Capítulo 10 - “Caldeirão de Loucuras”

Décimo capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

Outra manhã quente despontou no céu de agosto e a professora Giovana subiu as escadas do Joaquim ainda mais bem humorada que o normal, surpreendendo a todos com um anúncio:
— Todo mundo para o pátio. Hoje a aula é lá fora, e levem um livro de capa dura!
Nada que Giovana pudesse ter dito animaria mais o espírito do oitavo A. Quem estava dormindo, acordou; quem estava indiferente, ficou eufórico com o banho de sol. Depois de muito arraste de carteiras que irritou o professor Cláudio na sala ao lado, desceram todas as trinta e tantas ovelhinhas do corredor de ladrilhos vermelhos ao pátio de concreto, na santa desordem de sempre.
Não tinha jeito. Giovana chacoalhava a rotina do Joaquim e chamava muito atenção. Rogério, o professor de Geografia, por exemplo, teve de interromper a linha de pensamento para ver lá de cima a procissão, e aproveitou para medir da janela do mezanino o corpo da professora que ele somente via às quartas e às sextas na sala dos professores — ”Gostosa” — Índio, quando Giovana apareceu no pátio, se levantou da cadeira em reverência e arrumou o boné se certificou que nenhum dos alunos escapavam para a cantina. Giovana pediu ajuda de Goianinho para pegar na sala dos professores a bolsa com os materiais de desenho (lápis de cor, lápis de cera, borrachas, papel sulfite, tudo que a escola tinha para oferecer, além do que a própria professora trouxera de casa) enquanto Teolinda e Dona Xantipa assistiram preocupadas a algazarra desde a sala da Coordenação. Nenhuma delas tinha uma opinião formada a respeito da nova professora.
— Essa menina tem que avisar quando for dar aula externa.
— Mas ela avisou, Dona Xantipa…ela avisou.
Diferente dos outros professores que, ou não se importavam, ou seguiam os livros do MEC com a liturgia de uma missa em Latim, a professora bonita, quase mestre em Psicologia pela Federal, não se contentava com o ensino bancário e importava as últimas novidades em experiências lúdicas, sensoriais e que, segundo ela: “tirariam os discentes da zona de conforto acessando outras formas de saber”, ou ainda, “(re)significariam o espaço de convivência na escola”; entre outras justificativas nova-escolistas.
E os alunos, gostavam da professora de artes ou não? Os alunos gostavam sim da quebra de rotina, de esticar as pernas e respirar um ar não viciado; gostavam também de voltar para a casa com a sensação de terem vivido um recreio extra, como se tivessem passado a perna no sistema escolar inteiro; mas, sem dúvida, odiavam ser testados. Passada a euforia, não demorava os adolescentes retesarem o corpo feito bichos do mato. É que Giovana sempre lhes pedia uma tarefa constrangedora ou que excedia suas capacidades. Naquela manhã, por exemplo, a professora, feito uma ateniense no sopé da arquibancada, pediu para que de olhos fechados eles "sentissem" a escola, e desenhassem um ângulo dela que representasse algo importante para eles mesmos.
Só que é difícil encarar o abismo branco do papel sem um percurso ou uma instrução de livro didático. E a maioria levou uns dez a quinze minutos, entre muitas idas ao banheiro, muitos pedidos de folhas extras, para engatar na tarefa. Alguns pareciam não ter entendido a tarefa direito e desenharam carros, personagens de anime e até o próprio nome de um jeito diferentão. Somente uns gatos pingados sabiam o que estavam fazendo. Gisele era uma delas. Seu desenho, uma perspectiva de Gustavo sentado no chão de cimento feito um indiano com as pernas cruzadas, anulou qualquer tipo de competição (o mesmo não pôde ser dito do desenho de Gustavo do rosto da namorada). Em meio à interjeições como “nó!”, “que lindo!”, o trabalho de Gisele foi deixando claro para os alunos do oitavo A, que, em matéria de talento, Deus tinha mesmo os seus predestinados.
Giovana, porém, não acreditava em hierarquias. Para ela, todos os desenhos eram belos como belas eram as intenções e os sentimentos dos artistas. Quando, por exemplo, Goianinho mostrou a sua obra, a fachada disforme do Joaquim e que parecia ter sido desenhada pelo seu irmão mais novo, Giovana tratou de incentivá-lo com um jeito condescendente e uma voz fininha de apresentadora de programa infantil:
— Ficou ma-ra-vi-lho-so, Goiano, parabéns! Agora, vem cá. Por que você não experimenta desenhar aquilo que você está olhando de fato?
Enquanto Tales e Fábio encasquetavam com o desenho um do outro, Bento, com os lábios ainda dormentes do dia anterior, se perdia em silêncio em seu próprio labirinto. Estava feliz e especialmente grato à Darlene e à vida, por ter perdido o BV. Desse fantasma, pelo menos, estava livre. E sim, havia sonhado com ela noite e dia, acordando, inclusive, com os braços rígidos de tanto amassar o travesseiro. Mas, e agora? Quais seriam os próximos passos? Bento assistia Gilvan afundar o papel em silêncio, com sua tatuagem de samurai e seu ombro redondo de quem vai à academia. Tentava ler o olhar opaco do artilheiro, o olhar dos homens de ideias fixas, sem saber ao certo o que passava na cabeça daquele que era agora o seu competidor. Não queria admitir, mas estava com medo.
Qual era a real situação entre Gilvan e Darlene? Eram afinal amigos ou namorados? Imaginou que ela, talvez, fosse mais afim dele que o contrário — algo natural por ele ser mais bem cotado socialmente que ela. Ou podia ser que Gilvan não assumia o namoro por medo de comprometer sua exclusividade, ou por vergonha de ser visto com ela. Em ambas hipóteses, havia o risco de que o beijo no ônibus, o primeiro beijo da sua vida, tenha sido motivado não por desejo, mas por uma estratégia fria de Darlene de chamar a atenção de quem ela realmente gostava.
Daqui a alguns minutos, quando soasse o sinal, Bento teria duas opções: lutar ou não pela menina. No primeiro caso, Bento, que nunca foi de briga, ia, sem dúvida, apanhar feito animal, e chegaria em casa com a primeira mancha no rosto e na biografia. Por outro lado, teria se arriscado por alguém, e às vezes isso basta. Ou então, ele podia não se intrometer no namoro, deixá-la viver em paz com seus problemas. Mas quem pode viver em paz com um padrasto nojento daqueles, uma mãe que lhe enche o saco e um namorado que não se assume como tal?
Uma mão gelada e pontiaguda de mulher tateou o seu ombro.
— Tá pensando em quê?
— Ah, Giovana! Oi…
— Deixa eu ver o que você fez…
— Uai, é nada demais não. Você disse pra gente desenhar o lugar mais especial pra gente na escola, né? Resolvi ser criativo, fazer uma doideira.
— Tá certíssimo, e quem é essa?
— Tipo…eu tentei desenhar uma menina que está tentando fugir da escola. Ela sobe pela mangueira, que é aquela mangueira atrás da quadra. Aí, é como se a mangueira fosse meio que um portal para outro mundo — disse, gesticulando muito — Isso daqui é o portal.
— Uau, adorei os detalhes da mochila, do jeans. Olha só, você desenhou até a marca do tênis. Ela é alguém que você conhece?
— Mmm…Não sei se eu conheço. Pelo menos eu achava que conhecia…
— Sei exatamente o que você quer dizer. A gente nunca conhece as pessoas por completo. A mente humana é um mistério, Bento!
— Sei lá, professora. Tudo pra mim é um mistério.
— Já falei pra não me chamar de professora. Agora me fala: quem é ela? Namorada? — disse Giovana, arrumando o longo cabelo amassado do aluno.
— Ahn? Não, não — Levantou-se e tentou desviar do assunto — É uma longa história, nem vale a pena contar. Só não é uma história tão cabeluda quanto essa — E mostrou para a professora o catatau já desgastado, o livro de Nabokov que servia como apoio para o papel em branco.
— Bento! Onde você pegou esse livro?
— Na biblioteca daqui.
— Na biblioteca? Se você não é um pimentinha! Só você mesmo, hein? O que você tá achando? — Muito doido. Mas o cara chama mesmo Humbert Humbert?
— Estranho, né? Mas o mais provável é que esse não seja o nome dele, porque o livro é uma espécie de autobiografia fictícia, ou se preferir, uma peça jurídica... enfim, deixa pra lá. Só vai com calma. Esse livro é denso demais para alguém da sua idade. Algumas coisas você ainda não conhece na dimensão que elas têm na vida real. Mas já é uma excelente introdução no tema que inclusive o professor Dionísio vai tratar amanhã na palestra, a questão da tutela masculina que rege, infelizmente, nossas sociedades patriarcais, né? Só que você só vai se preocupar com esse problema daqui uns anos. E tenho certeza que você vai ser um bom rapaz quando tiver dezoito anos — Giovana zapeou pelas páginas de Lolita, e continuou — Sabe, eu estou estudando e escrevendo um pouco disso no meu grupo de pesquisa…
Enquanto a meninada preparava o espírito para o recreio, Bento se viu preso à conversa de adulto com a professora bonita. A cena chamou a atenção de Fábio e Goianinho, ambos viciados em fazer graça. Sem que a professora os visse, eles se posicionaram por detrás do campo de visão dela e começaram a fazer caretas e simular movimentos sexuais com a pélvis e a língua de fora, para que Bento perdesse a compostura. Sentiu também que era observado de longe por Gilvan.
Giovana, por sua vez, dava continuidade à linha de raciocínio:
— …Não sei se você gosta de mitologia grega, Bento, mas…Deméter é a divindade da terra cultivada, a deusa do trigo. Ela é quem ensinou aos homens a arte de semear e colher os frutos que a Mãe Terra oferecia, né? O mito de Deméter está ligado ao de sua filha Core ou Perséfone. O sofrimento das deusas constitui, basicamente, o mito central dos Mistérios de Elêusis…
Não foi exatamente um diálogo. Na verdade, Bento sentiu como se tivesse sido raptado por uma testemunha de Jeová, dessas que tocavam a campainha num sábado de manhã. A certa altura, não discernia nem mesmo as palavras e só meneava com a cabeça feito um bibelô de escritório. Às vezes ria, quando o gancho pedia esse efeito, mas depois encaixava o polegar e o indicador no queixo e entrava em um estado de contemplação. Já não se lembrava do tema da conversa e sentiu o olhar escorregar pelos braços e a pele moura de Giovana. Notou os pelinhos descoloridos do antebraço da professora, a pulseira que combinava com os anéis de côco negros em seus dedos e, naturalmente, o decote que erguia duas peras perfeitas contra um colar de sementes de pau Brasil.
— …Na fase que a gente chama de pré-edipiana, a mãe é o “primeiro objeto de amor” — enfatizou as aspas — Já na fase edipiana de verdade, a menina “abandona”, por assim dizer, a mãe enquanto objeto de amor e dirige-se ao pai, fase representada pelo “sequestro” de Core.
— Ó, que doido.
Soou o sinal do recreio.
— Bento, você vai amanhã?
— Com certeza!
— Então a gente se fala lá, beleza? — e gritou para todos — Gente, os desenhos de vocês, cadê? Goianinho, me ajuda a levar a bolsa, fazendo favor!
Bento então abandonou a professora ocupada em juntar o material, mas foi logo surpreendido por Gilvan e Fábio, e este lhe aplicou um mata-leão. Bento odiava quando Fábio fazia isso. — Bentinho, transudo…
— Ah, não. Sai fora! Meu cabelo!
— Cara, a fêssora te alugou hoje. Que tanto de assunto é esse?
— Ah, é, sei lá. Ela tava falando da tese dela, eu acho.
— Desse jeito você vai engravidar ela.
Gilvan tocou de leve no ombro de Bento e o trouxe para perto de si.
— Fabinho, deixa eu falar com o nosso pegador aqui um pouquinho, rapidão.
Gilvan levou o braço ao ombro de Bento e o foi guiando pelo chão de concreto rachado.
— Bentô.
— Fala…
— Quer dizer que você tá matando aula agora?
— Ih, o pessoal já tá sabendo, né? Então — deslocou o ombro para fazer Gilvan tirar a mão dali, mas sem sucesso — Tem uma primeira vez pra tudo, né? Mas, aqui: teve alguma coisa importante ontem?
— Não, relaxa. Nada de importante. Mas é que todo mundo ontem ficou perguntando: "cadê o Bento?”, “onde o Bento foi?”
— Sério?
— Sério. Mas um dia não faz mal para ninguém. Eu falei: Bento é um cara certinho, ele não vai fazer nenhuma besteira, não. Se ele matou aula, deve ter sido por um motivo muito, muito, muito importante, né? Fora ele não vai fazer isso de novo. Mesmo porque ele sabe que a fofocaiada corre solta aqui. O que você faz, todo mundo fica sabendo no dia seguinte. Outra coisa: você tá pegando alguém agora?
— Como assim? — a pergunta lhe feriu como uma flecha, e tremeu por dentro.
— Mulher, uai. Você está interessado em alguém nesse momento?
— Acho que não. Tem pouca gente interessante aqui na escola. — disse, cínico.
— Aí você tá certo. Mulher é o que não falta. É só olhar no recreio, tem de tudo. Mas a maioria é vagabunda. E a gente pega as vagabundas, mas nós apaixona é nas quietinha, né não?
— Total…e a Mayara, cê num tá pegando ela mais não?
— Não, não. A Mayara é muito doida.
Ao longo daquela conversa ameaçadoramente banal, Bento percebeu que Gilvan o guiava para um grupinho de meninas do oitavo B que conversavam próximo à sala de xerox. — Tá vendo aquela menina ali? — Gilvan apontou o queixo para Silvia, uma menina nem muito bonita, nem muito feia, casta nos modos de se vestir, com uma saia para depois do joelho à moda dos evangélicos, ainda que com belos cabelos negros de índia e coxas grossas e morenas. Nada se sabia sobre a personalidade dela.
— Uhum, é a Silvia.
— Ela já falou que te acha bonitinho...
— Ah é?
— Acho que ela te pega.
— Uai, bom.
— Então já vou te avisando. Eu barulhei ela pra você.
— Ah, não. Gilvan, não, não…
— Não, não eu. Você não tá entendendo. Esse é um favor que eu tô fazendo pra você de graça. Olha ela lá, tá olhando pra você. Larga de ser bitolado. Imagina comer a Silvia? Uma chance dessa a gente não deixa passar. Falei que você ia conversar com ela no recreio.
— Ah, não. Gilvan. Puta que pariu…
— Oi, meninas!
Gilvan se despediu de Bento com um tapinha forte na nuca, da forma como ele deveria fazer nos vestiários dos rachas pelo estado afora. E com o olhar, sinalizou para as amigas de Silvia que era o momento de deixar o novo casal se conhecer.
Bento tentou não ser deselegante. Ouviu sobre a aula de vôlei que Silvia tinha uma vez por semana, sobre como ela detestava português, mas adorava matemática, e até sobre a trama da novela das oito, “Esperança”, a qual Sílvia não gostava porque, segundo ela, “tinha muita safadeza”. Bento, depois, usou o pretexto do banheiro para abandonar Silvia, reforçando a impressão ruim que suas amigas tinham dele: “Bem que me falaram que ele era esquisito”.
Durante o resto do recreio, Bento procurou por algum rastro de Darlene na cantina, por trás da quadra, no corredor e até na sala dela, mas não encontrou nada e ninguém. De repente, com o sinal do fim do recreio, lhe veio uma vontade louca de chorar como um menino da terceira série, e se odiou por não ter partido para cima de Gilvan no momento em que estavam a sós. Tinha muito o que aprender sobre coragem.

A volta pra casa foi dura. Não só teve que aguentar as gracinhas diárias de Fábio, mas também engolir a seco o cinismo e excessiva boa vontade com Gilvan passou a lhe tratar. Nem conversou com Gustavo direito. Estava decidido que, ao chegar em casa, faria alguma coisa que prestasse: escrever uma carta, talvez. É isso, iria hoje até a casa amarela no Lagoinha, daria um jeito de entregar a ela a mensagem: não desistiria, lutaria até o fim. Não tinha mais medo de ninguém, nem do padrasto, nem de Gilvan.
Entrou pela sala com pressa, mas foi interpelado por Beethoven, que escorria pelo sofá com a camisa social aberta e um enorme umbigo à mostra.
— Consertei.
— Consertou o quê?
Beethoven apontou o queixo em direção à TV.
— Ah, legal! Qual era o problema?
— Besteira. Era o receptor que era vagabundo. Mas tá aí, tinindo ó, quase trezentos canais. Bento — Beethoven arrumou o óculos para enxergar melhor o irmão — você tinha que ver a cara do seu pai. Nem agradeceu. Só falou assim com aquela voz dele: “esse trem pirata aí, vai dar problema…”, aí entrou no quarto e não saiu mais. Pff…fuckin’ asshole!
— Ah, é assim mesmo. Ele fala mal agora, mas daqui a pouco ele fica fã. Igual ao computador.
— Total! Bento, se liga — Beethoven endireitou-se no sofá, animado — Tenho uma surpresa pra você, você vai gostar…
Beethoven pressionou no novo controle remoto os números 2, 9, 3. De repente, a tela da velha TV de tubo, que no máximo exibia videoclipes com mulheres de biquíni, passou a mostrar uma enorme bunda tatuada de mulher sendo massacrada por um pênis vigoroso e vermelho. Bento virou o rosto num reflexo e quase desmaiou ouvindo o gemido feminino na sala de casa.
— Beethoven, os vizinhos…pelo amor de Deus!
— Ó, pra quando você quiser: os últimos cinco canais são só de canal educativo. Pra você assistir quando todo mundo for dormir…
— Tá bom, cara, tira isso aí.
— 293 em diante, okay?
— Tá bom, tá bom.
— Pronto, tirei. — E Beethoven curtiu uma risadinha de hiena.
Bento quis esquecer que por um segundo assistiu a um filme pornô ao lado do irmão. Sentiu vontade de tomar um banho, um banho interno, mas Beethoven chamou sua atenção novamente:
— Ei, outra coisa:
— Fala.
— Tá famoso, hein?
— Por quê?
— Te vi ontem na TV.
— Ah, você viu é?
— Uhum…Vi você e a sua amiga de carinha redonda no “Bala de Prata”, ela tá bonitinha. E você falou que não tinha nada com ela, hein? Sabia que era furado.
— Ah, pois é, é que…
— Não, sô. Relaxa, mulher é foda. Faz a gente fazer besteira. Eu que o diga. Fique de boa. — Valeu — respirou fundo, e entrou pela copa, mas ouviu a voz de Beethoven despontar outra vez ao fundo:
— Teolinda ligou.
E um raio atravessou a espinha do fujão.
— Oi? — Foi obrigado a voltar para a sala, com o coração em disparate.
— Uma tal de Teolinda ligou.
— Meu Deus, o que ela falou?
— Nada. Quer dizer… Até quis saber o que a tal da Teolinda queria, mas a mulher é brava, disse que preferia esperar a Célia ou outro adulto responsável. Aí falou pra ligar no número de secretaria. Sorte sua que foi eu quem atendeu o telefone e não o Vânio, porque, não sei se você notou, mas o Vânio tá a manhã inteira enfurnado no quarto. Disse que tá com dor de cabeça, sei lá.
— E você tá com o número da Secretaria?
— Tá lá, do lado do telefone. Se você quiser eu jogo fora…
— Nossa, Beethoven, valeu demais.
— …mas com uma condição.
— Qual?
— Você vai no show do Bruno e Marrone comigo.
— Claro, posso fazer isso sim.
— E do Zezé de Camargo também.
— Ah, não, Beethoven! Puta que pariu.
— Foi mal, é que eu comprei o ingresso pra ir com a Isabel e o Davi, o filho dela. Você chegou a conhecer a Isabel? Não? Enfim, tinha pensado em trazer ela aqui pra vocês conhecerem ela e o Davi. Agora já era. Ela não presta, não, mas você tem que ver que gracinha o Davi, espertinho demais.
— Tá bom, Beethoven. Vamos no show. Nos dois. Só não fala nada, pelo menos agora.
— You got it.

Bento almoçou um prato de macarrão com sardinha, contrariado e pensativo. E ali mesmo, no mármore frio e oval da mesa de jantar, rasgou uma folha de papel em branco do seu fichário e escreveu, sem pensar em nada:

“Querida, Darlene.
Enquanto eu tiver forças, enquanto houver ar em meus pulmões e sangue em meu coração, eu me recuso a desistir de você…”

Achou brega. Tentou outra via, sem adjetivos. Rasgou nova folha:

“Veja, Darlene. Me chame de louco, me chame de doente, mas eu passei cinco anos perseguindo a sua sombra. Cinco anos na esperança muda de um só dia. E depois de ontem, quando você me levou para conhecer a cidade e nossos destinos se confundiram dentro do ônibus do Saraiva. Digo, sem medo: perderia cinco anos e mais cinco”

Ao ouvir a porta do quarto dos pais se abrir, Bento escondeu rapidamente a carta no fichário, e voltou ao prato de macarrão. O pai de Bento assomou à porta da cozinha estranhamente bem vestido. Não se lembrava da última vez de tê-lo visto assim, com o cabelo penteado com escova e gel, camisa de linho, calça social e cinto. Parecia um homem do início do século, só faltava a gravata borboleta. Mas essa não era a única estranheza. Vânio caminhava lento, feito um papa, demorando mais tempo que o normal para beber a água do copo. Depois disse que ia para o oculista e que precisava trocar a lente do óculos. Enquanto ele caminhava para a copa, Bento notou algo triste e curioso: o pai calçava sapatos de cores diferentes, um preto, outro marrom. No caminho da copa até a rua, Vânio nem se deu ao trabalho de revidar a provocação de Beethoven. Apenas foi embora. É…ali tinha coisa errada.
Sentiu pena de seu pai e perdeu as forças para terminar a carta para Darlene. Dobrou-a em dois e a escondeu dentro do livro didático. Depois ia decidir o que fazer.
Pelo resto da tarde e um pouco de noite também, leu em seu quarto algumas páginas de Lolita, aquele estranho romance sobre o qual alguém fizera um filme e que ele, Giovana e uma platéia de psicólogos haveriam de discutir no auditório central da UFU.

“Historinha esquisita, viu! Como alguém se deixa apaixonar pela filha da própria namorada? A menina tinha doze anos, por Deus! Tinha que ser um louco de pedra, no mínimo. Por que ninguém tinha ainda chamado a polícia para cima do tal Humbert? Talvez é porque ninguém imagina que uma coisa dessas possa se passar numa casa chique e de gente rica, que nem as casas dos Estados Unidos. Dizia Beethoven que nos Estados Unidos todo mundo se cumprimenta na rua. Já aqui no Brasil, todo mundo fecha a cara pra você, aqui todo mundo desconfia de todo mundo, e ninguém se espantaria com uma barbaridade dessas. As próprias fachadas das casas parecem melancólicas, justamente por terem sido testemunhas caladas de tantas e tantas atrocidades, como as que o Bala de Prata mostrava todos os dias, um caso mais cabeludo que o do dia anterior.”

No final da tarde, quando Célia chegou do trabalho, Bento esperou que ela se trocasse e tirasse a maquiagem para abordá-la:
— Mãe, o que você vai fazer amanhã à tarde?
— Ih, lá vem.
— Você me leva na UFU?
— Bento, você não acha que tá saindo demais, não? É festinha da sala, palestra cara e agora, o quê?
— O povo da Psicologia vai exibir um filme legal.
“Povo da psicologia”? “filme legal”? Achou esquisito, mas de certa forma não deixava de estar orgulhosa do filho estar andando com um pessoal mais velho da faculdade. Sinal de inteligência. Preferia, é claro, que estivesse andando com gente do Direito, da Engenharia ou da Administração de Empresas.
— Psicologia, hein? Tem uma mulher lá do centro espírita que é psicóloga famosa aí, que dá entrevista na rádio e na TV. Ninguém gosta dela, ela é doida.
— Ah, mãe!
— Eu sei, eu sei. É que eu sou antiga. Pra mim, psicólogo de pobre é Deus...
— Por favor, mãe!
— Tá bom, tá bom. Eu te levo quando eu for pro culto amanhã. Outra coisa: você viu o seu pai?
— Falou que foi no oculista. Não voltou ainda.
— Oculista?
— É, falou que tinha que trocar a lente.
— Deus tem dó de mim.

Célia acordou cansada no sábado de manhã e em vez de cozinhar, resolveu comprar uma marmita de carne para o almoço. Só teve de preparar o arroz e o feijão que Vânio não passava sem. Cada membro da família almoçou em um canto diferente: o pai na frente do computador, os filhos na frente da TV e a mãe, sozinha, na cozinha.
Depois de fazer o quilo, Célia despontou pelo corredor, balançando a chave do carro e deu o sinal para um Bento de banho tomado:
— Vamos?
Bento esperou sua mãe tirar o Corsa da garagem, tomando cuidado para não encostar na moto de Beethoven. Arrastou o portão de lata e entrou no carro. Partiram pelas ruas familiares do Saraiva.
— Como que foi? Você não falou nada.
— Como que foi o quê?
— A palestra. Consegue falar em público agora?
— Ah! — tinha se esquecido completamente da mentira — Foi massa. O palestrante é muito engraçado e o Center Convention é um lugar muito bonito, né? — foi genérico, mas foi o melhor que conseguiu.
— Que bom, que bom — Célia tamborilou o volante com a unha e expirou longamente.
Bento sentiu que a mãe queria desabafar. Tinha que ouvi-la, esse era o preço da carona.
— Só tenta ficar um pouco mais em casa, Bento. Só peço isso. Você viu como que seu pai tá, né? Tá bem não.
— Uai, pra mim tá na mesma.
— Tá na mesma não. Fica andando de lá pra cá. Reclamando de tudo, nossa Senhora. Vive com dor de cabeça. E agora ele tá invocado, achando que é culpa do óculos. Falei pra ele não ficar tanto tempo na frente do computador! — Célia esperou um segundo, pensativa — Você acha que ele fica vendo trem atrapalhado no computador?
— Não, não. Ele sempre foi assim, meio zureta. Deixa ele.
— Desse jeito, não.
Bento observou as fachadas dos novos prédios inaugurados no Santa Maria, pensando se devia contar ou não o que tinha visto para a mãe. Era algo grave demais, estranho demais para deixar passar. O carro fez uma conversão à direita e parou no semáforo, em um cruzamento ao lado de um posto de gasolina de onde se via a guarita e o pórtico de entrada da Universidade Federal de Uberlândia. Era o mês que floresciam os Ipês amarelos e roxos, uma das épocas preferidas do ano para Célia.
— Então, mãe. Eu notei um negócio estranho no Vânio.
— Hum.
— Então, quando o Vânio saiu ontem para ir no oculista, eu notei que ele vestia o sapato trocado.
— Como assim?
— Tipo, trocado. Um preto e um marrom.
Célia ficou branca:
— Que isso! Então é pior do que eu imaginei! O quadro dele é gravíssimo!
— Às vezes é só stress por causa dessa volta do Beethoven…
— Não, não. Não é isso não. Senhora da Abadia…
O sinal abriu. Célia só conseguiu dizer a próxima frase depois da difícil conversão no cruzamento da avenida João Naves, quando já estavam viajando por dentro das vias lentas da Atenas uberlandense. A mãe, abalada mas resoluta, diminuiu a marcha e disse:
— Olha, Bento: é difícil explicar algumas coisas, porque eu sei que você não tem fé. Mas a vida pra gente que é médium é uma vida mais sofrida, porque tem mais desafios. Quando se estuda e vê de perto a Doutrina, você se torna mais sensível ao entorno. Barzinho, festa, noitada, já não dá mais para tolerar. O médium consegue sentir a alma das pessoas por completo. E a alma das pessoas às vezes grita em silêncio, como grita a alma do seu pai. A alma do seu pai está gritando, Bento! E o carma do seu pai não é dos mais fáceis, porque ele não foi um anjo. Ele tem dívidas dessa e de vidas passadas. E você sabe que tudo que a gente faz em vidas passadas ecoa nessa encarnação…Nem sei porque eu tô falando isso porque eu sei que você e seu irmão não tão nem aí. Ainda bem que eu tô indo hoje na sessão do Centro. Tô levando inclusive uma foto do seu pai, tá aí na bolsa — Célia expirou profundamente, resignada — Pra você ver como são as coisas: você me conta essa história do sapato justamente no dia em que eu consegui uma consulta especial com o Mestre Ângelo. Você não tem noção… — e Célia ergueu o indicador contra o ar — …da dificuldade de conseguir uma sessão com o Mestre Ângelo! Vou pedir hoje, com todas as minhas forças, encarecidamente, pra que ele faça uma prece ou uma cirurgia espiritual no seu pai. Mas seu pai nem aceita que eu fale no assunto. Onde já se viu um paciente que não fica em repouso? É lógico, um paciente tem que estar de repouso durante a cirurgia espiritual, senão a cirurgia não acontece. Mas seu pai não aceita nem beber água frutificada, quanto mais uma cirurgia espiritual!…
Bento queria descer do carro em movimento. Era melhor ter ido a pé, mesmo que chegasse no auditório fedido e ensanguentado. Felizmente, estavam perto do Anfiteatro. Célia preferiu não estacionar, parou sobre uma lombada, em frente ao prédio do Direito.
— Posso te deixar aqui?
— Pode. Obrigado, mãe.
— Passo aqui depois do Centro, tá bom?
— Tá bom — disse, já distante do carro.
No caminho, Bento olhou-se no reflexo das vidraças do bloco do Direito, em dúvida se estava arrumado demais ou de menos para o evento. Tentou se acalmar lembrando que o mais provável é que Giovana estivesse muito ocupada para fazer companhia a ele, já que ela era a organizadora da coisa toda e tinha que receber o tal professor almofadinha de São Paulo. “Ela não iria perder o tempo universitário dela com um merdinha que nem saiu da escola”. Então fique tranquilo, Bento.
Sob a sombra generosa de uma marquise que ocupava quase toda a ala lateral do prédio de tijolos vermelhos, no lado direito das portas principais, um pequeno grupo de universitários confabulava, alguns deles escorados em longa mesa retangular. Uma das estudantes era uma linda garota loura, tão linda quanto Giovana, de saia de chita e alpercatas. Outro era um rapazote de barba dourada por fazer, montado em uma bicicleta, segurando uma flauta na mão. Outra garota, gordinha, carregava uma pilha de panfletos que distribuía para quem passasse pela porta de entrada. Atrás da mesa central havia ainda um enorme cartaz feito com papel pardo, talvez com mais de cinco metros de extensão, onde se lia em letras de fôrma em tinta guache: “Por uma Universidade Popular: Auxílio Estudantil Já!”. Abaixo do título, estava assinado: “Resistência”, o que parecia ser o nome da chapa que disputaria a eleição do Diretório Central dos Estudantes. Bento aceitou um dos panfletos.
“Viva a Universidade!” — pensou consigo — Era bom demais estar em um lugar mais arejado que as rodinhas de seus amigos vilhenos. Como queria acordar velho amanhã, ser gente importante, falar em congressos, ser respeitado e elogiado pelos seus discursos e pelos seus livros. Mas falta tanto tempo: três anos, se tudo der certo!”. E Bento tomou uma nota mental: a primeira coisa que faria quando entrasse na faculdade seria militar no movimento estudantil.
No lado oposto aos estudantes, jazia uma baleira negra e anciã com uma bengala na mão, sentada sob um tamborete e afundada em si mesma por trás de seu mostruário. Bento teve a pachorra de perguntar-lhe:
— É aqui a sessão de filme, moça?
A velha piscou os olhos lentamente e puxou uma lufada de ar para lhe dizer: — Não sei, meu filho.
Entrou de qualquer forma. A sala interna do anfiteatro em toda a sua pomposidade causou-lhe uma primeira impressão física: estava congelante. A produção do seminário fez o favor de ligar o ar condicionado no mínimo, fazendo com que qualquer pessoa, uma vez ali, perdesse a vontade de sair. Pensou ser aquele um excelente lugar para dormir depois do almoço. Bento parou no piso acolchoado da antecâmara e calculou por cima umas 30 cabeças na plateia, a maioria delas gravitando ao redor das primeira fileiras, provavelmente, faziam parte do cerimonial, ou da produção. Nenhuma delas tinha a silhueta dos cabelos mágicos da professora de artes.
Teve um susto ao perceber o quão antigo era o filme. Não se lembrava de ter visto nenhum filme preto e branco, a não ser “A Lista de Schindler”, quando passou na TV, mas nem esse tinha assistido até o final, tinha achado triste demais. Desceu dois degraus da escada central acolchoada e sentou-se no terceiro assento, da direita para a esquerda, de uma fila completamente vazia. E ao fazê-lo, cruzou as pernas, feito um adulto.
Que maneira incrível de passar a tarde! Devia fazer isso mais vezes, sem dúvida. Talvez, até Darlene animaria vir num lugar desses. Um lugar quase vazio, com apenas o som mecânico ecoando pela acústica do recinto, longe da loucura do povo das suas casas. Imaginou o quanto seria bom beijá-la naquele clima gostoso. Ai! Evitou pensar demais na menina para não ficar mais triste.
Enquanto Dolores em seu biquíni infantil, seus óculos escuros e um estranho cocar de plumas, era apresentada para Humbert e para os espectadores pela primeira vez, outra voz feminina e familiar explodiu no ouvido do menino.
— Como assim, você chega e não fala nada pra mim!
Era Giovana, que veio do nada e arrebatou no escuro, feito uma leoa, conduzindo-o até a primeira fila junto ao núcleo duro dos psicólogos.
— Gente, esse é o Bento, meu amigão!
Todos eles o cumprimentaram de volta, muito educados. Bento foi acomodado ao lado da organizadora, sentindo o perfume de lavanda de seus braços despidos. A princípio, Giovana segurou a mão de Bento bem próximo dela, perigosamente abaixo do seio direito. Mas a sorte duraria poucos minutos, porque Giovana, na posição de organizadora de evento, tinha sempre que ir de um lugar para outro: receber alguém, ajustar o volume na mesa de som e resolver algum outro pepino técnico. De vez em quando, ela retornava ao seu lugar e se preocupava com o jovem convidado:
— Tá gostando do filme?
— Aham, muito louco.

Mais tarde, Giovana se desculpou: deixaria o anfiteatro em definitivo. Tinha que buscar o senhor Dionísio Pellegrini, no hotel próximo ao Shopping onde o scholar e sua esposa estavam hospedados. Bento já estava ansioso pela chegada deste que mais parecia um rockstar que um um professor. Enquanto isso, porém, o filme se desenrolava, brilhante, longuíssimo e interminável, diante dos olhos desatentos dos universitários da UFU. E a história já tinha extrapolado em muito as 64 páginas que havia lido do romance. É interessante, não achava que a mãe de Lolita não tinha tanto protagonismo assim no livro original, e quanto à Dolores, bem, Bento sempre a imaginou com traços sertanejos: cabelos morenos com mechas douradas, quase desbotadas. Às vezes a enxergava também de tiara rosa e jaqueta brim com marcas de corretivo e caneta azul sobre a pele. Feito certa menina que povoava a sua imaginação. Por onde estaria, Darlene?
O tempo foi correndo e o interesse dos espectadores, minguando. Ouvia-se cada vez mais frequente, o rangido da pesada porta do anfiteatro num entra e sai danado, fazendo com que um raio invasor de sol poente cortasse de um modo irritante a tela bem no meio, dificultando a experiência mágica do cinema. Lá fora, a porta entreaberta também revelava a movimentação de um staff em uniformes preto e branco. Aos poucos, um aroma reconfortante de café começou a escapar pela nave, deixando claro que um coffee break esperava a todos no saguão. Bento havia tirado a sorte grande!
O alimento para a alma não enchia barriga feito o alimento de verdade e, com isso, o filme foi se extinguindo em silêncio, sem palmas e sem exaltação por parte dos remanescentes. Quando as luzes foram acesas por um dos amigos de Giovana, todos os cinco (e Bento) se viram pela primeira vez e escalaram em silêncio os degraus acarpetados em direção à saída. Nada foi dito a não ser um comentário anônimo que serviu como reparação artística:
— Kubrick é gênio!
Bento acessou novamente o pátio de entrada e se lembrou de como era a temperatura ambiente. Viu uma longa toalha branca posta sobre a mesa oferecendo aos psicólogos um banquete de salgadinhos, quentes e frios. Havia uma refresqueira refrigerada, com dois sabores de suco, um rosa e um laranja, além de um botijão térmico para o café. Sentiu-se em desvantagem por ter assistido ao Lolita até o final e não quis perder mais tempo. Aproveitou que ninguém o conhecia, e mirou na bandeja de enroladinhos de salsicha. Com a mão leve de trombadinha roubava cinco de uma vez e os encaixava de dois em dois na boca. Após lubrificar a garganta com suco que se revelaria de maracujá, Bento usava o mesmo copo descartável para estocar mais enroladinhos.
Em pé, ainda mastigando, o invasor da oitava série tentava acompanhar a conversa de gente grande daqueles que esperavam a palestra começar. Um deles, um gordão com cabelo comprido e calça militar, falava em tom de pregação sobre o plano do MEC para os próximos anos: expansão de vagas, criação de novos cursos e uma revolução da educação brasileira. Seus ouvintes assentiram passivamente. Em algum momento a sigla “FMI” foi mencionada pelo rapaz, assim outras senhas como “Banco Central” e um “Pacto de Mayflower”. Bento notou que muita gente trazia no peito, sobre a camisa ou vestido, adesivos com estrelas vermelhas. Sentiu o clima ficar soturno de repente.
Isolado, Bento retornou para o auditório e para seu lugar na primeira fila. Mais pessoas chegavam e, próximo às seis da noite, os assentos estavam quase completamente tomados, feito um show de um artista local. Ao seu lado sentaram-se alguns casais que Bento teve certeza se tratar de gente rica, não apenas pelas roupas, mas por nunca tê-los visto antes na rua. O volume da conversa era alto quando Giovana reapareceu na entrada, trazendo consigo o rosto dos cartazes e dos panfletos.
Dionísio Pellegrini era um cinquentão grisalho, de porte alto e corpo angular. Vestia-se de uma maneira elegantemente casual com os óculos tortoise, seu cardigã sobre a camisa social e os jeans que desciam até seus sapatos de couro, que deveriam ser italianos como a sua ascendência. Atrás de Dionísio e Giovana, uma senhora casmurra de topete e gola rolê, elegante demais para ser uma secretária e que Bento imaginou tratar-se da esposa do professor, os acompanhava. Dionísio mal conseguia caminhar pela rampa de acessibilidade e pelo corredor lateral, porque cada passo seu era interpelado, com gestos de mais ou menos intimidade, por algumas prováveis professoras da UFU e outras cabeças pensantes da academia. Os beijinhos na bochecha voavam e muita conversa foi jogada fora, a que Dionísio participava de modo tímido, com os olhos fixos no carpete ainda que com um sorriso próspero no rosto. A esposa, após ter sido acomodada na primeira fileira, pareceu ter bufado de tédio por se ver em mais um ambiente de assembleia provinciana.
Os microfones foram devidamente testados, os jarros estavam cheios de água, e as flores, rearranjadas em seus vasos. Tudo estava pronto para Dionísio tomar o seu lugar no centro da longa bancada de forro branco sobre o palco, ao lado de outros papagaios de pirata locais. Agora o anfiteatro, bem diferente da exibição de cinema, estava abarrotado, e nem todo mundo encontrou um assento para si. O pessoal do movimento estudantil, por exemplo, teve de se aconchegar rapidamente pelos cantos e sobre o carpete dos corredores laterais. Tiveram de trazer cadeiras escolares para dentro do anfiteatro.
Era a hora do show. Giovana tomou para si o microfone e deu início ao espetáculo, em seus jeans rasgados e a camisa impressa especialmente para o evento, drenando os olhares com seu carisma de atriz de novela. Agradeceu, antes de tudo, ao seu grupo de estudos, “Psicanálise e Transdisciplinaridade”, rasgou elogios desbaratados aos professores, alguns deles compartilhavam a mesa de palestrantes como a Prof(a) Dr(a) Maria Helena Iozzi e a outros que, infelizmente, não puderam estar presentes. Giovana se referia, claro, ao Dr. Sérgio Becker que infelizmente, havia falecido no ano início do ano, vítima de um acidente de carro na saída para o Prata, mas que certamente, se vivo estivesse, lá com eles estaria.
Quando chegou a vez de anunciar o convidado especial, Giovana o fez de forma indireta. Ela havia preparado um texto que cantava loas aos feitos acadêmicos e ao currículo Lattes de um dos maiores psicanalistas do Brasil e colunista da Gazeta de São Paulo, com pitadas de poesia, ainda que às vezes flertasse com a pieguice dos carros-mensagem. Ao ser chamado pelo nome, o convidado sorriu amarelo, parecendo menos orgulhoso que seus companheiros de bancada. E um mar de aplausos acolheu calorosamente o sr. Dionísio Pellegrini em Uberlândia.
Após os aplausos, o silêncio total. Todos se viram ansiosos pelos primeiros movimentos do scholar e suas primeiras palavras naquela noite. Algo sussurrado ao pé do ouvido de Giovana, e um sorrisinho muito íntimo trocado entre os dois. Dionísio pigarreou à boca do microfone e fez o sinal para que projetasse o slide inicial de sua apresentação.
O slide veio. No lado esquerdo da tela, havia um cartoon de um homem com uma fechadura na altura da cabeça, e um balãozinho simbolizando seu pensamento: uma criança com uma chave na mão. Ao lado do desenho, o título:

CALDEIRÃO DE LOUCURAS: UMA GENEALOGIA DAS NARRATIVAS PSICANALÍTICAS DA PEDOFILIA E DO INCESTO NO SEIO FAMILIAR.

Sabendo do impacto que o título poderia causar nos espectadores, Dionísio optou por um começo leve. Fez piada com o voo desde Congonhas, elogiou o sotaque dos mineiros e sobretudo a solicitude da organizadora, Giovana Fayad, a quem o professor afirmou ter “visível talento” e “um futuro brilhante” na academia. Giovana sorriu com os olhos mareados, e Bento, ficou bastante orgulhoso da professora. A esposa de Dionísio parecia imóvel.
Dionísio tinha prática de sala de aula e excelente linguagem corporal. Mesmo sem se levantar da bancada, conseguia dar ritmo à sua expressão como se falasse escrevendo. Lembrou a plateia de que além de ter sido ator na juventude, era italiano, e, por isso, gostava de gesticular muito, como se “o gesto o ajudasse a extrair o pensamento para que a dialética pudesse servir-lhes da palavra como se serve um bom vinho”.
Lá pelas tantas, Dionísio iluminava o recinto com sua linha de pensamento:
— Quanto à pedofilia, existe o problema de como enquadrá-la. Isto é, seria o ato pedófilo homo ou heterossexual único? — pausa — Um evento excepcional que não tem nada a ver com o todo da personalidade da pessoa que o comete? Bem, nesse caso, haveria, naturalmente, certo grau de consciência de culpa em relação ao ato pedófilo. Mas, e se a pedofilia derivasse da estrutura da personalidade e tendesse sempre a se repetir? — Outra pausa e um olhar inquisidor para a plateia — Nesse sentido, surge a pergunta: seria o pedófilo também capaz de ter uma relação sexual com um adulto e de levar uma vida conjugal aparentemente normal ou, pelo contrário, este se dedicaria exclusivamente e integralmente à relação erótica com a criança? Pode passar para o próximo slide…Já o Franco…
— Desculpe interrompê-lo, professor — a Prof(a) Dr(a) Maria Helena Iozzi alisou o antebraço do palestrante — Mas, acho que seria importante esclarecer a nossa audiência: o “De Masi” a que o professor se refere é o brilhante psicanalista italiano, o Franco de Masi…
— Isso, obrigado, professora! O Franco de Masi, da Società Psicoanalitica de Milano. Enfim, o Franco distingue duas formas de pedofilia: a romântica e a cínica. Na pedofilia cínica, a fantasia subjacente é sádica. Só se atinge o estado de excitação mental, imaginando maus tratos ou violência com a criança. O prazer não deriva do desejo sexual, mas, do contrário, deriva da capacidade de se fazer tudo que deseja com o objeto submisso. Claro que a criança é mais passível do que outros a se tornar objeto de fantasias sádicas criminosas. Com frequencia atinge-se esse objetivo através do uso de fotos ou de vídeos obtidos no comércio pedófilo pornográfico ilegal. No entanto, a pedofilia romântica é nutrida pela figura erotizada, idealizada e venerada do menininho ou menininha. Parece ser essa a única fonte de gratificação, exercendo um poder muito forte sobre o pedófilo, orientando e colorindo todos os aspectos de sua vida. Na literatura, o exemplo mais famoso de pedofilia romãntica é encontrado em Lolita, que vocês acabaram de assistir na versão cinematográfica. Mesmo que o ato sexual do pedófilo seja sempre um abuso, os pedófilos românticos conseguem mostrar características altruístas ou capacidades educacionais e criativas nas relações com crianças, ao contrário do sádico, que não sente nenhum fascínio com o mundo da infância.
— Ou seja, uma forma mais branda, ou no mínimo "tratável" de abuso — Adicionou a Prof(a) Dr(a) Iozzi.
— Sim, de certa forma, sim. Giovana olhava Bento com carinho e orgulho. Afinal, ele havia estado com ela a tarde inteira e havia lidado com um tema bastante denso de um jeito maduro, e, o mais impressionante é, manteve-se interessado. Enquanto alisava o cabelo do pupilo, imaginou quantos diamantes brutos jaziam esquecidos no pesadelo das escolas públicas em todo Brasil e se entristeceu. Finalmente, tomou a decisão: a partir daquele momento faria de tudo para protegê-lo do mundo, seria a irmã mais velha de Bento, faria de tudo para guiá-lo em sua carreira e formar seu caráter.

Após muitos slides, Dionísio Pellegrini finalmente respirou fundo, sinal de que parecia caminhar para a sua conclusão, e disse:
— Bem, pessoal. A mensagem final ilustra o que Freud tão bem enunciou em muitos casos clínicos, é que, justamente a família, ela é um caldeirão de loucuras. Família, ninho de amor, união, harmonia, família cristã, olhar de Deus sobre esse ajuntamento de graça. Enfim, não é o que se verifica... já vou direto à minha conclusão. Não sou eu que estou dizendo, isso tem três, quatro, cinco mil anos de narrativa. Tragédias, clássicas, antigas; a gente tem tragédias modernas também, cinema hiper-contemporâneo, e o que a gente vê em todos eles? é a família como um circo, ou uma farsa. Quantos milênios tem o Gênesis? O Antigo Testamento? A Torá? Quantos anos tem a rivalidade? o ciúme? o intestino? a luta? a batalha? a guerra? a luta pelo reconhecimento? O feminino e o trágico. Édipo Rei, Hamlet ou Antígona, ou Lear, Medéia. O que está em cena? Tudo, menos a doçura; tudo menos a paz e a harmonia. O “Oikos” é isso: ela se alimenta dos impulsos sexuais reprimidos ou deformados, e regurgita neuroses como as que aqui tão minuciosamente nos detivemos. Muito obrigado… E aquelas cem, talvez, duzentas pessoas da plateia, todas elas nascidas no seio de uma família, mas desgostosas dela por algum motivo, aplaudiram a conclusão final da noite, que, mesmo não sendo unanimidade no mundo real, parecia válida dentro dos muros seguros de um anfiteatro acadêmico.
Giovana acessou o palco novamente anunciando que o Dionísio responderia algumas perguntas. Seriam poucas, pois o professor tinha de pegar o voo de volta para São Paulo naquela mesma noite. O primeiro a levantar o braço foi o ativista de calças cargo. Alguém conduziu o microfone até ele, que se apresentou:
— Boa noite, Dionísio. Alberto Júnior aqui, do curso de Geologia. Gostaria de saber do professor, como ele avalia as políticas do MEC para o curso de Psicologia nos próximos anos?

Quando Bento se preparava para despedir-se de Giovana, afinal Célia provavelmente já o esperava no saguão, a organizadora do seminário o surpreendeu:
— Vem comigo, Bento! Professor Dionísio! — e conduziu o pupilo até o palco, furando um grupo de estudantes que alugavam o tempo do scholar. Este deu preferência total à Giovana, tendo inclusive encostado de leve no cotovelo dela.
— Professor Dionísio, eu gostaria que você conhecesse o aluno das minhas aulas de expressão artística que eu te falei. Esse é o Bento!
— Olha só, famoso Bento! Bem vindo! O que você achou da mesa?
— Achei a discussão fascinante! Estava inclusive lendo “Lolita” esta semana e me intrigou a forma como o senhor Humbert faz justamente aquilo que vocês mencionaram hoje, ele é um burguês que projeta sua infância perdida na figura de Dolores…
Dionísio olhou para Giovana impressionado, como se dissesse: “onde você achou esse menino?”. Deu-lhe tapinhas nas costas.
— Professor Dionísio, e o que você diria para alguém que fez este desenho aqui? — Giovana tirou da bolsa um papel e o desdobrou antes de entregá-lo ao professor. Era a obra de arte de Bento da aula do dia anterior, o desenho da garota que subia uma mangueira em direção a um portal. Bento arregalou os olhos quando reconheceu.
— Agora me diz: tem ou não tem talento? — insistiu Giovana.
— Olha só — Dionísio recolocou os óculos — que interessante! Parece muito realista, apesar do tom surreal. Essa menina é alguém que você conhece?
— É…
E antes que Bento pudesse dizer qualquer coisa, Giovana acrescentou:
— É isso que estamos tentando descobrir, não é, Bento? — e abraçou o aluno por trás, como faria a um irmãozinho — Eu acho que é uma namorada, mas quero que o Bento diga pra ela que, a partir de agora, qualquer menina que quiser entrar na vida dele vai ter que se ver comigo, porque eu sou a protetora dele agora e ele é meu príncipe!
— Olha, rapaz — disse Dionísio a Bento, mas olhando para Giovana — se eu fosse você eu cuidava bem da sua professora, porque ela é um tesouro de mulher. E continue estudando assim, que você poderá ser um professor universitário, quem sabe, fazer um mestrado no exterior, já pensou?
— Já pensou, Bento?
Naquele momento, Célia, talvez cansada de esperar fora do anfiteatro, resolveu despontar pela porta de entrada à procura do filho, em meio aos últimos remanescentes da palestra que deixavam o lugar. Bento reconheceu a mãe que devia estar fula da vida. Giovana continuava:
— Temos que ficar de olho nesses meninos, porque senão eles se perdem. Mas o Bento é diferente, você tem que ver ele na sala de aula…
— É, Giovana. Dionísio. Muito obrigado pela noite, foi ótimo, foi um sonho mesmo. Mas a minha mãe tá esperando na porta.
— Sua mãe, é? — Dionísio, sorriu debochado, enquanto fazia um “shake-hands” no pequeno prodígio.
— Claro, vai lá, muito obrigado, meu príncipe! — Giovana abraçou Bento, olhando para Célia, de longe.
Bento apressou os passos culpados em direção à mãe sabendo que levaria um malho pelo atraso de quase uma hora. Depois, olhou para trás e viu Giovana, viu Dionísio e a esposa, e respirou aliviado pensando que talvez não estivesse mesmo sozinho no mundo.