Capítulo 11 - “Touro Bandido”

Décimo primeiro capítulo de "Darlene, meu Amor" a ser lançado em alguma data do ano de 2022, espero.

— Ou.
— Fala.
— Bora no banheiro?
— Agora? — olhou para os lados — A Regina não vai deixar duas pessoas irem de uma vez, não.
— Vai sim, sô. Ela é avoada. Fora que ela é conhecida da minha mãe. Quer ver?
Certo de que provaria o seu ponto a respeito de Regina, Gustavo, após fechar o livro didático com a lapiseira dentro, levantou-se com dignidade e caminhou sem ser notado pela turma que, por sua vez, praticava a oralidade de forma intensa. À distância, Bento observou o amigo, mestre da diplomacia, inclinar-se em posição de humildade em frente à mesa da professora de Português, e, com os dedos da mão entrelaçados na altura do tórax, fazer o que faz melhor: convencer qualquer pessoa sobre qualquer coisa. Regina fez cara feia à princípio, mas foi deixando-se entregar. A certa altura, Gustavo apontou Bento com a mão como se precisasse de um coadjuvante para colorir e dar credibilidade à história. Após o sim inevitável, o amigo indicou a porta com o olhar para o comparsa. Bento obedeceu, levantou-se e o seguiu de cabeça baixa, com a sensação de que seus movimentos estavam sendo monitorados. Não por acaso, Goianinho, que se sentava ao lado de Gilvan nos fundos da sala, leu o pensamento do vizinho de carteira e elevou a voz:
— Ô, Regina! Eu quero ir ao banheiro também!
— Ah, não! Depois você vai, Goiano! — disse Regina, ríspida. Talvez se a professora soubesse que o malaco da turma era na verdade o filho do celebrado vereador Goiano, dono do Patrimônio, do Turmalina e de meia Uberlândia, teria o liberado para fazer o que quisesse.
Bento estava visivelmente mais afoito que Gustavo para aproveitar o seu pedaço de liberdade. Este então disse, assim que se viu fora de sala:
— Ei, ei, calma! Bora andar mais devagar pra fazer o tempo render.
— Ah, foi mal.
— Segura esse papel, ó. Qualquer coisa a gente veio tirar xerox, beleza? Mas bora na cantina primeiro, ver o que tem pra comer?
— Bora.
Desceram dois lances da escada escura antes de ganhar o pátio de onde Índio, de chinelos e calça jeans desbotada, consertava, a pedido da Diretora Xantipa, um ventilador de teto quebrado cujas peças estavam espalhadas ao longo do chão de concreto feito brinquedos de criança.
— Fala, índio! E as novidades? — perguntou Gustavo.
— Nenhuma, graças a Deus! — Índio retribuiu sem olhar, e após desencapar um fio de capacitor como se descascasse uma laranja, disse:
— Aula da Regina, né?
— É.
Continuaram. Adiante, Gustavo puxou assunto:
— Ei, Bentô: você chegou a escutar o “Hunters and Prey”?
— Não deu. Eu botei pra baixar, mas ainda tá empacado nos 30%. Tipo, deu pra escutar um pouquinho, só que as músicas vêm todas bixadas. — Bento estalou a língua no céu da boca em lamento — Ah, não, cara. Vai demorar pra terminar de baixar. Tá osso de usar a internet lá em casa com meu pai e o meu irmão embaçando.
— Uhum. Deixa eu só escutar mais um pouco e eu te empresto.
— Valeu. E o que você achou?
— Cara…gostei não. Parece forró. Eu falo e a galera não acredita: o “Angra” virou uma banda de forró! — disse Gustavo, grave e revoltado — Agora, tô doido pra ouvir o novo do “Oficina” mês que vem.
— Ah, não cara. Só você mesmo pra gostar desse trem.
— Pára, sô. O “Oficina” é bom, os caras tocam muito e as músicas têm umas mensagens massa. Até a Gisele curte. E o bom é que é em português. Melhor do que ficar escutando esses negócios aí em que você não sabe se o cara tá xingando você ou a sua mãe. Mas, aqui, como que tá lá na sua casa agora que seu irmão tá lá?
— Uma desgraça.
— Tô ligado. Lá em casa tá osso também. Ontem eu explodi com meu pai por causa daquele negócio que eu te falei. Cheguei pra ele e falei: "por que o meu irmão pegou o carro quando ele tinha a minha idade e agora eu não posso pegar? Eu sou pior do que ele por acaso?”. Aí meu pai veio e falou: “ah, sei lá o quê…é diferente. Naquela época a gente morava em Araxá, e era mais tranquilo, pá, pá, pá... e era um carro velho, agora é um C3”.
— E aí?
— Aí eu fiquei grilado, disse que ele não acreditava em mim, que ele preferia o Junin como filho, e não falei mais com ele desde ontem.
— É foda.
Bento às vezes se esquecia que os problemas de Gustavo eram de uma insignificância quase adorável. Gustavo era do tipo que podia falar por horas a fio sobre eles, e Bento era daqueles que ficava satisfeito e agradecido apenas em ouvir. Como moeda de troca por aquela amizade rara, o escudeiro só precisava massagear o ego do amigo, odiar seus inimigos e exaltar suas qualidades sempre que Gustavo duvidasse delas. Por isso davam tão certo, formavam uma combinação perfeita entre um pólo ativo e outro passivo. Mas não apenas. Gustavo também era namorado de Gisele, a menina mais nobre do Joaquim, e, ainda que não confessasse em voz alta, Bento gostava de se sentir próximo, ainda que a um grau de separação, das meninas bonitas e ricas da sala. Às vezes ouvia da boca do amigo detalhes da vida de Gisele, de Karen e Caroline: o que elas faziam no Praia Clube, as festas elas frequentavam em Uberlândia e com quais meninos elas ficavam. Isso o ajudava a medir o quão distante era a vida dos ricos da sua própria. Gustavo, no entanto, apesar de estar mais próximo do outro lado, conseguia transitar facilmente entre os dois mundos e sabia que por trás de montanha de draminhas burgueses, por trás dos hábitos de consumo de sua família, de seus cabelos dourados e a pele alva, era importante cultivar um coração cheio de bonomia para as pessoas simples, forjado na melhor criação que o triângulo mineiro poderia oferecer.
Gustavo guiou o amigo com familiaridade pela cozinha do refeitório:
— Ô, Rosi. O que tem hoje pra comer?
A cantineira cobriu o caldeirão fumegante com a tampa de alumínio e respondeu, secando o suor da testa com o avental:
— Sopa.
— E pra beber?
Outra cantineira mais velha, sentada ao lado da geladeira, tratou de informar:
— Suco de Caju.
— Ahn — Gustavo apoiou os cotovelos e as costas contra o alumínio da pia, feito um jovem e cínico Don Juan:
— E por que você veio bonita assim? Foi pra me ver?
O rosto gordinho de Rosi se iluminou num sorriso envergonhado, e a cantineira mais velha soltou uma risada gostosa, batendo palmas.
— Como que fica bonita de touca e avental?
— Não sei, mas hoje você tá que tá.
— Ah, coitado! Olha a sua idade, Gustavo, e olha a minha!… — Rosi, envaidecida, mexeu o sopão com a concha e concluiu — Quando você fizer dezoito a gente conversa.
— Ah, não. Vai demorar demais! Até lá você já me esqueceu — Gustavo, entediado, passou a mão pelos produtos da dispensa e brincou com um copo de plástico da pilha — Bora no banheiro, Bento — E disse, alto — Tchau, meninas, até mais tarde! Rosi, vou ficar com ciúmes se você vier todo dia desse jeito…
Na saída, porém, Gustavo confessou baixinho para o amigo escudeiro:
— Pior que nem gosto de sopa.
Gustavo também tinha seus caprichos de classe média. Não sujava o tênis no chão molhado do banheiro masculino, por exemplo. Quando tinha de entrar por necessidade fisiológica ou para se olhar no espelho, pisava apenas nas ilhas de azulejo de cerâmica estufada que emergiam da água lamacenta. Andando engraçado feito uma garça, ele alcançou a cabine de onde Bento o ouviu urinar quase imediatamente e lhe dizer em voz alta:
— Olha só, por mais que eu tenha um imenso prazer em mijar do seu lado, não te chamei aqui pra isso.
— Não?
— Não. Eu tenho um negócio pra te falar.
— Pra me falar?
— Isso. Pra te falar — Gustavo esperou o fim de um jato duradouro. Voltou para a pia e completou, lavando as mãos com água, mas sem sabão.
— Sempre que eu chego aqui na escola de manhã eu fico um tempinho, uns cinco minutos, fazendo cera e enchendo o saco dos meninos e do Índio aqui na porta, né? Eu sempre faço isso na real. Só que hoje, antes de ir pra sala, tomei um susto: veio uma menina louca do nada puxando forte a manga da minha camisa. Quase rasga. Na hora eu fiquei puto, mas depois ela pediu desculpas e se explicou. Só que ela não queria falar comigo. Queria falar com você — Gustavo limpou as mãos no uniforme por falta de papel — Sabe quem era?
— Acho que sim — Bento respondeu sem se olhar no espelho.
— Pois é. Que que tá rolando entre vocês dois?
— Então, cara, beleza…— expirou — Eu vou contar a verdade porque eu meio que só confio em você. Só que você não pode contar para ninguém.
— Relaxa. Vâmo dar uma volta.
Os amigos trocaram o ar úmido e insalubre do banheiro masculino pela liberdade do pátio central em direção à sala de xerox nos fundos da escola. Caminharam em passos lentos sobre a sombra dos três grandes pinheiros que dançavam molemente no ritmo da brisa da manhã que brincava de colorir o chão com desenhos feitos de luz. Um dia perfeito para alguém abrir o coração:
— Então, Gusta. Não sei se tô ficando com ela. Quer dizer, eu fiquei com ela sim, mas foi só uma vez. Mas não comi ela do jeito que eu falei.
— Você não disse que comeu ela, você disse que ela fez um boquete em você — Gustavo chutou forte um dos pinhos do chão — É diferente.
— Enfim, eu menti. Menti não sei por quê. Acho que eu queria que o Fábio parasse de encher meu saco naquele dia, depois daquele negócio. Queria também ver a reação do Gilvan, pra saber se eles estavam ficando, ou se já ficaram, sei lá.
— E o que aconteceu de verdade na casa do Gilvan?
— O que aconteceu de verdade foi que eu cheguei nela, mas acho que foi uma péssima ideia porque ela estava visivelmente abalada por algum motivo. Foi muito esquisito, cara. Gilvan estava comendo a Mayara no quarto do Gilberto e, sei lá, acho que ela ficou com ciúme. Só sei que o clima tava muito tenso e ela parecia que não queria estar ali, como se estivesse com vergonha, sabe? Mas, olha só, vê se eu tô ficando doido: ninguém cai num lugar daqueles de paraquedas, né? Todo mundo sabe que aquilo não era um chá da tarde. Quem tava ali sabia o que queria. Só tinha carta marcada. Ainda mais andando com a Mayara, que não é nenhuma santa.
— Não mesmo. Mas e daí?
— Daí que ela me deu um fora formidável, definitivo, brutal. Aí eu meio que fiquei puto e falei foda-se. Deixei a galera lá sozinha sem falar nada pra ninguém.
— Cara, eu entendo que você se sentiu rejeitado, é horrível. Mas você não pode sair sem falar com ninguém assim não. Isso é coisa de gente maluca. É melhor ficar lá e trocar ideia com a menina, descobrir porque ela estava mal.
— Pois é, vacilei. Mas deixa eu te contar. Passado uns dias, por causa de circunstâncias que nem valem a pena eu te contar, a gente acabou voltando a se ver e acabou que a gente saiu e ficou, só que de verdade. Por isso que eu matei a aula semana passada.
— Sabia! Ei, tira uma xerox aí.
— Quantas?
— Sei lá. É pra ninguém mesmo. Tira umas dez. Mas, e aí?
— E aí que foi incrível. Eu conheci umas amigas dela do Messias, ficamos zanzando pelo centro e ficamos falando de música e sobre as nossas vidas. Fiquei sabendo de umas tretas cabeludíssimas da família dela. Cara, uma hora a gente ficou com fome e ela até me convenceu a furtar comida da Americanas!
— Você?
— Uhum.
— Nossa, mulher é foda demais. E você gosta dela?
— Gosto, cara. Pior que gosto. Sempre gostei — Se sentiu ridículo por seus olhos terem mareado vendo a luz da copiadora varrer a folha de papel pela fresta da tampa. Só Gustavo mesmo para notar e não lhe encher o saco.
— Então quer dizer que agora vocês estão ficando sério?
— Não. Não sei, na real. Ela disse que tinha um namorado, cara. Mas não disse quem era. Só que depois disse que não tinha. Não sei mais no que acredito. E desde que a gente ficou ela não aparece direito na escola. Também não tem como eu procurar por ela, porque ela vive em um mundo paralelo que eu não acesso. Mas não é só isso, cara…
— E o que mais, então?
— Desde que a gente ficou, eu sinto alguma coisa estranha vindo do Gilvan. Ele me olha torto, como se estivesse me medindo de longe. Ele nunca foi de conversar comigo e agora é “Bentinho aqui”, “Bentinho lá”. Faz uns comentários que você não sabe se tá te elogiando ou te humilhando. Ele agora me abraça forte de um jeito doído. Chato demais! Fora que às vezes eu olho pra trás e ele está me encarando do fundo da sala.
— É, você tem que ficar ligado.
— Você acha?
— Acho.
— Você acha que ele é afim dela?
— Não sei. Ninguém sabe na real, mas ele meio que protege ela, sem dúvida. Terminou? Então bora beber água. — Os amigos deixaram a sala de xerox sob o olhar das duas auxiliares que ouviam com interesse toda a história. Gustavo respirou fundo e passou a refletir em voz alta:
— Velho, já percebeu que o Gilvan é um cara muito misterioso? Já percebeu que a gente também sabe pouco da vida dele? Tipo, não estou falando mal dele, não. Conheço o cara desde o início do ano passado, já vivemos muita coisa juntos. Já viajamos, enchemos muito a cara, viajamos com o carro do pai dele. Ele é como um irmão pra mim. Mas, mesmo assim, tem muita coisa da vida dele que eu não sei.
— A mãe dele morreu, né?
— É, tipo isso. Ele não fala sobre a mãe, já viu? E também ninguém é doido de ficar perguntando. Mas é óbvio que isso abala uma pessoa. Principalmente porque a mãe dele morreu quando ele era muito jovem, acho que ele nem tinha cinco anos. E parece que a Teresinha era super gente fina, todo mundo gostava dela aqui no Saraiva. E é aquela coisa…não tô dizendo que o Gilberto não é gente boa. Eu nem conheço o pai dele tanto assim pra dizer bosta. O cara é fechado também. Tipo, ele busca a gente nos rachas, leva a gente nos frevos, mas pai não é mãe, né? E a casa sem a mãe é uma casa meio largada, fica suja, fica sem vida. Casa de homem é uma desgraça na verdade. E aí fica aquela coisa: a relação do Gilvan com o pai dele é um estica e puxa danado. Tem hora que os dois estão bem, tem hora que o Gilvan fica puto com umas coisas que o Gilberto faz. Aí fica lá os dois, batendo cabeça. Só que o Gilvan é meio orgulhoso, nunca vai falar das coisas. E olha pra você ver, mesmo com tudo isso, ele consegue ser um menino super esforçado: joga bola pra caramba, artilheiro da copinha sei lá quantos anos. Não é o mais inteligente, mas conseguiu ficar na turma A até hoje.
— Verdade.
— Enfim, o que eu quero dizer é que, por falta de mãe, acho que o Gilvan ficou meio desfalcado nessa parte emocional, ele pega as meninas aí, mas não sabe lidar com elas direito. Fora que ele é muito esquentado. Já vi ele quebrar dente de menino mais velho, já vi ele peitando policial por causa de futebol! Policial, Bento!... Então é aquela coisa: ele é meu amigo? É. Mas como amigo eu digo: o bicho é doido.
— Então você acha que eu tenho que me afastar da Darlene?
— Sim e não.
— Como assim?
Gustavo parou para beber calmamente a água da torneira. Tempo que provavelmente usou para pensar no que dizer a seguir:
— Bento, você já foi no laboratório da escola?
— Hã? Laboratório? Aquele lá perto da quadra antiga? Não. Quer dizer…fui naquela vez que a gente foi assistir àquele filme horroroso sobre regras de trânsito. Mas só. Dizem que roubaram a televisão de lá.
— Roubaram. Agora eles estão usando o laboratório para estocar carteira antiga. Bora lá?
— Por quê?
— Num sei, às vezes a gente acha dinheiro lá dentro. Vi que a porta tá aberta. E é bom que ninguém vai procurar a gente lá.
— Hmm — Bento procurou se alguém da Coordenação os monitorava — acho melhor, não, Gustavo. É melhor a gente voltar para a sala na real. Senão a galera vai comentar que a gente tá muito tempo fora, aí já viu. Índio já tá até olhando para a gente com cara esquisita.
— Velho! — riu, debochado — é isso! É isso que eu tô falando! Você nunca vai ficar com a Darlene nem com mais ninguém desse jeito.
Bento, ofendido, não conseguiu dizer nada. Até Gustavo tirava sarro dele, até ele!
— Bento, olha só. Você me pergunta se você deve se afastar da Darlene. Como é que eu vou saber disso? Você que tem que saber. Eu só sei de uma coisa, se você ficar com medo, você já perdeu a parada. Pára de ter medo e bora lá no laboratório.
— Tá bom.
— Vou, inclusive, te contar uma história. Sabe como que eu fiquei com a Gisele?
— Não.
— Pois eu te falo. Eu fiquei vidrado na menina desde o primeiro segundo que eu vi ela rodando a saia e de dentinho pintado na festa junina, mas no início não falei nada porque era novo aqui na escola, tinha chegado em Uberlândia tinha nem um mês. Isso foi antes de conhecer vocês tudo. Os primeiros da galera que eu conheci foram o Fabinho e o Tales, porque eles eram sócios do Praia e a gente jogava bola lá toda quarta. Só que um dia a quadra alagou e a gente teve que dividir o ginásio com as meninas do vôlei. Aí todo mundo ficou doido, né? Quando as meninas entraram, quem que eu vejo de cabelo amarrado, joelheira e shortinho? Pois é. Aí, meu irmão, eu pensei comigo mesmo: se isso não for uma oportunidade, eu sou a Sula Miranda! Cheguei até a falar pros meninos: “vou namorar essa loirinha…”.
— E o que você fez?
— Se eu tivesse dado ouvidos aos urubus do meu lado, não teria feito nada. O Fabinho chegava e falava: "viaja não, sô! Gisele só pega boy. Tem que ter carro pra ela olhar pra você”. E ao mesmo tempo o “duas caras” não perdia a oportunidade de ficar me zoando quando tava perto das meninas. Daí eu fiquei quieto, parei de falar para os outros o que eu ia fazer. Comecei a puxar conversa com a Gisele aqui mesmo na sala. me interessei pela vida dela, perguntava como foi o dia anterior, fazia piada pra ela rir, fiquei amigo das amigas dela. Estava sempre no ginásio depois do treino, com um Frutilly ou um açaí esperando por ela. Ela começou a entender que podia confiar em mim e foi se entregando aos poucos. De repente, a gente passava o dia inteiro juntos.
— É, eu lembro. Ahn, mas e aí?
— Um dia eu acordei com a macaca e fui até o carro da mãe dela no estacionamento do Praia. Me apresentei, disse: “moça, meu nome é Gustavo Gonçalves e eu estou aqui diante da senhora para te pedir uma coisa muito séria. Sei que sou jovem, não conheço as coisas do mundo, mas se tem uma coisa da qual eu tô certo é que eu quero ser o namorado da sua filha e, com a sua permissão, quero fazer ela muito feliz!”. Na hora ela riu e me chamou de “meu filho”, mas nos bastidores deve ter trabalhando por mim, porque no outro dia a Gisele já chegou na escola rindo.
— Uau, cara. Eu nunca faria isso.
— Exato. Porque você tem medo, quando você tem medo você não faz nada.
— Então você quer dizer que eu devo brigar com o Gilvan?
— Também não. O que eu quero dizer é: ninguém te dá nada de graça. Tudo que você quer na vida você tem que ir lá e arrancar na unha. Se você acha que pode fazer ela mais feliz do que é atualmente com o Gilvan, vai lá e bagunça a vida de todo mundo. Toma ela pra você.
— Mas que direito eu tenho de acabar com esse relacionamento?
— Nenhum. E ao mesmo tempo todo o direito do mundo — Gustavo abriu a porta do laboratório para o amigo — vai entrar não?
— Tá bom. Mas sabe de uma coisa que eu não entendo? Se Gilvan e Darlene estão juntos, por que ela ficou comigo?
— Não sei. Por que você não pergunta pra ela?
Como num passe de mágica, ou como numa revelação de pegadinha de TV em que a vítima se descobre um joguete de uma arranjo ridículo e previamente ensaiado, Bento encontrou a personagem da conversa sozinha na solidão do cômodo mais ermo do Joaquim.
Desde que o governador autorizou a compra do novo mobiliário, e com ele, as novas carteiras de trapézio, (carteiras que, diferente das antigas mesas retangulares de ginásio, permitiriam um “reagrupamento criativo e dinâmico das experiências pedagógicas em sala de aula”), Dona Xantipa foi permitindo que o laboratório fosse usado como solução temporária para o descarte dos móveis antigos. Aos poucos a Coordenação foi perdendo o controle do patrimônio e não conseguiu conter a depreciação e a onda de saques. E após quase dois anos, o resultado foi que o laboratório ganhou um aspecto tenebroso de masmorra além de uma montanha disforme de mesas e cadeiras que muito lembrava o que nos dias de hoje se chamaria de “obra de arte pós-moderna”. A única luz que havia escapava pelas laterais das venezianas e que desde a última invasão haviam sido vedadas com cobertores. Todo ele cheirava a guardado, havia poeira nas pias e nos balcões de mármore, garrafas de álcool vazias e tubos de ensaio quebrados pelo chão. A jaula presa ao teto que guardava a antiga TV estava aberta, o microscópio havia sumido, levaram também o poster da tabela periódica, os termômetros e o dorso de corpo humano. Dos tempos áureos, somente alguns objetos asquerosos foram mantidos, já que ninguém quis levar para casa um pote com um feto de bezerro ou um sapo cururu no formol.
E era ali, sentada sobre uma das últimas cadeiras intactas daquele holocausto de madeira e ferro, onde Darlene dormia, ou fingia dormir, com a cabeça enterrada sobre sobre os braços e seus cabelos escorrendo sobre a blusa de frio. Ao ouvir o som de passos, ela olhou para Bento e revelou os olhos vermelhos e inchados dos que choram. Quando se reconheceram, Darlene fez uma expressão simultânea de alívio e vergonha.
Gustavo disse deu um tapinha nas costas do amigo, com a satisfação de ter cumprido com seu dever:
— Pronto, Darlene. Tá entregue. Agora deixa eu voltar pra sala, né? Pode ficar tranquilo que eu invento qualquer coisa pra Regina. Agora, fiquem de olho, senão a Teolinda come o cu de vocês! — Gustavo, então, se lembrou que havia uma moça no recinto e se reparou — desculpa aí o palavreado… — saiu. Bento procurou algo onde se sentar enquanto a menina recompunha o seu rosto: — Vocês estavam falando sobre o quê?
— Não, não. Nada de interessante.
— Desculpa. Não sabia como chegar até você.
— Não, não tem problema. Mas… por que você está aqui e não na sua sala, você tá bem?
— Uhum. Só queria mesmo ficar um pouco sozinha, dormi mal ontem e tô com um pouco de torcicolo. Queria também falar com você, dar uma satisfação — o olhar dela corria perdido, como se fugisse da responsabilidade de olhá-lo nos olhos.
— Você tá chorando.
— Não estou chorando, não. Eu tô bem, juro. Olha só, o que eu queria é te agradecer em primeiro lugar, porque a gente se divertiu muito naquele dia. Eu pelo menos me diverti. A gente se aproximou, se conheceu mais em um dia do que em cinco anos de escola. Fui pra casa com a sensação de que se continuasse daquele jeito, a gente ia se aproximar cada vez mais e eu não posso deixar isso acontecer. Não tá certo. Como eu te disse, eu estou em um relacionamento…
— Você disse que não tinha namorado.
— Mas tenho sim. E eu percebi que o meu namorado é uma pessoa incrível. Ele cuida de mim e não é nem um pouco do jeito que as pessoas pensam que ele é — Darlene olhou pela primeira vez nos olhos do menino. Girou o corpo e tirou uma sacola da própria mochila — toma…
— O que é isso? Não! Darlene, esse CD é seu, foi meu presente pra você, não posso aceitar de volta.
— Você não tá entendendo, Bento. Eu não posso ficar aceitando presente de gente fora de casa. Te agradeço muito, foi o melhor presente que eu recebi na vida, mas já tive problemas demais por causa dele. Toma.
— É melhor dar para um mendigo, porque eu não vou aceitar.
— Então que você dê, eu não vou voltar com o CD pra casa. Outra coisa. Vim aqui pra me despedir, Bento. Não vou mais voltar pra escola. Hoje é meu último dia aqui no Joaquim. Daqui a pouco, antes do recreio começar, eu vou lá pros fundos e vou sair pelo muro de trás. Depois disso, ó: “bye bye”.
— Você tá louca? — esbugalhou os olhos.
— Tô é muito certa. Não tem nada a ver eu voltar pra escola. Não tenho mais amigas direito, só colegas. Quem eu conhecia passou a me julgar e eu não tô afim de dar satisfação pra ninguém. Não tô com cabeça pra estudar e acho que vou repetir o ano de qualquer jeito. Ano que vem eu vejo o que eu faço, tento ir pro Maria Conceição ou para outra escola.
— Darlene, não faz isso. Já estamos no segundo semestre, o ano já está acabando. Se você quiser, a gente vai junto conversar com os professores, eles vão aliviar a sua barra. Isso aí que você está fazendo é desistir e a gente não pode desistir nunca. Mas você precisa me dizer o que está acontecendo. Eu sei que tem algo mais grave aí dentro de você e que você não quer me contar! — Bento aproximou-se ainda mais.
A menina não conseguiu conter uma lágrima quente e tornou a enterrar o rosto nos braços. E o que ela disse depois soou abafado:
— Bento, você já pensou em morar em outro país?
— Ahn?
— Outro país. Você já pensou em se mandar daqui?
— Nunca pensei sobre isso. Tipo, meu irmão acabou de vir dos Estados Unidos, mas, sei lá, acho que eu gosto do Brasil. Não ia gostar da comida de outro país.
— No seu caso, faz sentido. Você não precisa sair. Você é inteligente, vai sem dúvida passar no primeiro vestibular que fizer…
— Como inteligente? Não fui eu que ganhou dois ingressos pro Camarú porque sabia a moeda oficial de Botswana.
No escuro dos seus braços, Darlene sorriu em segredo. Depois, disse:
— Olha só. Em uma das casas em que eu e minha mãe trabalhamos, tem uma menina que tem um namorado na Irlanda e ele arranjou tudo pra ela ir morar lá. E o pior é que ela nem sabe inglês direito! Ela falou que assim que ela chegasse ela ia falar comigo pra me dizer como era. Falou que se eu precisasse me ajudava a ir também!
— Irlanda? Uai, Darlene. Se for isso que você quer, beleza. Mas é que nem minha mãe fala: mudar de cidade não é nascer de novo. E acho que você está subestimando a quantidade de pessoas que gosta de você aqui mesmo no Brasil, bem do seu lado.
— Viaja não, Bento, ninguém gosta da gente. A gente sempre tá sozinho. Quanto antes você aprender, menos você sofre — fungou profundamente e limpou o nariz com a manga da blusa — então é isso, já tenho um plano, vou dar um tempo na escola, tentar juntar um dinheiro pra ir pra Dublin.
— Onde é isso?
— Na Irlanda, uai.
— Ahn. Mas e como você vai fazer com a sua família, seu namorado? Você tem que se formar antes, e depois fazer algum curso profissionalizante porque lá você vai precisar de um emprego, nem que seja o de manicure. Fora que o processo de tirar o visto é super burocrático e caro. Você tem que ir pra São Paulo ou pro Rio. E mesmo gastando todo esse dinheiro, não é certo que você consiga o visto. Sem falar nas chances de ser deportado, o que seria uma vergonha para qualquer um.
Darlene brincou com a estampa de sua blusa, arrancou um resquício de esmalte do polegar esquerdo e soltou, profundamente desanimada:
— Eu quero morrer.
— O que você tá dizendo? Bate na boca, menina. Pelo amor de Deus. Nunca fala uma coisa dessas.
— Você não entende, não adianta. Eu não tenho pra onde correr.
— Quem? Quem está te encurralando desse jeito, Darlene?
De repente ela tomou coragem, enxugando as lágrimas dos olhos inchados. Fosse o que Deus quisesse:
— Tá bom. Depois, se você se assustar, não precisa arranjar uma desculpa pra fugir de mim. Eu sei que o que eu vou contar não é a coisa mais fácil do mundo.
— Vamos arriscar, então.
Darlene olhou para os lados, seu segredo estaria aparentemente a salvo naquele porão inabitado da escola.
— Então. Ontem. Quando eu cheguei em casa à tarde, quase de noite, notei que o meu quarto tava diferente, não bagunçado, mas pelo contrário, arrumado demais. Era como se alguém tivesse passado por ali, mas sem querer ser notado, sabe? Abri o armário e tava diferente. As minhas roupas não estavam do jeito que eu gosto.
— Às vezes é a sua mãe que arruma e você não sabe. Isso acontece comigo.
— Não. Eu trabalho com a minha mãe, eu vejo o que ela faz o dia inteiro. Bem, eu já tinha notado algo errado com o Paulinho.
— O seu padrasto? O da cadeira de rodas?
— Uhum. Ele é um cara muito esquisto. Reclama de tudo, você tinha que ver. Xinga demais também, nossa senhora! Às vezes ele fala bosta, coisa muito cruel, humilhando mesmo, coisa que faz a minha mãe chorar e depois vai pra sala, como se nada tivesse acontecido, passa um minuto e você tá ouvindo ele rir de alguma coisa ou escutar música. É super esquisito, Bento, parece que ele não tem coração.
— Uhum.
— Eu não sou burra, eu já vi o jeito que ele olha, não só a mim, mas também para as meninas da sala na época quando elas iam lá pra casa. Ele via a gente brincar na rua, secando a bunda, as pernas das meninas. Fica perguntando que hora eu vou estar em casa.
— Nossa…
— O pior que isso é o tipo de coisa que não dá pra contar pra minha mãe. Primeiro que ela não ia acreditar em mim, e segundo que, se ela acreditar, e eu acho que ela sabe que o Paulinho é capaz disso apesar da cadeira de rodas, é provável que ela ainda venha jogar a culpa em mim. Enfim. É aquilo que eu te falei, Bento, e você não acreditou: a minha mãe é minha inimiga também.
Bento buscou se recompor da vertigem de problemas e manteve-se em um silêncio estúpido e impotente. Coçou o joelho e só.
— Voltando. Ontem eu cheguei do serviço muito cansada. Ontem foi muito pesado, nossa, porque a casa era grande e a gente veio do Luizote. Então fui chegando e deitei na cama do jeito que eu estava. Dormi profundamente.
— Hmm — murmurou, confuso quanto aos rumos da história.
— Lembro que até cheguei a sonhar. Sonhei que era uma paciente de um hospital, e que estava sendo observada por uma equipe de estudantes que esperavam um médico cujo rosto ninguém, nem as enfermeiras podiam ver, nunca. O ambiente do consultório era congelante e a mesa era super fria. Tive a impressão que eu estava lá prestes a me submeter a uma cirurgia, mas eu ainda sentia o meu corpo, como se não tivesse recebido a anestesia. Fiquei desesperada, queria gritar e não conseguia. Queria correr mas, internamente, sabia que era impossível. Sabe como a gente nunca consegue se mover direito nos sonhos, né? Até que…
— Até que o quê?
— Até que eu acordei. Não sei que hora da noite dava no relógio. Só ouvi o ponteiro martelando alto desde a cozinha. Notei que o meu quarto, que é o primeiro cômodo depois da garagem, estava todo coberto por uma camada azul e prata porque a janela estava aberta e a lua estava alta, muito branca. A noite ficou parecendo dia. Devia ter sido lua cheia ontem. Só que mesmo sem estar totalmente consciente, eu percebi uma movimentação no corredor. Como se eu soubesse que eu não estava sozinha. Eu vi que deixei a porta aberta, e eu nunca deixo a porta aberta.
— Quem era? — Bento achava que se tratava de um ladrão.
— Eu vi ele tentando disfarçar debaixo da sombra do corredor que dá pra cozinha, sei que ele tentou abafar o barulho esganiçado da roda. Mas eu reconheci a barriga dura dele, as pernas finas, o peito caído. De longe, vi também a bermuda velha e amarela dele se mexer no meio da escuridão. Mas principalmente, vi o jeito com que ele me olhou, a córnea branca e bovina, me olhando com desejo, cínico.
— Que-que-q’cê acha que ele estava fazendo?
— Hum…como assim? O que você acha?
— Sei lá.
— Ele estava se masturbando, uai.
Bento parou, atônito e confuso.
— Que isso, Darlene. O que você tá falando é muito sério. Tem certeza?
— Absoluta. Eu tenho certeza do que eu vi. Se ele tentou se esconder, tentou muito mal, inclusive. Era como se ele quisesse ser pego, na verdade. Deve ser alguma espécie de fantasia, ser visto se masturbando pela própria afilhada. — ela mergulhou os dedos em seu cabelo, depois oscilou da raiva à vergonha — Desculpa, Bento. Eu não acredito que eu estou te dizendo essas coisas. Você não tem obrigação de ficar aqui me ouvindo. Pode ir para a sala se você quiser.
Bento sentiu-se profundamente envergonhado e sentiu que seria inadequado abraçá-la naquele momento. A última coisa a se fazer é não confundir a cabeça dela, na possibilidade de ser mais uma pessoa a tirar proveito de seu corpo.
— Darlene, desculpa. Eu não sabia que você estava convivendo com esse tipo de gente em casa. Bem, na verdade, eu imaginei, mas não sabia que era tão grave. E você está certa. Acho que você tem que sair de lá o quanto antes. A família é um caldeirão de loucuras.
— E ir para onde? — A verdade óbvia desmontou qualquer boa intenção.
— Eu tô ligada que eu estou sozinha. Minha mãe é uma songa monga, meu irmão já deu o fora já tem seis anos. E o papai, papai tá vendo tudo sem poder fazer nada lá no céu.
Bento sentiu-se ridículo por ter que recorrer ao seu inimigo.
— E o seu namorado? Ele sabe dessas coisas? Não pode fazer nada por você, não?
A menina começou a achar a conversa repetitiva e se levantou, preparando-se para partir de vez do Joaquim. Bento se levantou também.
— Ele não pode ser um pai pra mim. Falando nisso…vai levar CD ou não?
— Não, eu nem gosto de Red Hot. Comprei pra você.
— Você não tá entendendo. Eu não posso aceitar um presente seu. Por favor, leva esse negócio daqui e não cria mais problemas. O Gil encheu o meu saco demais por causa desse negócio. Na verdade, eu não sei porque eu saí com você aquele dia. Eu acho que estava confusa. Mas não foi certo. Eu me esqueci de tudo que tinha escrito na carta, acho que traí a mim mesmo.
— Mas você mesma não disse que foi bom?
— Sim, mas isso não quer dizer nada. Eu não quero te ver nunca mais e eu quero que você esqueça de mim e pare de me seguir. Parece que só tem doido ao meu redor! Olha, nunca vai dar certo, eu e você. Não é sua culpa, você tem uma alma bonita, mas estamos em momentos diferentes. Você tem seus amigos aí, tem nota boa, é inteligente. Você tá livre pra fazer tudo que alguém da nossa idade pode fazer.
— Pára com isso.
— Não, deixa eu falar até o final. Talvez a gente pudesse dar certo em outro pedaço de espaço e tempo, mas não esse e não agora.
— Darlene, eu entendo que você está em um momento difícil, mas o que você me pede é uma coisa impossível. Ninguém, especialmente depois de ouvir uma história dessa, teria a frieza de deixar alguém que gosta ir embora.
— Não, é fácil. Você vai se acostumar. A gente é tudo bicho, Bento. Todo mundo se acha anjinho demais, mas no fundo a gente é tudo bicho que só precisa de ração. Depois de algumas semanas sem me ver, você vai me esquecer. É assim. E esse seu coraçãozinho cheio de boa vontade vai aprender a amar de novo e amar melhor e alguém que possa te amar do jeito que você merece.
— Eu não quero aprender a amar ninguém, eu quero matar aula pra sempre com você. Você me disse os seus problemas, e olha só: eu não me assustei. Agora eles são meus, Darlene! Quero viver os seus problemas como se fossem os meus problemas. A sua vida é a minha vida agora.
— A nossa história foi muito bonita.
— A nossa história ainda está para ser escrita, só você não percebe: tudo isso é um sinal de que o universo quer que a gente fique junto, é um portal — Bento, já com lágrima nos olhos, esqueceu que se tratava de uma menina em trauma e segurou forte na parte externa do braço dela, e se entregou — Eu te amo, Darlene.
— Não ama, não. Olha pra mim, você está assistindo a muitos filmes e tá perdendo a noção da realidade. Você vai embora viver uma vida muito bonita. E vai conseguir tudo que você quer. Se você gosta de mim, pelo menos um pouco do jeito que você diz gostar, você vai me deixar viver com um peso a menos na consciência.
— Eu não quero saber, eu brigo com quem for. Eu mato esse cara.
— Você não sabe do que você tá falando.
— Eu vou hoje à sua casa e eu mato o Paulinho.
— Adeus, Bento. O sinal já vai tocar. Já deu a minha hora.
— E você vai vir morar comigo.
— Bento, volta pra sua sala.
— Darlene, eu te amo.
— Ama nada.
E o segundo beijo do casal infiel, o segundo beijo da vida de Bento, tinha o gosto salgado de uma solução de lágrimas. Dessa vez a língua dele buscou a dela com desespero, mas sem encontrar do outro lado a entrega do beijo anterior. Somente as pontas das línguas se tocaram, e o beijo sem desejo, assim como o abraço débil, se desfez em si mesmo. Bento percebeu o quão ridícula era sua situação. E não fez nada para impedir Darlene de ir embora do laboratório, e depois, do Joaquim.

A oralidade era tão vigorosa na atmosfera do oitavo A que a professora Regina havia desistido de dar aula vinte minutos antes do soar do recreio e despejou no quadro negro uma lista de onze exercícios. Bento entrou pela sala, sabendo da comoção que sua chegada tardia poderia provocar. Quando de fato o fez, Fábio, sempre ele, despontou:
— Olha a margarida!
A maioria riu. Bento só queria chegar incólume na sua cadeira. Fábio, porém, nunca se dá por vencido e cantou com voz rasgada:
— “Primavera chegou, seu amor me pegou e eu chorei!”
Quase todo mundo, inclusive Tales, Gustavo e as meninas ricas acabaram rindo. Regina teve de intervir:
— Irra, Fábio! Coisa mais chata. O que que tá acontecendo que hoje vocês estão mais encapetados que nunca?
— É o Camaru, professora. Quinta, agora — disse Tales, excitadíssimo.
— E qual a atração principal deste ano?
— Bruno e Marrone! — em uníssono.
A professora ensaiou uma cara blasé como se ela não fosse fã da dupla e como se ela mesma não estivesse preocupada em como estaria de pé às seis e meia da manhã da sexta após o show.
— Dizem que o Touro Bandido vai estar lá também! — O jeito inocente de Grace Kelly sempre provocava graça. Ao que Regina, igualmente sem maldade, retrucou:
— Acho que o Touro Bandido tá é nessa sala!
O oitavo A imediatamente gargalhou em êxtase.

No recreio, Gustavo passou o tempo todo ao lado de Gisele, Tales só podia ser visto ao lado de Ariadne, eram um casal sério e estável. Para Bento, só lhe restava a companhia de Fábio, Gilvan e Goianinho, um pior que o outro. Estava com raiva e nojo, e sentiu ser impossível passar outro recreio com gente que ria dele e não com ele. Decidiu, como num impulso, enquanto os três discutiam sobre futebol e os treinos da copinha, simplesmente olhar para o lado e desertar. Sair sem dizer para onde ia, sem dar satisfações para ninguém. E uma vez feito isso, o ato teve um efeito libertador e mostrou-lhe que, às vezes, bastava um simples “não” para a história do mundo ser reescrita. Poderia ter sido livre muito antes, pensou.
Bento, decidido, cortou o pátio pela lateral, desviando de umas crianças que brincavam de chocolate quente, alcançou a porta da Secretaria. A sala vazada, com uma porta de entrada e outra saída, ficava sempre movimentada no recreio porque Teolinda sempre atendia às solicitações das crianças que aglomeravam ao redor de sua mesa, e porque a sala servia de antecâmara a um corredor improvisado e que, por sua vez, levava até a recém inaugurada sala dos professores. Pelo corredor adentro ele seguiu. Na sala dos professores, Giovana, além de outros mestres novatos e veteranos, gozavam os merecidos vinte minutos de descanso das batalhas com os alunos. Para compensar o reboco exposto da sala em reforma, a Coordenação concordou em instalar uma moderna máquina de café, com um pote cheio de bolachas Mabel, dois ventiladores e uma longa mesa de cantina.
Giovana preferia sentar-se sozinha, sem chamar muita atenção, em uma cadeira de assento oval, ao lado de um armário arquivador de alumínio. A professora de artes espetava fatias de kiwi de uma tupperware com um pequeno garfo azul de plástico, enquanto lia algum paper do mestrado no colo. Seu rosto se iluminou quando reconheceu Bento que timidamente lhe acenava da porta, mas, ao buscá-lo e ler a sua cara fechada, sabia que ali tinha coisa séria.
— Que cara é essa, meu príncipe?
— É. Professora, eu meio que queria falar com a senhora.
— Quer?
— Que isso?
— Kiwi.
— Ah, não.
— Você se importa se eu comer, eu estou azul de fome.
— Não, claro que não.
— Então pega uma cadeira e me conta tudo…
Ao longo dos vinte minutos do recreio, Bento abriu seu coração, despindo-se por completo diante de sua mais nova amiga adulta. Começou pelo início, contou sobre Darlene, a quem a professora conhecia vagamente das aulas, mas sabia tratar-se de uma das maiores acumuladoras de faltas das quatro turmas da oitava série. Sem entrar em detalhes de seu caso amoroso e infiel, desenhou os contornos da vida trágica da menina: uma família suburbanamente feliz assaltada pela morte prematura do patriarca e a longa caminhada rumo ao precipício. A pobreza que levou ao trabalho forçado servindo a casa dos outros, e as jornadas de volta para casa, às vezes de ônibus, às vezes a pé até o Lagoinha. A casa já se encontrava em ruínas e os vidros, despedaçados. Depois veio a solidão da mãe que aos poucos perdia o controle de seu corpo, passando a gravitar ao redor das mais abissais companhias. O irmão que um dia de manhã, sem contar para ninguém, abandonou a casa decepcionado por ver outros homens violarem a cama que fora de seu pai. Depois veio Paulinho, a princípio apenas um visitante barulhento, um alívio momentâneo para a solidão, com o ronco do motor da moto invadindo a garagem da casa de mãe e da filha nos fins de semana, e mais tarde, a semana inteira. Seis meses depois, a ligação, o acidente de Paulinho, a moto desfigurada debaixo do ônibus, os dias que se seguiram na UTI do UAI Pampulha, o milagre, os pinos metálicos na canela imóvel, a cadeira de rodas, e o acolhimento forçado em uma casa estranha, cuja presença não se sabe se motivada pela caridade ou pelo medo. E, diante do rosto devastado de Giovana, Bento escancarou de vez o segredo de Darlene. Ao final, estava cansado e inquieto por não saber se havia feito o certo. Agora era tarde demais.
— Bento, eu não sei o que dizer. Você deve gostar muito dessa menina para vir aqui me dizer isso.
— Sim, eu conheço ela. Ela sempre foi uma menina boa, sempre foi inteligente e talentosa. Ninguém sabe disso, mas ela sabe de cor tudo sobre geografia, as capitais, as línguas e as moedas de qualquer país do mundo, até do oriente médio. Ela me disse que não vai mais voltar pra escola, Giovana! E eu sei lá, não sei o que pode acontecer com ela se ela continuar a ficar naquela casa. Achei que, de todas as pessoas que eu conheço, você era a única a quem podia confiar. Eu preciso da sua ajuda!
— Claro, meu príncipe. Você fez certo — e abraçaram, o que possivelmente despertou o ciúme de alguns professores.
— Olha — e olhou diretamente nos olhos adolescentes e acalmou o corpo ainda ofegante de tanto falar, algo a que não estava acostumado — eu prometo que eu vou pensar em algo para ajudar a sua amiga. Como é o nome completo dela?
— Obrigado, Giovana. É Darlene Castanheira Silva.
— Eu que agradeço — Giovana tomou nota — Agora volta pra sua sala porque o sinal já vai tocar. Até lá, ó — fechou um zíper imaginário pelos lábios — Você não quer que o caso dela passe de boca a boca pelo pessoal, não?
— Não mesmo. Professora Giovana, nossa, você é a melhor pessoa que eu conheço. — disse o aluno agradecido antes de desaparecer pelo corredor.
Giovana caminhou sem forças até a pia do lavabo para limpar a tupperware, e, na volta, dobrou as suas folhas grampeadas em desordem dentro da pasta com elástico e enfiou tudo de qualquer jeito na bolsa. Durante o restante do dia letivo, conseguiu apenas replicar a mesma aula externa em outras turmas, dessa vez com menos entusiasmo. Enquanto os meninos quebravam a cabeça em seus desenhos impressionistas, Giovana buscava ler e rastrear nos seus olhares de bicho do mato e na explosão de um gesto imprevisível os traços de neuroses ou reflexos de tragédias familiares recalcadas. Eles estavam em todos os olhares. De repente seu coração se tornou pesado demais e uma grande tristeza assaltou a sua alma de professora. E sem que ninguém visse, chorou pela sorte da menina e dos alunos que sofrem em segredo.

Não importa se fosse dia de prova ou o quão ocupada estivesse, Giovana fazia sempre questão de almoçar em casa com os pais e a irmã. Isso, fora a viagem de final do ano e o jantar de Natal, eram os únicos rituais que a família Fayad fazia questão de não deixar morrer. E não foi diferente naquele início de tarde de terça-feira.
Os Fayads moravam no coração do Fundinho, um dos bairros mais antigos de Uberlândia, em um dos edifícios mais famosos da cidade, o Chateau de Chenonceau, todo ele erguido com vigas de concreto armado e o dinheiro de um fundo de professores e médicos do Hospital das Clínicas. Giovana estacionou o carro na garagem subterrânea e de lá tomou o elevador até o 1101 que abria direto para a porta da sala do único apartamento daquele andar. As janelas do tamanho de paredes abarcavam tpdas as copas das copaíbas, dos ipês e das aroeiras da praça Coronel Carneiro, e o sol à pino inundava a sala de luz, explodindo sob o chão de madeira, as estantes de livros, o tapete persa, a mesa de centro com o jogo de xadrez.
Paulo Fayad, pai de Giovana, nem sequer olhou para a filha quando esta entrou pelo living. Não por indiferença, mas por estar concentrado em explorar as funcionalidades, sobretudo a câmera embutida, do seu novo celular. Era esse um bom expediente para matar o tempo enquanto as mulheres da casa não se aprumavam para o almoço. Além de uma queda eventual por vinhos (naquele momento estava molhando o bico em uma taça de Casal Garcia) Paulo era um homem sem vícios, a não ser o vício da tecnologia. O celular, o qual vinha namorando a muito tempo, era a sua “coisa” dos últimos meses.
— Cadê a Clarinha e a mamãe? — disse Giovana, antes de beijar o topo grisalho da cabeça do pai.
— Tão chegando aí. Enquanto isso a gente morre de fome — disse Paulo, sem se exaltar.
Na cozinha, Solange, a empregada dos Fayads, deitava um pano de prato para conter o calor que bufava da travessa.
— Solange! — Giovana deu-lhe um beijo na bochecha.
— Ô, dona Giovana! Toma lá seu banho rapidinho e vem comer.
Giovana fechou a porta do seu quarto, destravou as alças do sutiã por dentro da blusa de seda. E se despiu no banheiro com a porta aberta.
O vapor do banheiro alcançava a parede do quarto e a escrivaninha do computador, onde havia uma galeria de fotos emolduradas. Numa delas, Giovana e Maria Clara, empacotadas com jaquetas impermeáveis, luvas e máscaras refletoras, faziam pose na neve erguendo os bastões e as botas com as pranchas de ski contra o ar. Em outra foto, vestindo cada uma um sobrero gigante, as irmãs choravam de rir em meio a um grupo de intercambistas, prestes a virar seuas doses de tequila, isso quando Clarinha era menor de idade. Havia fotos na praia em Ilhabela, no Hot Park, foto das irmãs com os avós maternos em Uberaba. Memórias de uma época em que Giovana e Maria Clara eram inseparáveis. Uma época em que a irmã mais nova, mesmo tendo o seu próprio quarto a poucos metros de distância, arrumava uma desculpa qualquer para dormir no quarto da irmã mais velha. Às vezes, depois de muita conversa sobre garotos, sobre as intrigas da família, do cursinho e da faculdade, elas adormeciam ao mesmo tempo na mesma cama.
Depois do banho, enquanto secava o cabelo, Giovana escutou a movimentação na sala de estar, conseguindo distinguir a voz da irmã e da mãe, Maria Angélica, se explicando pelo atraso. Olhou-se no espelho para se pentear e deixou o olhar cair sobre o porta retrato sobre o criado mudo, com a foto de Clarinha com o cabelo emplastado por uma solução de farinha e ovo e a sigla “MED” escrita sobre a testa. A “Clarinha bolinha” cresceu e se transformou na imponente “Dra. Clarinha” e, quem diria! estava prestes a se casar com seu primeiro e único namorado. Como o tempo passa! Era impossível para Giovana, após comparar a sua própria vida com a dos seus alunos no Joaquim Saraiva, não chegar à conclusão que era mesmo sortuda por ter uma família como aquela, seu maior tesouro em vida.
Foi se juntar a eles. E que fome! Era nesse momento, no almoço em família, que a professora e acadêmica deixava por um momento de guiar os caminhos da própria vida e voltava a ser apenas filha de alguém. Maria Angélica trazia na mão uma pilha de DVDs alugados, os quais mãe e filha viriam ao longo da semana. Era impressionante como as "Marias" pareciam, agora que andavam pra lá e pra cá sempre de branco.
— Um minuto, Solange. Deixa eu lavar a mão, pelo menos.
Aos poucos Solange foi montando a mesa. Veio o prato principal: lasanha de berinjela e, aos poucos, os acompanhamentos: uma salada tropical com manga, alface e palmito e uma jarra com suco de acerola. E façamos justiça: embora a empregada de mais de uma década tenha sido repetidamente convidada a sentar-se à mesa, ela nunca aceitou. Dizia que não gostava de comer da própria comida e preferia almoçar depois de todo mundo, sem que ninguém a visse no cantinho do lavabo. Um dia, Maria Angélica e as filhas, cansadas de insistir, simplesmente pararam de convidar.
Tudo correu bem em mais um almoço de família. Como sempre, mãe e filha reclamavam da desorganização do hospital e Paulo falava por alto dos planos para sair do apartamento do Fundinho. Estava cansado do trânsito do Centro e já havia um bom tempo que investia numa casa no alto da Morada da Colina, e que, mesmo com o atraso da construtora, estava para ser entregue naquele ano.
Maria Angélica não gostava desse assunto, e inclusive não tinha pressa alguma em se mudar, não antes de sair a aposentadoria. Achava que a casa ficaria longe do hospital e da universidade. Desse jeito, segundo ela, “Maria Clara vai achar que a gente está expulsando ela de casa”, o que, claro, a filha negava, embora internamente soubesse que assim que se casasse com o Rômulo seria natural que eles procurassem um canto para eles. Paulo, um pouco contrariado, almoçou ligeiro, e foi para poltrona terminar de explorar o celular novo e deixar que as mulheres da casa determinassem o seu futuro em paz. Giovana, porém, pensava em outras coisas, e sua melancolia foi percebida pela irmã:
— Olha pra ela, mãe. É a escola de novo, aposto.
— É… escola pública não é moleza, especialmente para você minha filha, que é uma esponjinha. Consultório é melhor, pelo menos todo mundo é paciente.
— Por que você tá com essa cara de mortinha, Gi?
— Não é nada. Acho que estou com um dilema — Giovana cruzou os talheres no prato e secou os lábios no guardanapo de pano — o que vocês fariam se tivessem o poder de interferir ou de provocar uma mudança radical na vida de alguém que você não conhece a fundo, mesmo que isso significasse invadir por completo a privacidade dessa pessoa?
Clarinha e Maria Angélica se olharam com cara de interrogação. Giovana tentou se explicar:
— É que eu tenho indícios sérios de que uma das minhas alunas do oitavo ano vem sofrendo abusos em casa repetidamente.
— Sim, e daí? — disse Maria Angélica de boca cheia.
— Bem, desde então eu não consigo pensar em mais nada a não ser isso. Até onde eu sei, a menina em questão era super estudiosa e vem declinando rapidamente, fruto, com certeza, do ambiente degradante em que ela vive. Segundo o que ouvi de um colega dela, a garota não quer mais voltar pra escola, quer fugir do país. Disse até que tinha pensamentos suicidas! — mexeu na comida com os talheres — Sei lá, é como você disse, mãe. Eu sou uma esponjinha, mas dessa vez eu sinto que eu devia fazer algo por essa menina. A Coordenação não pode fazer nada a não ser ligar na casa dos pais, e pelo que sei, eles já ligaram diversas vezes, sempre com a mesma promessa de que a filha iria retornar às aulas no dia seguinte. Desculpe por trazer esse tema para a mesa, mas é que as escolas falam tanto em se aproximar da comunidade, de trazer as famílias para construírem juntas o ambiente escolar, mas sinto que é tudo da boca pra fora. No final das contas a lei não permite, e, de qualquer forma, são muitos alunos para poucos funcionários. Se ninguém tomar uma atitude, nada acontece. Enfim, tenho medo que ela faça uma besteira.
Maria Angélica expirou profundamente e tentou tratar do tema sob outra perspectiva:
— Giovana — não deixou de comer para dizer sua opinião —Eu tenho muito orgulho de você. Eu e seu pai temos muito orgulho das nossas duas filhas, justamente por isso, vocês não são apenas profissionais, são seres humanos por completo, com a alma humana e real, que pulsa e sofre pelo sofrimento alheio. Isso, hoje em dia, sobretudo da nossa área que é uma área clínica, é muito raro. Mas, minha filha, eu estaria sendo hipócrita se não confessasse que eu já vi muita coisa nesses anos de plantões — limpou-se no guardanapo — Mês passado, por exemplo, me chegou um paciente no plantão com uma coceira e um inchaço na cabeça do pau…
— Mamãe, pára! — advertiu a casta Clarinha.
— …quando se acreditava que nunca ouviríamos falar de outro caso do câncer pelo papilomavírus em Minas Gerais, uma doença que pode ser facilmente prevenida com um mínimo de cuidado na região da glande, eis que me chega esse garimpeiro, um verdadeiro pobre coitado, cuja sorte dependia inteiramente da boa vontade de um profissional de saúde. Até onde eu sei o caboclo ainda está em tratamento, e mesmo assim, quem me garante que ele não está por aí espalhando, pra esposa se tiver, ou para as meninas menores de idade na beira dos rios e nas rodoviárias de madrugada, a doença que há muito havia sido erradicada? Digo isso porque sei que, depois que ele sair pela porta do hospital, vai agir com o mesmo desleixo, de novo e de novo. Mas não só isso, vejo quase todo dia de meus colegas casos de obesidade, diabetes, acidentes e amputações que poderiam ter sido facilmente evitadas com alguns cuidados básicos de saúde.
— Ta. O que isso tem a ver com a minha aluna?
— O que eu quero dizer, Giovana. É que a minha vida inteira eu ouvi que por eu ser médica, eu sou elitista, desumana e sem coração para os pobres. Essas pessoas esquecem que, em paralelo ao consultório, eu tenho só 32 anos de dedicação ao hospital das clínicas. Só trinta e dois! Estive lá desde o primeiro dia e não largo, não adianta. Sempre que eu ouço isso da boca de alguém eu faço questão de responder que poucas pessoas nessa cidade já viu a desnutrição, o abandono, a maldade, o incesto e o misticismo do nosso povo em todas as formas possíveis. Claro, nem tudo é feio, tem muita bondade, perdão e felicidade ali também. Eu conheço não só o corpo físico, mas conheço o espírito e a alma dos nossos pobres por completo, e, minha filha! te digo sem medo, pelo menos neste plano terrestre, não há nada a se fazer por eles, a não ser oferecermos a nossa paciência infinita. Porque os nossos pobres, minha filha, de uma forma muito própria e não articulada, sentem orgulho da própria miséria!
— Ah, mamãe! Pelo amor de Deus, né! Isso é ridículo — Clarinha protestou, ameaçando deixar a mesa.
— É verdade, é verdade! De uma forma podemos dizer que as pessoas simples também são vaidosas, são vaidosas quanto a própria miséria. Acumulam sofrimentos como quem acumula dinheiro, ou móveis. Eles nunca querem a solução para os seus problemas, só querem o alívio para a dor que os permitam ser entregues novamente à própria rotina de erros que eles nunca consertarão. Não adianta, os nossos pobres são feitos da mesma murta que os índios canibais de mil e quinhentos. Eles sempre estarão conosco na Terra, e tentar consertar a vida de cada um deles é loucura. Porque ninguém é Madre Teresa, ninguém é um Chico Xavier. Então, minha filha, meu conselho para você é: não pense mais nisso, e encare os seus alunos como o que eles são: alunos, apenas. Sugiro, inclusive que você pense nos seus próprios problemas, e, sobretudo no principal deles: quando é que você vai deixar de aula naquela escola?
— Não escute a mamãe, Gi. Ela tá estressada — interviu Clarinha — e muito me espanta, mãe, o quão insensível a senhora pode ser, mesmo sabendo que só nós, mulheres, temos consciência dos perrengues que a gente passa neste país! Inclusive, Gi, você poderia levar essa aluna para frequentar a Clínica-Psicológica de graça, não é?
— É, eu vou pensar no que fazer — disse Giovana, profundamente envergonhada e confusa sobre seus sentimentos.
Maria Angélica sempre foi uma pessoa muito prática e respeitada por isso, tendo assumido grandes responsabilidades desde muito cedo no hospital. Sua vida "dava um livro”, era o que dizia. Mesmo assim, Giovana preferiu terminar a discussão ali mesmo, sem dar ganho de causa a ninguém.
Mais tarde, quando a mãe e Clarinha foram ao banheiro os dentes, Paulo, que sempre se abstinha de polêmicas e detestava política, deixou escapar sua opinião num tom de voz baixo e grave, enquanto se preparava para voltar ao trabalho:
— Minha filha, sobre aquele assunto: não escuta a sua mãe. Faz o que você achar que for melhor para você e para a menina.
— Você acha mesmo, pai?
— Acho.
Giovana agradeceu de olhos mareados e viu o pai chamar o elevador, impressionada em saber que ele havia escutado toda a conversa.

No do caminho até a universidade, Giovana resolveu fazer uma parada inesperada no Joaquim. Com o discurso na ponta da língua, Giovana encontrou a supervisora Teolinda sentada em sua mesa, na solidão dos intervalos de expedientes, redigindo no computador uma das dezenas de ofícios da semana. A supervisora pareceu surpresa com a chegada da professora de Artes.
— Teolinda, boa tarde. Eu queria saber se eu poderia dar uma olhada nas fichas cadastrais dos meus alunos do oitavo ano? É pra reunião de pais e mestres do fim do mês.
— As fichas só servem para consulta. Não podem ser feitas cópias nem sair da escola.
— Não, não. É rapidinho.
Teolinda expirou longamente. Puxou um pesado e barulhento molho de chaves de uma gaveta — Vem — e guiou a professora até a sala ao lado, que vivia trancada e inacessível. Abriu-lhe a porta:
— Pronto, professora. O sétimo e o oitavo ficam na parte de cima. Pode subir no tamborete se precisar. Eu fico aqui na porta te esperando.
Ao longo de algumas Dafnes, Daisys, dezenas de Daniéis, Danielas, Davis e Danilos, intercalados por muitos espirros, a investigadora finalmente localizou o que queria, um pedaço de ficha amarelada, com informações datilografadas em máquina de escrever e uma foto 3x4 do rosto gorducho e infantil da menina que remotamente havia visto nos fundos do oitavo C. Giovana tirou a caneta da bolsa e copiou na folha de rosto de um livro da faculdade:

Aluno(a): Darlene Castanheira Silva
Data de Nascimento: 24/08/1988
Filiação:
Mãe: Fátima Castanheira dos Santos Silva
Pai: ------------------------------------------
Endereço Residencial: Rua Pio XII, 419, Lagoinha. CEP: 38.408.408
Telefone: (34) 3236-4380

Giovana quase caiu do tamborete quando ouviu a voz de radialista de Teolinda, vindo de trás, tendo reconhecido a menina da foto 3x4:
— Ah, boa sorte. Essa daí eu já desisti!