Abril a Junho de 2021

Há dias na vida em que a gente acha que não vai conseguir

05 DE ABRIL

Realmente, Paulo Sérgio estava certo, há dias na vida em que a gente acha que não vai conseguir. Essa segunda foi um dia desses. Todas as segundas têm sido dias bem cacetes, de forma geral. Sem emprego, com as contas mensais batendo na trave, as briguinhas domésticas pelo excesso de convívio pululando ao longo do dia e, ainda por cima, sendo humilhado pela Vivo, a provedora de internet, em meu quinto dia consecutivo sem internet e sem assistência técnica. Mais tarde, chegaria ainda uma mensagem do meu advogado me informando que a Fundação João Pinheiro vai pedir novo bloqueio de bens. Estou encarando isso tudo como um chamado. É Deus que quer que eu seja mais humilde, que eu reze mais, que eu tenha mais fé na vida. Foi no apagar das luzes, porém, que recebi uma boa notícia: a música “Uberlândia” ficou pronta. E não é que ela ficou boa?

07 DE ABRIL

Algumas coisas a gente só encontra espaço para confessar no foro íntimo do próprio diário, mesmo que seja um diário público, correndo o risco adicional desse registro ser usado como prova judicial contra mim no futuro. Que seja. Mas não posso deixar de registrar que o próximo álbum da Lupe se chamará “Lula”. Isso mesmo, levará o nome do ex-presidente do Brasil de 2002 a 2010. Isso me incomoda? Não. Hoje em dia em que consumimos música pelo Spotify, importa cada vez menos a coesão conceitual de um conjunto de músicas dentro de um pacote chamado “álbum”. Em outras palavras, ninguém se importa mais com o nome do álbum (não apenas com o nome, com o conteúdo também). O formato-álbum só existe como um resquício de hábito entre músicos que insiste em não morrer. Nesse caso, já que ele não importa mesmo, qualquer título serve.

Mas, por que então chamá-lo de “Lula”, e não “Trator” como era o planejado, ou ainda “Bola” ou “Picolé”? Existem algumas hipóteses para a escolha. A primeira é a de que, no-fundo-no-fundo, Vitor Brauer, que é quem dá a última palavra na banda, espera criar uma pequena polêmica com a polarização política um ano antes da eleição e angariar um pouquinho mais de exposição e likes; o que não seria de todo mal, principalmente se essa exposição se converter em mais shows e mais editais do Sesc ou de festivais futuros. Isso, infelizmente, não vai acontecer, inclusive é até provável que o efeito seja inverso, e eu explico porque: na maioria dos shows de artistas nacionais em que eu fui nos últimos dez anos --todos eles militantes ou simpatizantes -- ouvi, ou da boca do próprio artista ou de alguém da plateia um coro do antigo “Fora Temer” que se transformou no moderno “Fora Bolsonaro” ou “Fora Bozo” e variações. Mas nunca ouvi um “Viva Lula”, a não ser, provavelmente, em algum desses showmícios do PT, os quais eu nunca fui, nem pra beber latão na rua. Por mais petista que sejam todos os artistas, nunca se ouve um “Viva Lula!” já que é mais sofisticado para o artista posar de centralismo ponderado do que escancarar uma paixão tão personalística assim. É mais cômodo detestar o outro lado do que amar explicitamente o próprio candidato. Nem o mais petistas dos artistas nacionais, nem o Chico César ou o Chico Buarque, seriam capazes de lançar um álbum com o nome de “Lula”. É simplesmente gratuito e explícito demais.

Ainda dentro da hipótese da busca pela polêmica gratuita, se a escolha do nome Lula é deselegante para o baixo clero contratante do show business brasileiro, nos restaria outra opção: ser cooptado pelo Partidão e assim concorrer a um oceano de proteção e verbas como nunca poderíamos ter sonhado. Essa me parece ser a opção mais deprimente, a de querer ser corrompido e não encontrar alguém que pague a propina. Mesmo assim, acho difícil que sejamos agraciados com verbas e contratos de shows. O nosso show não é feito para o público petista e nós simplesmente não nos encaixamos no padrão profissional de um grande festival como, por exemplo, o da Virada Cultural de São Paulo. O nosso show não é feito para público nenhum no mundo, inclusive.

Eu conheço o pessoal da banda, e sei que eles têm uma admiração ingênua, porém real, pelo Lula. Eles realmente acham que o ex-presidente é uma espécie de Macunaíma da vida real, um símbolo que aglutina, os vícios e as delícias de ser brasileiro. Um produto de um sistema contraditório e injusto em que um simples metalúrgico se vê obrigado a vender a sua alma pelo bem da coletividade. Eu mesmo já acreditei nessa balela e fiz a minha parte como alto-falante do discurso universitário, especialmente durante os meus anos de faculdade; por isso aceito de bom grado a penitência de participar de um álbum com o nome de “Lula”. Eu fiz por merecer.

Preciso ser justo, a decisão não foi unânime, Renan, assim como eu, estava resistente quanto ao nome. Mas como vox Populi é vox Deux. Então vai ser Lula mesmo e paciência.

08 DE ABRIL

As notícias não param. A última foi a de que o meu aluguel teve um reajuste de 30%, em função do IGP-M. Ou seja, vai passar no mês que vem de R$1.200 para R$1500! Isso significa que Laís e eu temos um mês para arranjar outro lugar para morar. A nossa suspeita é que isso tudo tenha sido uma retaliação do proprietário do apartamento (um senhorzinho que ainda envia memorandos datilografados em máquina de escrever para os moradores) pelas constantes visitas de parentes e amigos durante a quarentena. No final das contas, a notícia não foi de toda ruim porque o apartamento estava caindo aos pedaços e eu estava querendo sair de qualquer jeito, mas, mesmo assim, esse velho não deixou de ter sido muito filho da puta.

12 DE ABRIL

Em 1983, Herberto Sales publicou um romance chamado "Einstein, o Minigênio” que me parece hoje um dos romances mais importantes das últimas décadas, simplesmente porque nele já estava registrado todo o inferno do léxico academiquês dos pedagogos profissionais, e que hoje se tornou a norma culta em qualquer faculdadezinha por aí. É impressionante que esses professores não vejam o ridículo que eles passam ao escreverem um enunciado feito esse a seguir, que não foi extraído do livro de Herberto, mas poderia ter sido.

“Nos atos de leitura, são necessários dois elementos: a pessoa que lê e o objeto que está sendo lido, mesmo assim, a presença desses dois aspectos não basta para assegurar que um ato de leitura esteja sendo efetivado. É importante identificar o objeto como algo que serve para ler, atuar sobre o objeto e também interpretar a sua mensagem social.”

Ou seja, para que haja o ato da leitura efetivamente, não é preciso que alguém saiba ler. É preciso, antes de tudo, que a criança segure um objeto com as mãos e, em segundo lugar, certifique-se que esse objeto seja mesmo um livro, e não uma banana ou um pedaço de pão. Somente assim ele pode “atuar sobre o livro” e extrair a única interpretação possível: a “mensagem social”, um outro termo para a padronização dos pensamentos de acordo com a opinião da mídia. Esse trecho ilustra perfeitamente como se dá o processo da pedagogia moderna, ela começa na estupidez científica e termina na politização total da mente indefesa.

14 DE ABRIL

Digo sem medo de parecer repetitivo, hoje em dia, o tamanho do investimento em educação é inversamente proporcional à sua qualidade. Ou seja, quanto maior for o investimento do MEC, pior a educação. Quanto menor ele for, melhor pra nós. Dessa vez penso isso inspirado num trabalho para a disciplina “Literatura e Cultura Afro-brasileira que tenho que escrever para facul. O professor quer que façamos um paralelo entre o conto “Pai contra Mãe” do Machado de Assis com o filme “Quanto vale ou é por quilo?” de um cara chamado Sérgio Bianchi.

Dentre os contos do Machado, lembro de ter achado esse um dos piores. É verdade que a história é um tapa na cara e o desfecho é super trágico. Mas, de forma geral, nada se pode extrair além da ironia diabólica da trama e da elegância do estilo, já que o personagem não sente remorso por ter entregue a escrava fugida ao antigo dono e ninguém aprende nada. O conto pelo menos é bem escrito, bem feito. Já o filme do Sérgio Bianchi -- que assim como a maioria dos filmes nacionais, pode ser visto de graça no youtube -- não chega a nem isso, é simplesmente uma merda mesmo, dinheiro da Lei Rouanet jogado no lixo, propaganda partidária de quinta categoria, um amontoado de cenas grosseiras e sem forma de filme acabado. Mesmo assim, na cabeça desse professor, até o pior conto do Machado é digno de ser comparado com essa porcaria. Tive de assistir o filme na velocidade 2.0, acionando o “fast-forward” com a seta direita do teclado e mesmo assim demorei a tarde inteira para terminar. O pior desses filmes nacionais é que eles duram mais de 10 minutos.

02 DE MAIO

Eu estou feliz. E estar feliz significa também estar alerta, porque nenhuma felicidade dura tanto tempo. E por que estou feliz? Estou feliz porque consegui me mudar da estufa que era o apartamento onde Laís e eu morávamos na rua Hélio Pradines. Estamos agora num quarto e sala de um tamanho razoável na rua Durval Guimarães, a sete minutos do apartamento antigo. Acabou que toda essa mudança foi causada por um engano da corretora. A mocinha da imobiliária nos repassou a atualização do aluguel sem consultar o proprietário. No final das contas o proprietário, o velho o qual chamei de filho da puta, decidiu repassar apenas o irrisório valor de vinte reais no aluguel. Quando eles nos avisaram já era tarde demais, já tínhamos fechado o acordo do novo apê e estávamos decididos em ir embora. A mudança foi exaustiva, mas hoje, sábado, com a casa limpa, deitado no chão da sala sem sofá, assistindo pela primeira vez ao filme “Spartacus”,abraçado num colchão de solteiro com Laís, não consigo parar de pensar que eu sou mesmo um homem de sorte.

Mas não é só isso. Coromandel, a minha primeira música da vida, foi lançada para as pessoas nas redes sociais. Coromandel é um pequeno passo para banda, mas um gigantesco passo para a minha vida. Sei que o impacto da canção será menor do que eu projeto na minha cabeça, “Coromandel” não é essa coisa toda, não é “Cabo Frio''. Sei que muitas pessoas ainda vão me acusar de plagiar “Waitin’ on a Sunny Day”. Mesmo assim, apenas pelo fato de algumas pessoas terem vindo me falar que a música é boa, me ajuda a manter acesa a chama do sonho. Vários parentes da família do meu pai me adicionaram no Instagram desde o lançamento. Até Danilo, meu irmão, veio me parabenizar. Acho que já valeu.

Finalmente, existe, ainda por cima, a possibilidade de eu ser contratado para um emprego remunerado de verdade. Se tudo der certo, eu vou trabalhar na Systemic Bilingual, num emprego que era exatamente o que eu queria pra minha vida nesse momento: algo entre a produção de conteúdo e a editoração. Mas isso, eu ainda não consegui. Se der certo, eu volto pra dizer, querido Subsidiário.

09 DE MAIO

Algumas coisas na vida a gente aprende é metendo a cara, mesmo quando várias pessoas ao seu redor tentam lhe avisar que está prestes a cometer um erro. E o que eu aprendi recentemente foi que, em hipótese alguma, vale a pena você pintar as paredes de um apartamento, a não ser que esse seja o seu ofício, sua profissão, sua vida. Caso contrário, desista.

Passamos, eu e Laís, esses últimos dias tentando pintar o apartamento antigo na esperança de assim economizar alguns trocados. Mas o que era barato acabou saindo caro e nos custou uma semana de energia vital sem que a gente conseguisse terminar a tarefa. Nunca vou esquecer da noite, em que eu, já com dor nas pernas, tentava passar uma demão no meu antigo quarto enquanto, ao fundo, o bairro inteiro assistia e gritava ocasionalmente pela vitória da Juliette Freire no Big Brother Brasil. Foi realmente uma semana infernal e que eu não desejo para ninguém. No final das contas, a corretora ainda nos ligaria na sexta para cobrar pela chave que deveríamos ter entregue na quarta. Usei da minha lábia o máximo que pude e consegui postergar a entrega para segunda de manhã. Vamos ver se não sai nenhuma multa disso daí. Enquanto isso, contratei um pintor que, por apenas R$150, se dispôs a terminar a pintura interrompida, mas o desafio agora é gerenciá-lo à distância e garantir que a imobiliária não saiba que alguém está frequentando o apartamento com a minha chave reserva.

10 DE MAIO

O pior aconteceu. A Imobiliária não vai apenas cobrar pelos dias de atraso como também por uma vistoria a mais. Isso significa uns 500 reais de prejuízo no nosso magro orçamento doméstico. Eu, que adoro encher a boca para falar mal dos serviços e dos prestadores de serviço em Maceió, acabei dando uma de safado e optei em entregar um serviço amador em vez de fazer a coisa certa. Mereço essa multa que me ficará como uma dura porém desnecessária lição de que a gente deve buscar ser honesto com todo mundo e não dar uma de doido pra cima de gente que pode ser mais doida que você.

25 DE MAIO

Quando comecei a escrever esse diário há pouco mais de um ano, tinha mais assunto, mais ambição e muito mais ânimo para lapidar meus pensamentos pela escrita. Talvez por isso meus primeiros escritos sejam melhores, porque eram emocionalmente mais ambiciosos e esmerados. Hoje em dia, estou encontrando pouco tempo para escrever qualquer coisa, tudo que eu escrevo é feito às pressas. A consequência é que aos poucos o vou pisando no freio dos projetos literários: “Darlene” está passando por um hiato e a minha rotina de escrever todos os dias, conseguida a duras penas parece agora ameaçada. Não posso reclamar, o meu dia (Graças a Deus!) está cheio de pequenas tarefas ou peripécias que embora nos mantenham ocupados, nem sempre contribuem para os nossos objetivos de vida no longo prazo. Estou empregado, disso não posso reclamar, ganhando um salário que se não é alto, também não é mínimo e me parece mais que justo dado a minha posição de vida. Dou minhas aulas de Inglês e estou ainda ganhando um dinheirinho extra com um bico para o qual Renan Benini havia me indicado: gravar conversas fictícias em inglês para uma empresa chinesa que busca criar um gigante banco de inteligência artificial!

Fora isso, teve fim anteontem o meu flerte de mais de três meses com o autor de “A Marquesa de Santos” Paulo Setúbal. Li todos os romances históricos, todos os ensaios e ainda sua belíssima obra póstuma, o Confiteor. Li ainda a excepcional biografia sobre Paulo escrita por outro cultíssimo escritor e jornalista que é o Fernando Jorge, e que num gesto de nobreza de alma, no alto de seus 94 anos, enviou uma cópia da biografia pelo correio, com uma linda dedicatória que só pôde ser redigida pelas mãos não tão firmes do jornalista com ajuda de uma régua.

De todos os escritores brasileiros cujas obras li ou perpassei, Paulo Setúbal me pareceu a personalidade mais elevada, a alma mais pura e generosa da nossa literatura. Todos nós, artistas ou não, devemos aspirar a ser Paulo Setúbal quando crescer, alguém que venceu materialmente e sobretudo espiritualmente a vida, que lhe encerrou precocemente aos 44 anos, sucumbindo finalmente a uma tuberculose que lhe assaltou os últimos vinte anos de vida. Não desejo, claro, que tenhamos que sofrer o que Paulo sofreu, mas sem dúvida, não há nada como a intuição da morte iminente para abrir os nossos olhos para a vida eterna. Foi somente essa certeza da continuidade do espírito, cultivada no engenho da própria fé, que permitiu com que Paulo Setúbal passasse incólume e leve como um passarinho por entre as fofocas dos modernistas, invejosos de seu sucesso, e pelas explosões políticas nas ruas de São Paulo de 1924, 1930 e 1932. Acho que a lição de Paulo para as pessoas é, além da energia vital com que ele escrevia e vivia a vida, a de que devemos perder as esperanças com a vida imediata e fixar nosso olhar no horizonte, no limite entre a vida e a eternidade. Só assim se pode fazer boa arte, só assim se pode vencer a morte.

29 DE MAIO

Recentemente tenho assistido a várias aulas pelo Youtube do Luiz Gonzaga de Carvalho, o filho do homem cujo nome não pode ser dito em público. Aulas brilhantes, de teor filosófico, simbólico e místico. O que ele faz é sugerir aos seguidores uma nova métrica para se medir felicidade:a narrativa do dia, ou o que você fez durante um dia para alcançar sabedoria, prosperidade e respeito. Há algo de poderoso no discurso do Gugu que escapa o limite das palavras e nos envolve numa espécie de aura transcendental, hipnótica e iniciática. Por isso, é preciso às vezes conter a admiração e assistir às aulas sempre com alguma parcimônia. Numa delas, uma conversa de mais de sete horas em que o Gugu tenta no limite do seu inglês explicar para um romeno a humilhação que nós brasileiros vivem osdiariamente em função do banditismo, foi que me veio um doído aperto no coração, infinitamente menor, claro, mas ainda sim da mesma natureza do de Jesus, quando na véspera do calvário, vislumbrou e compadeceu com todo o mal e todo o sofrimento provocado pelo pecado humano de todos os tempos de uma só vez.

Como foi que nós, brasileiros, passamos a aceitar essa vidinha miserável de viver enfurnado em casa, e sair na rua com o corpo todo retesado de medo de assalto, de roubo e de morte violenta? Vivemos há trinta anos no mínimo num estado permanente de estresse traumático similar ao de países em guerra e mesmo assim mentimos para nós mesmos dizendo que o problema é o coronavírus, é a economia ou o próprio Bolsonaro? Como foi que normalizamos a loucura? E, principalmente: como é que alguns de nós tem a pachorra de defender a volta de um governo que nos afundou nesse genocídio, um governo que emburreceu as pessoas e vem literalmente roubando o nosso dinheiro pra financiar o terrorismo internacional e pagar as pessoas para nos matar aqui dentro? Por coincidência, aconteceu no sábado pela manhã, alguns protestos minguados contra o Bolsonaro em várias capitais do Brasil organizado pela esquerda, sendo que em um deles os manifestantes brincaram com a cabeça de Bolsonaro feita de papel como se fosse uma bola de futebol, assim como os muçulmanos faziam com a cabeça do George Bush no Iraque e os presidiários de Pedrinhas no Maranhão com as cabeças reais de seus inimigos de facção.

Em meio a esse turbilhão, um susto: meu pai teve uma convulsão e foi levado para um hospital em Paracatu. Ele está bem e a tomografia não acusou AVC ou derrame. Seu Vanderley conversou normalmente comigo pelo telefone, mas pelo que eu entendi ele não está conseguindo enxergar direito (não sei se de um olho, ou dos dois) e está sentindo uma cólica estomacal, fruto de uma antiga infecção. Por sorte havia gente ao redor para socorrê-lo, já que nos últimos meses ele tem vivido na fazenda de uma de suas irmãs, a Lúcia, que o acompanha nos exames médicos e nas consultas. Se não fosse pela Tia Lúcia para acolhê-lo, talvez meu pai teria se sentido mal no isolamento de sua casa em Uberlândia e não sobrevivesse. Mas Deus, que segue no comando, tem guiado o meu pai à distância e assegurado que tudo corresse de acordo com o Seu plano.

08 DE ABRIL

Realmente não sei o que eu faria se tivesse uma arma carregada à disposição num dia de virote, sem ter dormido na noite anterior. Um dia sem dormir é um dia perdido onde tudo é feio, tudo é cinza e nada faz sentido. Felizmente não tive nenhum compromisso relevante ontem (segunda) a não ser uma entrevista para a Rede Minas sobre o lançamento do “Lula” que participei com o Jonathan Tadeu, mas, graças a Deus, acabou sendo rápida e bem agradável. Passei o resto da segunda inteira deitado, de mal com a Laís por nenhum motivo e, mais tarde, tomei dois dramins para cair no coma. Dormi por longas dez horas e acordei hoje, às nove da manhã de terça-feira, me sentindo novo de novo. Maravilhoso esse Dramin!

14 DE ABRIL

Enquanto a vida em Maceió parece se estabilizar, lá em Minas uma trama complexa vai se formando, estremecendo aos poucos o solo da minha terra natal. Todos nós sabemos que o sangue é mais denso que a água e que dos laços familiares não podemos nos desvencilhar por muito tempo, já que os pais envelhecem também e se tornam bebês frágeis e murchos, carentes dos mesmos cuidados que nos emprestaram anos atrás. E o que acontece quando finalmente um patriarca precisa de cuidados? Uma hora a conta chega e a família é forçada a conversar de novo, por bem ou por mal.

A crise da velhice ou o deslocamento dos mais velhos numa sociedade cada vez mais individualista e obcecada pela juventude é um dos temas mais constrangedores para nós. A ficção vem tratando disso constantemente: está nos Simpsons, nos Sopranos, na excelente peça teatral de Jorge Andrade, “A Escada”, e em várias outras obras que não me vêm à cabeça agora. Todo mundo vive esse drama de alguma forma dentro de casa e, mesmo assim, tentamos abafá-lo a todo custo, porque o fantasma do abandono deixa escancarado que somos todos (ou pelo menos eu seja) filhos ingratos, seres humanos horríveis.

Escrevo isso porque meu pai, com o raciocínio abalado e coordenação motora comprometida, espera dos filhos uma decisão sobre seu destino, enquanto perambula pela roça da tia Lúcia em Patrocínio. Quem irá cuidar do Seu Vanderley? Meu irmão Vinícius e sua esposa Danielle, que gerenciam uma ONG e acabaram de ter uma neném, não têm condições de abraçar a causa. Danilo, meu outro irmão, que muito vem ajudando meu pai em termos financeiros, mora há muitos anos em Santa Catarina e não pode fazer muito mais além do que ele já faz. Eu, finalmente, moro há mais de 2000 km de distância e não disponho agora de dinheiro para contribuir com os exames, o que posso fazer além de dar apoio moral? Se o bicho pegasse mesmo eu não me importaria de voltar para Uberlândia e morar com o meu pai. Acho que até a Laís toparia também. Quem não toparia nem à pau é o pai dela, que sem dúvida morreria antes de deixar que a única filha que ele havia posto no mundo mudasse de cidade.

16 DE ABRIL

Ainda dentro da proposta de me educar financeiramente em 2021, estou lendo um clássico da bibliografia de investimentos: “Segredos da Mente Milionária” de T. Harv Eker; um livro bem gostoso de ler, bem traduzido e que reproduz os principais ensinamentos que encontramos nos melhores livros sobre o assunto. Nada muito excepcional, exceto por um ponto que me chamou a atenção. É quando Harv descreve como deveria ser a divisão de recursos para um aspirante à liberdade financeira. Para ele devemos ter seis contas diferentes, e nelas devemos aplicar nosso dinheiro na seguinte proporção:

10% para a “Conta da liberdade financeira” 10% para a “Conta da diversão” 10% para a “Conta de poupança para despesas de longo prazo” 10% para a “Conta da instrução financeira” 50%para a “Conta das necessidades básicas” 10% para a “Conta de doações”

O mais impressionante de tudo é que, para o tal do Harv, todo mundo deveria separar 10% do que recebe para fazer doações aos pobres. Isso significa num orçamento domiciliar como o meu e de Laís que gira em torno dos R$ 4.000,00 a R$ 5.000,00 ao mês; dedicar R$400 a R$500 para caridade. Harv diz ainda que o ato de doar aos pobres faz com que o “Universo” lhe traga abundância financeira, e que é mais provável encontrar pessoas solidárias nos bairros ricos que nos bairros pobres.

Alguém já conheceu um brasileiro que doasse 10% da própria renda para caridade? Já conheci muita gente caridosa e que empresta seu tempo e sua energia vital para causas e pessoas, mas nunca conheci ninguém que doasse dinheiro nesse patamar. Isso aparentemente não é incomum no país mais próspero e que mais pratica caridade no mundo, o país que todos gostam de se referir como o inferno materialista na Terra. Esse trecho me fez lembrar também das aulas do Gugu de Carvalho, uma delas em específico, em que ele menciona sobre o poder da oração, do jejum e da esmola. Sobre a última, o conselho do profeta para incutir o hábito em nós mesmos é, separar uma quantia para doação assim que você tiver algum montante de dinheiro em mãos. Para o Gugu, melhor do que dar um prato de comida, dar um sopão ou uma caixa de leite, é dar dinheiro vivo, esmola! O dinheiro real, para ele, é uma espécie de voto de confiança mútuo, como se o doador dissesse para o pedinte: “eu confio no seu julgamento ao aplicar esse dinheiro, porque eu preciso da sua confiança de que eu possa aplicar bem o meu próprio”.

21 DE ABRIL

Desde sempre ouvi na mídia especialistas em trânsito falarem de soluções para o transporte coletivo das grandes cidades: BRT, metrô, bondinho e variantes. Nada deu certo até que veio o Uber, ou a Uber, uma empresa do vale do silício, para substituir nossos defasados taxistas e impor um respeito ao consumidor que antes não existia. Hoje o Uber faz mais para o trânsito que Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil e os Departamentos de Estradas e Rodagens do Brasil inteiro juntos.

Sempre ouvi de intelectuais, como o Domenico de Masi, e de gente de mídia sobre a crise do modelo de trabalho, ou seja, como o modelo de escritório de nove às seis está falido porque não oferece ao trabalhador a chance de exercer seu ócio criativo ou algo do gênero. Nenhuma solução, nem a flexibilização do “modelo Google de se trabalhar”, embora copiada por algumas empresas, teve o impacto que a pandemia e sua correlata histeria coletiva tiveram para forçar a aceitação do home office pelos chefes do mundo inteiro.

Até o pedagogo mais mal formado concordaria comigo que o modelo conteudista de escola, de salas de aulas entupidas, e que despeja conteúdos totalmente fragmentados (e às vezes inúteis) na cabeça do jovem já está fazendo hora extra nessa Terra. E mesmo assim, ninguém conseguiu fazer nada contra a ditadura do MEC e seu cão de guarda, o ENEM. Foi preciso, de novo, a pandemia, para que os estudantes e seus pais percebessem que o serviço que a escola entrega não é assim tão essencial, e que tudo que eles precisam estão ao alcance de todos na internet. E agora vemos novas iniciativas como a Khan Academy, a Alura, o nosso COF e o ICLS, mostrando de onde vai surgir a mudança da educação.

O que a Uber, o Home Office e o ensino à distância têm em comum? Foram todas elas soluções para problemas brasileiros que emergiram não como resultado de nosso esforço criativo, mas como a última saída para um problema externo que nos foi imposto por um capricho do destino. Não sei se isso é uma constante em outros povos, mas parece que, pelo menos no Brasil, as mudanças só acontecem quando há um evento magnânimo que nos força a mudar: uma epidemia, uma guerra, uma catástrofe natural.

Fiquei sabendo hoje que El Salvador passou a aceitar Bitcoin como moeda oficial. De início, senti desprezo pela republiqueta da América Central pois vi ali o mais novo paraíso fiscal da Terra sendo formado. Mas, pensando melhor, estou com inveja deles e começo a achar que essa é a única saída: escancarar nosso mercado para as criptomoedas, já que, à exemplo dos Transportes, do modelo de trabalho e do modelo de ensino, estou totalmente descrente de que nós possamos fazer alguma mudança significativa na forma de fazer negócios e na circulação de riquezas no Brasil. Não há mais solução para a burocracia estatal e para a carga tributária. A máquina funcionou por muito tempo sem manutenção e está enferrujada. Só funciona à custa de um enorme esforço para mantê-la viva. E quem quiser empreender, investir e ganhar dinheiro daqui pra frente não poderá mais depender das velhas instituições. Digo isso com um aperto no coração, mas acho que a única solução para nos libertarmos dessa prisão burocrática é explorarmos esse novo mercado sem face que é o das criptomoedas.