chegavam a ficar impressionados como alguém conseguia abarcar tantas tensões numa mesma personalidade sem enlouquecer por completo. Mas em situações limites e de perigo real, era ela quem lidava com bravura e frieza, muito mais que os próprios homens da casa, e chegava até a esquecer a cosmologia espírita e a justificativa holística para o seu sofrimento.
Todos, exceto o filho mais novo, se juntaram ao redor de Reginaldo. O chaveiro tirou uma enorme chave micha de sua maleta profissional e agachou junto ao buraco da fechadura. Em menos de um minuto, com um golpe decisivo, conseguiu destravar a porta.
Em vez de entrar aos prantos e desesperada como as nonas italianas ou as mães de novela, Célia entrou pelo quarto dona de si, grave, mas pronta para a ação como uma general em batalha. Mais tarde, quando a ambulância de fato chegou, foi ela, e não o socorrista-chefe que passou a dar ordens, dizendo onde o marido normalmente sentia dores e qual a melhor forma de carregá-lo.
Quando conduziram Vânio com a cadeira de rodas pelo corredor, o pai olhou nos olhos do filho mais novo como se visse um estranho, e Bento notou um fio de vômito seco que descia do lábio e molhava parte dos pelos de seu peitoral.
Um carro de ambulância na frente da casa da gente é sempre uma atração para os vizinhos. Na calçada da rua Tabajaras, Dona Genoveva conversava com mais duas moradoras, certificando-se que a notícia passasse a correr condizente com a verdade. Na calçada oposta, dois moleques da região, montados em bicicletas e sem camisa, acompanhavam a condução do homem semiconsciente até o carro da ambulância. Bento teve a impressão que um deles lhe sorria.
— Mãe, posso ir com vocês? — perguntou Beethoven, antes que o socorrista fechasse as portas do veículo.
— Não. Beethoven. Fica aí com seu irmão e arranja um almoço pra ele.
— Mas eu quero ir, mãe.
— Não, Beethoven! Eu preciso que você fique perto do telefone, porque eu vou ligar do orelhão assim que eu puder.
As portas foram fechadas. Os filhos viram, então, Célia, com uma muda de roupas do marido na mão, partir ao lado de Vânio em mais um capítulo de sua missão espiritual dentro daquele casamento.
Beethoven agradeceu a Zé Maria e Genoveva, e, em separado, ao Reginaldo, lhe prometendo que nos próximos dias eles combinaram a questão do pagamento pelos serviços. Aos poucos as vizinhas foram retornando para suas casas deixando a rua a sós com seu trânsito impessoal de pessoas e carros de sempre.

Não tinha jeito, hoje foi um daqueles dias em que nada seria normal. Um daqueles dias que faz a gente desejar com todas as forças a volta da rotina. A tarde passou arrastada e o telefone não tocava nunca. E quando tocou, era uma das tias, que ficou sabendo da internação e queria novidades sobre Vânio.
Lá pelo final da tarde, Célia finalmente ligou para casa e explicou o que acontecera ao pai. Não se sabe se foi Célia quem omitiu a verdade ou se foi Beethoven que não soube repassar a informação direito, mas assim que desligou, Beethoven deu as direções da forma que pôde:
— Arruma aí que a gente vai para o UAI.
— O que que ele teve?
— Parece que tá bem, mas diz que ele tem manchas no cérebro.
O que isso queria dizer Bento só descobriria tempos depois. Até lá, para encontrar o pai, teve ainda de vencer outro medo, o de andar de moto. Não houve tempo de sofrer. Quando menos percebeu, já estava com o capacete nas mãos, pronto para montar na garupa. O terror ficou claro, porém, na forma como se atracou no dorso do irmão ao longo do caminho até o hospital. Isso sim quase provocou um acidente.
A sensação que teve ao entrar no hall do UAI pela primeira vez, era a de um cadete sendo conduzido ao front de batalha, se preparado mentalmente para encontrar todo tipo de imagem explícita. Esperava encontrar mutilados, baleados e até pessoas com órgãos humanos fora do corpo, mas o que viu, foi no máximo gente com dengue, crianças com asma e uma mãe afagando a própria filha prestes a vomitar no chão. No mais, a visita à emergência prometia ser entediante. Beethoven se identificou junto a uma recepcionista que, por sua vez, indicou-lhes os bancos da sala de espera. Sentaram. Lá fora, o sol brilhava cansado por entre a persiana e as listras de luz desenhavam um ângulo agudo na gente enferma e no piso de cerâmica.
Havia uma TV presa a um suporte articulado de ferro, sugando a atenção de todo mundo com alguma reprise de novela. Depois vieram os comerciais, e com ele, o anúncio do tão aguardado show do Camaru do dia seguinte. “É amanhã!”, “é amanhã!” dizia o locutor muito mais animado que os espectadores, numa voz distorcida e cheia de eco: “o fenômeno da música sertaneja, no maior evento agropecuário do triângulo!”. Enquanto isso, outro sucesso da dupla tocava como música de fundo. Foi Beethoven que fez o trabalho de dizer aquilo que estava na cabeça de Bento:
— Sorte sua, hein?
— Por quê?
— Depois de hoje não sei se tem mais clima para ir em show nenhum, não. Se deu bem, cagão. Bento sorriu forçado. Não encontrou meios de dizer como, naquela altura, era ele e não o irmão quem fazia questão de ir no show. Talvez fosse por um desejo masoquista de ver Darlene ao lado de Gilvan com seus próprios olhos, ou talvez, de forma remota, remotíssima, imaginava poder encontrá-la a sós mais uma vez e dizer, sob uma trilha de sertanejo romântico, que havia decidido viver com ela na Irlanda. Essa possibilidade, ainda que prazerosa, era tão impossível que não resistia à análise racional, e só fazia sentido na paisagem de um sonho.
A certa altura a enfermeira chamou Beethoven pelo nome e pediu que os dois a seguissem ao longo da linha verde desenhada no chão. No corredor, eles ganharam pulseiras de visitantes e Bento aproveitou para espiar o público do hospital pelas portas abertas. Não viu nada demais, ainda que tenha se sentido tonto com o cheiro de éter e produtos de limpeza que emanava dos quartos.
— O pai de vocês está aí. Leito C.
A enfermeira abriu-lhes a porta como uma maitre de restaurante chique. Os irmãos percorreram uma fila de quatro leitos separados por cortinas de plástico. Na terceira, acharam os pais. Célia, com a mesma roupa do banco, estava sentada em posição fiel ao lado do marido, deitado na maca fria do hospital.
— Ôba.
Não era a hora falar dar pitaco, mesmo porque ninguém sabia ao certo o que ele tinha e ainda viriam muitos exames e, provavelmente, muita fisioterapia. Vânio deve ter ficado feliz com a visita dos filhos. Mas, como falar ainda lhe era muito cansativo, ele apenas sorriu com os olhos. Era, pelo menos, o olhar de quem reconhece o que vê.
— Como que você tá, pai?
Célia era quem respondia pelo marido, feito uma tradutora simultânea:
— Seu pai teve uma convulsão que deixou o corpo dele todo dolorido. Então vâmo evitar de fazer pergunta, porque seu pai tem que descansar.
— Cê não tem noção o tanto que o senhor é pesado, pai — silêncio — Overdose de Viagra, foi?
— Beethoven, aí não, né? — repreendeu Célia, impressionada.
— É que eu falei pra ele não tomar o frasco inteiro.
Vânio pareceu engasgar. Mesmo na doença, Beethoven fazia de tudo para aumentar a pressão sanguínea do pai.
A mãe, mudou de assunto, perguntou se as tias já estavam sabendo. Perguntou também se haviam trancado a casa inteira antes de sair. Tudo certo, aparentemente. No mais, Célia certificou-se que a célula onde o marido se recuperava lembrasse ao máximo o asseio com que ela tratava o próprio quarto.
Na TV compartilhada no topo da sala, a novela das seis já havia se transformado na novela das sete. A programação corria solta, entretendo a si mesma. Célia, então pediu um favor em voz baixa:
— Bento, acha o controle da televisão pra gente e bota no Chaves. Seu pai gosta.
Assim como na vida, em que toda luz cria a sua própria sombra, é possível sempre enxergar lances de felicidade em meio à tragédia. Apesar do dia difícil e do pressentimento que a família inteira entrava em uma nova fase, a noite de quinta-feira parecia ter acabado bem, na medida que todos foram deixando de lado suas questões pessoais, emprestando suas forças para a recuperação do patriarca. Engraçado: ninguém se lembrava quando foi a última vez que as quatro peças da família haviam permanecido juntas num mesmo cômodo. Talvez em frente à TV, em alguma cobrança de pênalti de Copa do Mundo, ou algo parecido.
Na tela, o professor Girafales tentava dar continuidade a mais uma de suas aulas infernais: — Chaves, como se diz “professor” em inglês?
— Essa eu sei. É “teacher”.
— Muito bem chaves. E professora?
— “Teachera”
— Não, Chaves. Professora também é teacher. É a mesma palavra, entendeu?
— Sim, professora.
O enfermo grunhiu pela primeira vez, já Beethoven bateu o tênis falsificado contra o chão de tanto rir. A piada leve fez a mãe se dar ao luxo de sorrir um pouco.
Quando começou o Jornal da Noite, a mãe sentiu ser a hora perfeita para dispensar os filhos para que o marido pudesse ir ao banheiro e depois, com sua ajuda, tomar seu banho. Ela deu um dinheirinho para que Beethoven levasse Bento na pizzaria. E disse para não se preocupar: o mais provável era que o médico o liberasse logo pela manhã. Partiram.
Era a primeira vez que viam os corredores mal iluminados de um hospital à noite. Havia ainda muita gente nos corredores. E, internamente, cada um deles se sentiu sortudo por não ter que passar a noite naquele lugar assombrado.
A segunda viagem de moto foi mais intranquila que a anterior. De noite, a moto Honda verde catarro tinha a pista livre para acelerar o quanto quisesse. Só restou a Bento entregar a sua vida na mão de Deus. Voaram até a pizzaria preferida deles, a mais movimentada da cidade, no coração da avenida Rondon Pacheco.
— E aí, Bento. Meia calabresa, meia mussa-frango?
— Pode ser.
— E uma Guaraná Mineiro?
— Pode ser também.
Eram os próximos da fila. O excesso de luz fluorescente e o exagero de vermelho e amarelo nas paredes, nos uniformes dos entregadores e das cadeiras plásticas deixavam o aspecto visual da pizzaria repelente, como em um posto de gasolina; e mesmo assim, ela vivia cheia porque a pizza era boa e barata: oito sabores por R$11,00. Com a guaraná dois litros, R$13,00.
Beethoven fez o pedido para uma adolescente através de um retângulo gradeado na parede.
— Boa noite. Meia calabresa, meia mussa-frango e uma “Mineiro”.
— Qual o nome que eu coloco na fichinha?
— Beethoven.
— Beethoven, igual o pianista?
— Não, não. Igual ao cachorro mesmo.
Ela lhe devolveu o troco e uma senha que deveria ser trocada pela pizza quando ficasse pronta. Enquanto isso, os irmãos deveriam esperar, dessa vez em uma das mesas parafusadas ao chão.
Beethoven, logo após se sentar, sentiu as mãos sujas e levantou-se em busca de um banheiro. No caminho até a pia externa, próximo às rampas de acessibilidade na entrada, algo grave deve ter lhe acontecido, porque o irmão ficou branco como se tivesse visto uma assombração e deu meia volta. Bento procurou e não viu nada demais: havia apenas uma jovem mãe agachada, lutando para lavar as mãos de uma criança pequena na mesma pia. Bento, porém, ligou os pontos e entendeu tudo quando o pivete ergueu seu bracinho no ar, e gritou, sem noção do volume que sua voz alcançaria:
— Mãe, óia o tio Be-tô!
Beethoven seguiu como se não fosse com ele, mas o garotinho insistia:
— Mãe, é o tio Betô! Vâmo lá falá com o tio Betô!
A mãe, percebendo a enrascada em que se metera, fez o que pôde para desviar a atenção do filho.
— Davi, me dá a mão, pelo amor de Deus. Senão não vai ter pizza de chocolate!
— Mas, mãe. Por que eu não posso falar com o tio Betô?
— Tio Betô não anda mais com a gente, meu filho. Tio Betô não é legal. Vâmo, estende a mão pra eu secar.
Mas não teve jeito. Enquanto Tio Beethoven fazia o caminho de volta para a mesa, não conseguiu evitar de olhar para trás e ver os olhinhos cheios de pureza de Davi. E o menino, indomável, conseguiu escapar da mãe quando ela se distraiu procurando uma lata de lixo. Correu de braços abertos por entre os clientes e só os fechou para abraçar forte as pernas do antigo padrasto. Beethoven tomou um susto. Davi já havia crescido desde a última vez que o viu e já alcançava a cintura de um adulto.

— Óia, tio Betô. Meu dente caiu!
Se isso acontecesse meses antes, tio Betô lhe responderia com um afago no cabelo ou um: “Uau, cê ficou feio demais hein?” e lhe torturaria com cócegas até Davi quase urinar de tanto rir. Dessa vez o ex-padrasto controlou seu desejo de abraçá-lo e retribuiu em um novo tom, frio e tutelar:
— Oi, Davi. Quanto tempo, hein, rapaz?
— Tio Betô. Vai ter a minha festinha do Toy Story lá na escola. Cê vai, não vai?
Uma vontade forte e incontrolável de chorar tomou conta de Beethoven. A tensão do dia ao lado do pai, as brigas das últimas semanas, as entrevistas inúteis de emprego e a terrível solidão com que teve de conviver longe de Isabel e de Davi: tudo que lhe havia acontecido em Uberlândia desde a sua volta parece ter tomado forma, culminando naquele momento. De repente, o ex-padrasto, emocionado, quebrou o protocolo e abraçou Davi para que ele não visse as lágrimas que se formavam debaixo dos seus óculos.
— Não, vou não, Davi. E você não vai me ver nunca mais.
— Por quê? — Davi fez biquinho pra chorar também.
— Porque a vida é assim, Davi. Um dia você vai entender. Agora volta lá pra sua mãe antes que ela fique brava. E olha só. Continua jogando bola e não dá trabalho pra sua mãe, beleza?
Isabel puxou forte o braço de Davi que passou a fingir choro e fazer escândalo. Isabel só olhou nos olhos do ex por curiosidade, como para checar se o sofrimento havia alterado seu aspecto físico, deixado ele mais decadente, mais desleixado. Beethoven, por outro lado, notou que Isabel usava agora tinta vinho no cabelo. Ela, que tinha pele morena, não tinha nada que ter inventado moda. A nova cor deixou ela com cara de gótica de bairro. Não ficou legal, pensou.
Isabel trouxe Davi até a fila onde se juntaram a um homem alto e magro, com rosto aquilino e um pomo-de-adão pontudo. O elemento tinha olhos de bêbado e uma boca pequena e mole. Beethoven notou que ele trazia a chave do carro pendurada no bolso do jeans. Ele alisou o cabelo de Davi para acalmá-lo, e depois, deu um beijo na boca de Isabel como se deixasse um recado claro para Beethoven.
O oponente vencido voltou para a mesa onde Bento o esperava, mortificado. Ainda com o rosto quente e vermelho, tio Beethoven disse, ao sentar-se:
— Agora me diz: por que essa vaca vem pastar aqui?
— Aquela era a tal da Isabel?
— É.
Bento esperou ainda alguns segundos para perguntar:
— Cara, o que rolou entre vocês dois?
Talvez fosse melhor colocar tudo em pratos limpos. Enquanto a pizza não chegava, Beethoven foi contando todo o seu caso com Isabel. Era o melhor a se fazer.
Quem era Isabel e como se conheceram? Bem, eram colegas de escola, do primeiro ao terceiro ano no Bueno Brandão, mas nunca haviam se falado, por algum motivo. Anos mais tarde, já nos Estados Unidos, quando ele foi contratado como construtor de piscinas em Fort Lauderdale em uma pequena empresa familiar…
— Uai Beethoven, você trabalhou como construtor de piscinas? Que massa!
— Uhum. Piscinas, telhados, assoalho, vidraças. De tudo um pouco.
— Não sabia! Deve ser divertido, né?
— Pior época da minha vida…
…Beethoven tomou um susto no primeiro dia de trabalho quando viu aquele rosto familiar da escola, logo ali na recepção da “Watermark Construction". “Como é que aquela menina foi parar na Flórida?”, pensou consigo. “E ainda por cima na mesma cidade, na mesma empresa?”. Do mesmo jeito que ele, naturalmente. Por mais que existam explicações racionais, todo mundo sabe que essas coisas não são apenas coincidências, era o destino movendo seus palitos, com certeza. Isabel não era a menina mais bonita da sala. Ela era uma tábua de magrela e baixinha, mas sempre muito desbocada, meio “tomboy”, como os americanos dizem, alguém com quem qualquer rapaz gostaria de ser amigo. Na Flórida, porém, ela estava diferente, andava mais arrumada e vaidosa. Isabel tinha virado mulher de verdade. Foi uma coisa natural, a solidão a que a sociedade americana confina os latinos, e o alívio de ter alguém da sua cidade natal por perto, fez com que os dois gravitassem um ao redor do outro. Tornaram-se ali, os amigos que nunca foram no Brasil. Na época, Isabel era casada com Alisson, o seu namorado desde os tempos de Uberlândia, o rapaz que a convenceu a se mudar para os Estados Unidos. Era a primeira vez que o casal morava junto, e Alisson, que era dois anos mais jovem que ela, demonstrou ser um rapaz de humor instável e rebelde: era respondão, e às vezes saía de casa sem dizer pra onde ia e sem ter horas para voltar. Beethoven sentiu o veneno da infidelidade prestes a inocular a relação e pensou consigo mesmo: “se ele não quer, tem quem queira”.
Demorou muito para que o casamento terminasse de vez. Beethoven havia sido há muito dispensado da Watermark e já trabalhava em uma dedetizadora. Um dia, ela resgatou o número do amigo brasileiro no registro de antigos funcionários e o convidou para um drink depois do expediente no “Legends Tavern and Grill”, o lugar do primeiro encontro do casal, onde pediram, ironicamente, uma pizza.
Depois daquela noite no Tavern, Beethoven e Isabel começaram a sair regularmente, a princípio de forma clandestina, depois abertamente; mas sempre sob a ameaça constante das aparições de Alisson, que àquela altura, já amargava uma restraining order de 500 metros deferida por um juiz da Broward County. Beethoven, que também tinha sua parcela de impulsividade, começou a morar junto com Isabel em menos de um mês do primeiro encontro, quando o divórcio dela nem tinha saído.
Isabel foi deixando Beethoven ficar, mas não permitiu entregar-se por completo. Ele não entendia o porquê, afinal de contas, não era nenhum Alisson, e não era tão sem noção como os outros brasileiros que havia conhecido em Fort Lauderdale. Isabel evitava Beethoven a maior parte do tempo, e passava horas calada, como se fossem apenas roommates. Até que Beethoven finalmente explodiu e a colocou contra a parede: “Que porra era aquela?”, “O que mais ela queria?”, “Por acaso ela se achava melhor que ele?”. A briga chamou atenção dos vizinhos que ameaçaram chamar a polícia. Foi então que Isabel, envergonhada, contou-lhe chorando aquilo que ela não sabia como confessar: há dois meses, havia tido uma recaída, e hoje estava carregando na barriga o filho de Alisson. Ela estava decidida a tê-lo, mas ao mesmo tempo tinha medo do que Alisson podia fazer. Estava perdida e com saudades de casa. Queria ter o filho no Brasil.
Beethoven pegou as chaves do carro e foi dar uma volta à noite. Dirigiu da Boca até West Palm Beach, fazendo cálculos. Isabel estava certa de que nunca mais veria o namorado, no entanto, ele chegou às três da manhã tocando a campainha feito um louco. Quando Isabel abriu a porta, ele exalava de longe cheiro de cigarro e um bafo de cerveja, mas trazia na mão um bouquet de flores, compradas em uma 7-Eleven 24 horas. Foi naquele momento, e não antes, que Beethoven conquistou de fato seu coração.
— E aí? O que aconteceu?
O pizzaiolo chamou o nome de Beethoven. Foi até o balcão e trouxe de lá não só a caixa de pizza, mas uma mão cheia de sachês de ketchup e maionese. Continuou:
— Então, aí que tá. Os primeiros meses foram uma maravilha. Eu trabalhava, ela também. A gente até chegou a ir pra Disney, tem até foto. Mas eu já sabia, Isabel ia voltar. Ela praticamente ligava toda noite pros pais e ficava horas conversando, fazia fila na casa dela, aparecia até a prima de terceiro grau. A mãe também fazia muita pressão, falando que ia montar um quarto pro Davi. Falou até que eu podia ficar lá também. Aí eu disse pra Isabel: “Isabel, eu vou com você pro Alaska, pra Conchinchina, pro escambau, mas não posso voltar para Uberlândia. Primeiro porque eu saí brigado com a família, segundo porque eu não falo com eles há anos, e terceiro porque morar nos Estados Unidos foi sempre o meu sonho e eu jurei que só ia voltar no dia que eu conseguir um green card”. Aí ela virava e me dizia: “mas você tá sempre sem dinheiro, não parou em nenhum serviço, nunca fez nenhum amigo e reclama que não aguenta mais o cheiro de veneno de rato e larvicida”. É foda, Bento. Mulher, aprende isso: sempre tá certa e você tá sempre errado.
— E aí?
— E aí que o tempo foi passando e a barriga dela foi crescendo. Aí, nasceu o Davi. É aquela coisa: você já viu uma casa triste com um bebê por perto? Pois é. Quando ela foi dispensada do serviço, ela nem ligou mais, estava feliz porque sabia que ia voltar pra vidinha dela no Tibery. Eu ainda fiquei naquela, enrolando, mas na hora de comprar a passagem de volta, eu olhei pra minha mão cheia de pele descascada, e não consegui dizer não. O que eu ia fazer nos Estados Unidos sem ela? Voltamos. Isso foi no — Beethoven apertou os olhos — no final de 2000?
— Você tá aqui desde essa época?
— Uhum. Cheguei em Uberlândia praticamente como clandestino de novo, morando em segredo e de favor com os pais da Isabel. Você tinha que ver: o quarto parecia um cativeiro com um berço. Mas todo mundo babava no Davi, né? Só que o tempo foi passando e começou a surgir problema de todos os lados. Tinha gente dizendo que a Isabel devia era voltar com o Alisson, porque criança não pode crescer sem pai; depois veio as amigas da rua dela e começaram a fazer fofoca falando que ela foi fracassada nos Estados Unidos, que foi abandonada, coisa baixa. Ainda tinha a convivência com a família dela que não era das mais fáceis. O pai praticamente não falava comigo. Enquanto isso, os dois sem emprego. E é fralda, é leite, é farmácia, é a tia que paga um supermercado. Foi nessa época que a Isabel começou a frequentar a Igreja com a mãe todo domingo, e implicando comigo porque eu não ia. Dizia ela que eu só queria saber de sair com o irmão mais novo dela, que todo mundo sabe, tinha fraco pra bebida. A família começou a achar que eu era má influência, sendo que o verdadeiro capeta era ele. Uma noite, voltando de um racha, o viado, que já tava tonto, capotou com o carro com a gente dentro perto do Uberabinha. Deu perda total, e quase que a gente caía no rio. Desde esse dia Isabel não quis mais falar comigo. Foi quando eu voltei pra casa, com o rabo entre as pernas.
— Desde então vocês nunca se falaram mais?
— Mais ou menos. Teve uma vez que eu bebi um pouco além da conta e quis entrar a força na casa. Só que eles tinham mudado a fechadura.
— E o que você fez?
— Arrebentei o portão aos chutes. Depois fui levado pela polícia. Mania de americano de botar a polícia em tudo. Nunca vi.
A conversa foi ganhando tons filosóficos à medida que a fome era saciada:
— Bento — disse o irmão, olhando para o pedaço de mussa-frango — Você não acha engraçado, não?
— O quê?
— Sei lá, aquelas coisas que a Célia fala sobre espiritismo, sobre como tudo na vida parece que tem um rumo. Como tudo tem o seu desfecho. Você não acha que faz sentido? Hoje em dia até me sinto sem graça de ter gorado da religião dela.
— Por quê?
— Não acha muito coincidência tudo que aconteceu comigo? Eu tenho todos aqueles problemas nos EUA e no Brasil também, volto para a última cidade do mundo que eu queria morar, a cidade onde eu jurei pra mim mesmo nunca mais pisar de novo. E agora aqui estou: pagando a língua. Primeiro achei que o carma da minha vida ia ser viver ao lado daquela ingrata da Isabel, tentar me acertar constituindo uma família e tudo mais. Se eu desse certo com ela, não só salvaria as dívidas de outras encarnações, mas poderia olhar nos olhos do Vânio de igual pra igual. Quando a gente terminou, quer dizer, quando ela me expulsou de casa, comecei a blasfemar, xinguei Deus com todas as forças por tudo que Ele me forçava a viver. Comecei a achar que Ele não existia.
Bento não parava de comer.
— Nós nunca fomos uma família de abraços e beijos, mas…sabe de uma coisa? Quando eu vi a boca murcha daquele velho mofando naquela cama de hospital, eu tive um estalo que me veio por completo feito uma revelação. Agora eu sei porque tive de comer o pão que o diabo amassou. Eu tive que estar aqui nessa cidade fodida para cuidar do nosso pai. Não sei se você lembra, Bento, mas eu avisei: o nosso pai é doente. Não é possível que tudo que ele faz fosse obra de gente normal. Às vezes, não é que o cara nasceu errado, não. Às vezes o bicho entra numa rua errada e vai longe, longe, longe sem nunca voltar atrás. Ou ainda começou a cultivar hábitos (como eu cultivei por muito tempo, confesso) e que se não forem alterados a tempo faz o cara rodar bonito.
Bento não estava certo se entendia tudo que o irmão lhe falava, mas achou melhor dizer qualquer coisa, não poderia se abster por tanto tempo.
— Que bom que você voltou, Beethoven. Sério. Todo mundo queria que você voltasse no final das contas.
— Valeu, Bentinho da Silva — disse de olhos mareados — e olha só: aquilo que eu falei, sobre a gente não ir no Camaru, esquece! A gente tem mais é que ir mesmo, vai dar muita mulher. E a gente tá precisando é de buceta. O Vânio, na nossa idade, ia fazer a mesma coisa.
— Combinado — fizeram um “shake hands”.
Bento achou aquilo de um mal gosto tremendo, mas naquele ponto concordaria com tudo que o irmão dissesse. Afinal de contas, eles não eram tão diferentes assim. Ambos carregavam nas veias o mesmo sangue aventureiro e inconsequente dos moleques da roça, mas em vez de expressarem sua sanha sensual em brigas de rua, na violência dos rachas, ou em demonstrações gratuitas de poder, eles preferiam outro tipo de coragem, a coragem de amar alguém incontestavelmente, e de mudar de uma hora para outra os rumos das suas próprias vidas por um amor incerto, mas nem por isso menos verdadeiro.
O pizzaiolo chamou o nome de Isabel. Talvez ela e Davi até preferissem comer a pizza quentinha ali mesmo, mas seja por um gesto de respeito, ou, sabendo da personalidade do antigo namorado e do atual, ela pediu para o garçom que embalasse para a viagem. Davi fez ceninha durante toda a espera e só aquietou quando o novo namorado de Isabel lhe mostrou um truque que aprendera a fazer com talheres e um saleiro. Então, a mente do menino, para a qual só poderia existir o que lhe aparecia de imediato, apagou por completo a existência do Tio Betô.
Fingindo que não se importava, Beethoven viu de soslaio Isabel partir de mãos dadas com o aquele homem mau encarado e o filho em um carro desconhecido no estacionamento.
E pelo rosto do irmão, Bento podia ver o quanto estava abatido, e quanto o seu coração derretia junto com sua expressão corporal.
— Que dia, hein? Que dia!