Capítulo 6 - “Moça com Brinco de Pedra”

Sexto capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

Tudo teve de ser bem calculado de véspera para que Bento pudesse cruzar o batente do oitavo A às sete e vinte da manhã, nem um minuto a mais e nem um minuto a menos. Chegar antes do sinal significaria aguentar por mais tempo o escrutínio, a reencenação dos eventos e as pequenas humilhações dos sátiros da sala. Chegar atrasado, algo que Bento nunca havia feito, seria escancarar seu desconforto, o que seria prontamente respondido com mais humilhações.
Soou o sinal. E lá estavam eles, as estrelas do final de semana, próximos à grande janela traseira: Fábio em pé e de costas para a porta, gesticulando mais que o normal para aquela hora da manhã, como se contasse uma história para dois sonâmbulos Gilvan e Goianinho. Na mesma fila que o grupinho, sentados algumas carteiras à frente, Tales olhava assustado para Bento, enquanto Gustavo, alheio a tudo, corria para terminar a lista de exercícios de matemática não entregues na sexta-feira. Bento acreditou ser possível acessar sua carteira sem ser visto. Mas Fábio seria mais rápido:
— ...Tô te falando, Goiano! Aquele cara da mesa de som que vocês chamaram é maluco. O Cara só falava: “cê estragou meu PA, estragou meu PA!” Não virava o disco. Aí eu virei e falei: “meu irmão, eu por acaso sou boiola pra ficar encostando no negócio dos outros”?
—Falou porra nenhuma!
—Falei mesmo não, mas quase. Ó! Olha aí quem chegou. Bentô, chega aqui!
—Peraí, deixa eu só colocar o fichário na minha mesa - Respirou fundo, e ao se aproximar, estendeu mecanicamente a mão na altura do peito de Fábio: “E aí?”
— Cara, você é louco?
— Han?
— Você é louco?
— Por quê? — Bento tremia.
— Agora eu vi que você é louco mesmo.
— Deixa o cara... — interviu Gilvan.
— Que que aconteceu? — Perguntou um rouco Goianinho.
— O bicho estava com a menina lá na sala do Gilvan, menina prontinha pra dar pra ele e o cara vaza! Falou pra ninguém. A coitada da menina até chorou.
— Cara, eh...foi mal.
— O cara broxou, normal. Quem era a menina? — perguntou Goianinho.
— Broxei, não.
— É a Darlene da sala C.
— E ela é do frevo?
— Né não, sô!..presta atenção — cortou Gilvan.
— Claro que é, sô! Ela é amiga da Mayara.
— Também não é assim, não. Se for assim a Monalisa também é do frevo.
— E ela é mesmo! Essas quietinhas são as mais safadas.
Goianinho, que parecia ter saído de uma luta de boxe, não teve forças para tentar entender a contenda; Gilvan, por outro lado, estava estranhamente enfezado. Bento sentiu que havia espaço para fingir naturalidade:
— Então! Tava lá com a menina, né?... Só que foi me dando um negócio ruim aqui dentro por causa daquela batida de maracujá, vocês tomaram?
— Aí é foda...
— Quando eu percebi que o bicho ia pegar, não teve jeito, vazei.
— Mas sem falar com ninguém? A gente quase ligou para a sua mãe e tive que inventar uma história louca pro Gilberto, o pai do Gilvan; e pra tia Carmem também.
— Foi mal.
— Cê pegou ela pelo menos?
Bento viu os olhos de Gilvan fixarem nos dele como nunca. A princípio, estava resolvido a não mentir sobre esse ponto, mas por sentir que sua versão tinha algum lastro nos fatos reais, acabou por negociar com a consciência. Além do mais, interessou-se pela reação de Gilvan. Queria imprimir uma derrota no garanhão:
— Hm-hmm. E ainda rolou outras coisas…
— Boquete?
— Hm-hmm — a resposta saiu anêmica.
— Pff! — Gilvan passou a mão à seco pelo rosto, levantou-se e procurou outra carteira vaga próxima ao grupo das meninas. Já era hora de dispersar a rodinha.
— Aê, Bentoso! Toca aqui! Tá melhor que o Tales que ficou tricotando com a menina na cozinha. Aí eu te pergunto: o que que adianta ter um jegão se não pode nem botar pra fora? Né não, jegão?
Bento ficou aliviado por não ser mais o foco da conversa, mas sentiu que devia algo ao Tales e tentou levantar a bola do amigo:
— Mas, ei! O Tales mandou bem demais. Teve uma hora que a gente ficou até assustado ouvindo os “schlep, schlep, schlep” da cozinha.
— Jegão tá apaixonado. Ó a cara dele.
— Que mané apaixonado! — Tales não conseguiu esconder um sorriso — Foi a Ariadne que ficou doida comigo. Me ligou lá em casa o dia inteiro. Falou até com a minha mãe.
— Já era, vai casar. Na próxima vez que ela ligar você fala assim ó: “ô Arê, tem um negócio bem grande dentro de mim e que cresce, cresce muito, sempre quando eu te vejo…”
— Oooie! — voando pelo corredor, as vozes em uníssono de Monalisa e Ariadne surpreenderam e os primos, que tiveram de se recompor para cumprimentar à distância suas respectivas amigas: “Opa, oi meninas!”.
Bento aproveitou a deixa e procurou seu lugar. Até agora, nenhum sinal de Darlene na escola, melhor assim. No segundo seguinte, porém, quem entrou porta adentro, acabando com a festa, foi o professor Cláudio e sua maleta de couro cheia de bolsos: “Bom dia.” E foi logo enchendo o quadro negro de matéria.
Mesmo ocupado, Gustavo sentiu que devia quebrar o gelo com Bento:
— Velho, que mente satânica bota dois horários do Cláudio na segunda?
— Sei lá. Eles botam pra castigar a gente mesmo. Por outro lado, é bom que acaba logo.
— Hm-hmm. Então quer dizer que você é o pegador agora?
— Ah, ela não é muito bonita, não. Mas de boa.
— Você era muito afim dela um tempo atrás, né?
— Há muito tempo. Mas, e aí? O que vocês ficaram fazendo lá na festa de tarde depois que a gente saiu?
— Velho, foi massa. O D’sunga tocou até de noite, mas a Gisele quis ir embora antes de os meninos voltarem porque o clima começou a ficar esquisito.
— Como assim?
— Parece que roubaram um carro de alguém lá na rua de trás e o banheiro de cima ficou todo mijado.
— Sacanagem...
— A mãe da Gisele chegou na hora que rolou uma briga, nem vi os meninos chegando. E outra coisa, não foi só você que passou mal, não. De bicadinha em bicadinha eu acabei vomitando no carro da minha sogra. Aí domingo eu só dormi. Gisele tá grilada comigo até agora.
— Puts.
(...)
Quando não havia mais espaço no quadro negro, Cláudio sentou-se no tampo da mesa do professor e impôs sem esforço o seu silêncio. Varreu a sala com seu olhar interrogatório e arguiu:
— Como estamos hoje? Mais calmos? Festejaram bastante? Fizeram tudo o que tinham que fazer?
Ninguém ousou responder ao mestre. Cláudio então respirou fundo e retirou de um dos bolsos de sua pasta, um lenço embevecido com álcool. Enquanto limpava a mão suja de giz, observou pela janela as copas dos pinheiros que trepidavam com a viração da manhã e que talvez o fizeram se sentir nostálgico:
— Podem me chamar de antiquado, mas eu sou daqueles que acham que pra tudo nessa vida tem seu tempo. Hora de festa é hora de festa, hora de trabalhar é hora de trabalhar. Principalmente para mim que aos quatorze já tinha que bater ponto na gráfica e aos dezessete já tinha mulher e filho, além de ajudar minha mãe lá em casa. Mas não me entendam errado, na idade de vocês eu também fazia as minhas peripécias: jogava truco nas fazendas da região, ia na represa de Miranda e amanhecia ouvindo a viola cantar. Mas naquele tempo as pessoas tinham mais consciência, sem dúvida.
— O senhor conheceu a Teolinda jovem?
— Claro que não, Gilvan. Ela é muito mais idosa que eu. É até meio ofensivo que você me pergunte isso. Enfim, só sei que vocês são privilegiados. Eu fico bobo de ver, qualquer coisinha é “ai, errei a conta” e vraap! Arrancam a folha do caderno. Vocês sabiam que o meu primeiro caderno foi minha mãe que fez com papel de pão?
— Por que o senhor não comprava um fichário?
— Que fichário, meu filho? Acorda!... Deixa pra lá. Bora começar logo que vocês estão atrasados na matéria. Devíamos ter começado Funções no segundo bimestre. Eu só queria que vocês pusessem a mão na consciência, tudo tem hora. E vocês vêm pra escola para estudar.
— A professora de Português disse que a escola serve para socializar também.
— Ela tá errada!
(...)
— Aê, terminei! — disse Gustavo destacando a folha do caderno — Bento, você vai ser a minha testemunha: eu nunca mais na minha vida vou fazer uma conta de matemática!
— Uai, mas e no vestibular?
— Sei lá. Eu vou tentar me garantir nas outras provas e se não der certo eu vou pra faculdade particular.
— Você tá doido, Gustavo? Brinca com isso não. Achei que a gente ia entrar junto na UFU. Você até falou que gente vai fazer o mesmo curso.
— Sei não, Bento. Vamos ver. A Gisele já falou que quer fazer medicina em Uberaba e minha mãe soltou esses dias que paga pra mim se eu fizer também.
Cláudio parou a aula para ralhar os amigos:
— Gustavo e o colega, vocês querem conversar lá fora?
— Não, fêssor.
(...)
Desde que pisou naquela escola Bento lutou para ser um bom aluno. Nunca tirou uma nota menor que 7,9 nas provas, nem cogitou deixar de entregar o dever um dia sequer, caprichando o máximo nas ondinhas e arabescos da sua letra cursiva. Nas capas dos trabalhos, havia sempre um desenho de sua autoria: uma árvore, um índio ou um escravo jogando estilhaços de corrente sob uma faixa onde se lia “13 de maio - Dia da Abolição da Escravidão”. Bento sempre fez questão de sentar-se longe da turma do fundão e mais próximo possível das tias Carmem, Regina e Marilena, que lhe retribuiam com uma aprovação quase maternal. Mas o tempo passou rápido, e na oitava série os professores que sobravam, exceto o velho Cláudio, eram apenas uma lista de nomes e rostos de aparência universitária que duravam cada vez menos no cargo.
Internamente Bento havia adquirido outra revelação: não era mais a habilidade de puxar o saco dos professores que contava, mas a coragem, a capacidade criativa de querer uma coisa e lutar por ela, impondo aos outros a sua vontade não importando o quê. A ousadia e a coragem são talvez os dois maiores valores que alguém pode desejar ter, não só na escola, mas quem sabe na vida também.
(...)
— Quando vocês tiverem uma expressão algébrica e nela houver termos semelhantes, vocês podem simplificar essa expressão por meio de operações com os coeficientes dos termos semelhantes. Aí, vejam só, esse negócio grandão…

5xy² + 10x – 3xy + 4x²y – 2x²y² + 5x – 3xy + 9xy² – 5x²y

Pode virar uma expressão menor, ó:

2x²y² + 14xy² + 15x – 6xy -x²y

— Fêssor, tipo. Por que agora tem “y” também se antes a gente mexia só com “x”?
O mestre parou diante da sala, incrédulo:
— É sério? Não me fale que isso é sério, por favor. Se for piada, não tem graça, porque isso é pergunta de quinta série.
Nisso o sinal soou de novo e a sala voltou a fazer muito barulho. Professor Cláudio suspirou de alívio, deixou a sala com sua pasta de couro, mais triste do que entrou.
Goianinho, do fundo, ergueu sua mesa e cadeira no ar e os posicionou em frente à primeira pessoa da fila.
— Sai daí, sô! — Exclamou Gilvan.
— Véi, deixa eu estudar. Vocês são só atraso de vida.
Quando mais tarde, Giovana, a nova professora de Artes, chegou à porta da sala ficou claro o motivo para o súbito interesse de Goianinho. Gisele e Caroline responderam ao teatrinho com cara feia de desdém.
Giovana carregava um pesado retroprojetor como um bebê com o braço direito. Com a esquerda segurava a alça de uma sacola de feira repleta de papelaria. Goianinho se prontificou a ajudá-la, quase se redimindo de ter sugerido algo sobre a promiscuidade da professora dias antes.
Fábio olhou para Tales e disse:
— Que beleza, aula de artes é só zueira.
— Já é quase o recreio.
(...)
Giovana soprava vida e esperança na prisão escolar. Tudo na aura da professora era leveza e poesia; os cabelos, de um castanho claro quase encaracolados, abriam espaço para dois arcos de sobrancelhas finas e um nariz aquilino que confessava a sua nobre ascendência de família libanesa. Bento notou o equilíbrio quase premeditado na forma como ela dispunha os pincéis e lâminas na mesa, fazendo com que suas pulseiras de pedras naturais — da mesma cor dos rústicos brincos de turquesa — deslizassem pelo antebraço. Mágico era o traslado da saia indiana, enquanto Giovana flutuava de uma parede a outra, à procura de uma tomada que realmente funcionasse. Mas o trejeito que deixou marcas mais profundas na alma de Bento foi o inesquecível olhar de bondade com que a professora cobriu cada um dos meninos e meninas quando estava prestes a começar a aula, apesar da bagunça que eles promoviam. Como se a sala de aula fosse a sua casa, Bento sentiu vergonha por uma mulher tão nobre quanto Giovana tivesse que pisar naquele chão sem taco, e reparasse nos outros defeitos: o ventilador estragado, as janelas com vidros partidos, as carteiras riscadas de caneta.
— Bom dia, oitava A! Nos conhecemos na semana passada, lembram de mim? Não vejo a hora de memorizar o nome de cada um de vocês. Até lá, para quem não sabe, meu nome é Giovana Fayad. Mas, em vez de eu vir aqui e falar sobre mim e a minha formação, queria começar a nossa primeira aula com uma espécie de dinâmica. O que vocês acham? Olha só — Giovana dirigiu-se ao quadro negro — pronto! Vocês estão vendo essa linha horizontal que eu desenhei? Vocês acham que esse desenho é difícil de fazer? Não? Pois então, quero que cada um venha até aqui na frente e tente replicá-lo, quero que vocês tentem fazer esse mesmo traço de novo. Vocês acham que conseguem?
A turma murmurou confusa.
Não é pegadinha, não. É só imitar meu traço. Vamos lá, vem você, a primeira da fila, como você chama?
— Grace Kelly.
— Vem, Grace Kelly.
— Sei desenhar que presta, não.
— Não precisa. Aqui o seu giz.
— É só fazer o mesmo risco?
— É.
— Assim?
— Assim. Tá ótimo, pode voltar, minha flor. Agora vem você.
— Quero não.
— Só vem.
E a meninada foi se revezando, um de cada vez, empilhando seus traços desengonçados em colunas, como em uma sequência de faixas de pedestres. Quando o quadro estava cheio, Giovana pareceu satisfeita:
— Ótimo! Vamos dar uma olhada no nosso trabalho?
— Nó, que bosta.
— Não, não, Goianinho. Veja que interessante! Vocês perceberam que mesmo um traço simples como o meu nunca pode ser completamente imitado? Vejam que os primeiros são até parecidos, mas a partir da segunda coluna eles meio que ganham vida própria. Esse daqui parece até um arco. A partir deste, todos envergam para cima, de forma que o último nem lembra mais o original. Vejam ainda que uns têm um traço mais firme; outros, o toque mais leve, vacilante. Vocês sabem o que isso quer dizer?
— Que a gente é tudo burro?
— Não. Os traços parecem diferentes porque vocês são indivíduos diferentes entre si. Todos nós, Gilvan, temos a nossa personalidade, a nossa energia, o nosso espírito e que sempre transparece nos mínimos detalhes: na postura, no tom de voz, nas palavras de que escolhemos dizer, nos gestos e na forma como manipulamos objetos simples, como um pedaço de giz. Cada traço neste quadro é uma história de vida, é uma personalidade inteira!
— Óia. Que viagem.
— O mesmo nós podemos dizer da arte e dos artistas. Tenho certeza que se eu pedisse um desenho daquelas árvores lá de fora, cada um, mesmo se as observasse da mesmíssima posição, faria uma obra muito particular. Uma obra nunca pode ser copiada, porque o mundo não pode ser apreendido da mesma forma por dois artistas diferentes. Bem...Dito isso, eu vou apagar o quadro porque eu quero que façamos diferente... Eu vou desenhar qualquer coisa aleatória que der na minha cabeça...Pronto! Nem sei o que é isso, mas é o que eu quis desenhar. Qual é o seu nome, flor?
— Gisele.
— Gisele, eu quero que você venha até aqui em frente ao quadro e complemente o meu desenho. Faça o que você quiser. Veja o meu desenho e responda a ele com a sua contribuição: um adorno, um rabisco, uma forma; qualquer coisa, contanto que uma pura expressão de sua vontade imediata.
A sala inteira acompanhou o encontro das duas beldades separadas por uma geração. Gisele dirigiu-se ao quadro e, sem pensar nem por um segundo, acrescentou uma vetusta e sinuosa onda ascendente que ao cruzar com a de Giovana parecia imitar o trajeto de voo de duas andorinhas irmãs, lindo! A sala até se emocionou: “Oh!”
— Linda demais! — Exclamou Gustavo do canto esquerdo da sala. Gisele sentou-se sem dar bola para o namorado.
— Perfeito, agora vem você. Seu nome?
— Gilvan, fêssora.
Em passos seguros de chuteira, Gilvan aproximou-se do quadro negro apenas para lhe aplicar um rude traço horizontal. O golpe fez até barulho.
— Agora cagou foi tudo! — malhou Fábio.
— Cala a boca. Não terminei ainda.
— Tá bom, Gilvan, A intenção não é ficar perfeito.
— Peraí. Vou fazer de novo. — Gilvan apagou o desenho com a manga da blusa de frio e aplicou mais concentração apenas para refazer o mesmo traço horizontal: “Pronto”.
— Obrigada. Vem o próximo...
Giovana retomou sua linha de raciocínio à medida que os desenhos guiavam a obra coletiva para novas direções artísticas:
— Gente, agora acho que tá nítido pra todo mundo o que eu falei sobre o traço do artista. Veja como o desenho da Gisele sugere uma personalidade expansiva e aberta para o mundo. Talvez ela seja um pouco assim. Já o desenho do Gilvan sugere solidez e uma…
— Ignorância — a turma riu.
— Eu ia falar senso de realidade. Vem agora você, qual o seu nome?
— É Fábio.
— Vocês perceberam como cada contribuição parece dialogar com a anterior e com o desenho inteiro? Depois de desenharmos curvas e espirais, que são traços mais dinâmicos e fluidos, sentimos quase uma necessidade instintiva de controlar a nossa criatividade e "plantar o nosso desenho no chão”, por assim dizer. Por isso, até uma linha horizontal e estática como a do Gilvan nos agrada. O ser humano é assim, sempre busca o equilíbrio, a beleza.
— De nada, fessôra. - disse Gilvan, satisfeito.
Cada nova frase de Giovana era uma chave que abria portas na mente de Bento. Estava de alma e coração entregues à nova professora. Talvez por isso tenha sentido vontade de se esconder quando Giovana virou-se para o quadro e percebeu, sob uma onda de risadas estúpidas, que a obra de arte coletiva havia se transformado num pênis estilizado na mão maliciosa de Fábio. Giovana apagou o quadro com dignidade e pediu:
— Goianinho, já que você tá tão prestativo hoje, desliga a luz pra mim. Alguém pode fechar as cortinas, por favor?
Giovana acendeu a luz do retroprojetor:
— Lembram que eu falei sobre um mesmo objeto assumir formas distintas na visão de um artista? Pois então. Eu vou mostrar para vocês diferentes retratos de mulheres na versão de pintores famosos, de países e épocas bem diferentes... Vocês já viram essa pintura?
Ninguém se prontificou.
— Esse quadro se chama “Moça com Brinco de Pérola” de um pintor holandês chamado Johannes Vermeer. O que vocês acham que o Veemer viu na tal da moça que o moveu a pintá-la com tanta delicadeza?
Algumas meninas da sala se entreolharam e sorriram inspiradas.
— Acho que ele gostava dela, professora — disse Caroline.
— Vocês acham? Ok, vejamos o próximo então — Giovana trocou a lâmina — Esse daqui é de em 1942 e foi inspirado na esposa do pintor e se chama “Retrato de Dora Maar”. Alguém sabe quem é o pintor? Ele é espanhol...
Cada um meneou a cabeça como pôde. A recusa foi completa.
— Gente, é o Picasso.
— Picasso!? — Fábio ergueu os braços em paralelo à meia altura, sacudindo-os contra o ar - Picasso! - Goianinho, Gilvan e Gustavo riram porque entenderam a piada. Tales apenas ficou vermelho.
— Aê Jegão, você que pintou isso aí?
— Cala a boca.
— Essa é bonita igual a Ariadne.
A onda de risos foi mais forte. Giovana, por outro lado, não desistia:
— Vamos ver uma pintura mais conhecida. Eu aposto que vocês já viram essa. Prazer, essa daqui é a Gioconda, ou a Monalisa. Do Leonardo da Vinci!
Agora foi Fábio quem se tornou motivo de piada. Gilvan malhou lá do fundo: “Aô, coração xonado!” Giovana continuava a não entender coisa alguma. Goianinho complementou:
— É verdade, Fabin, que você dá vinte na Monalisa?
Gisele repreendeu Gustavo à distância por estar se divertindo com aquela monstruosidade, mas foi em vão. Giovana percorreu o chão infértil da oitava A até sua mesa onde estava sua garrafa térmica. Decepcionada, encontrou forças para mais uma lâmina.
— Esse daqui se chama “Retrato de Mulher Dentro de Azul” e o pintor é um dos introvertidos mais fascinantes da arte e dono de uma das pinceladas mais expressivas do mundo. Alguém sabe o nome dele?
— Van Gogh — A voz de Bento, mesmo débil, conseguiu se elevar sobre os escombros e ser ouvida por Giovana que arregalou os olhos. A resposta correta emprestou uma aura messiânica a Bento. A sala ficou de repente silenciosa.
— Qual é o seu nome, meu filho?
— Bento — Foi Fábio que se antecipou pelo amigo.
— O que mais você sabe sobre o Van Gogh, Bento?
— Ah, nada. Tipo, eu vi um documentário na TV sobre ele. Ele teve uma vida muito difícil, parece que cortou a própria orelha e se matou num hotel na Holanda, mas deixou muitas pinturas famosas. A “Noite Estrelada” é incrível e tal.
— Ele deve ter se matado por causa do frio. Dizem que o frio deixa as pessoas depressivas - disse Goianinho, mostrando que ele também podia ser um homem de espírito.
(...)
Soou o sinal novamente. Era o fim da primeira metade do dia letivo.
— Bento, você me ajuda a levar o projetor até a sala dos professores?
Em situações normais, prestar aquela gentileza seria uma vitória pessoal e um privilégio para Bento que nunca compartilhava a presença de uma mulher tão bonita assim. Mas as circunstâncias passaram incólumes na sua consciência, mais ocupada em desviar da presença de Darlene no mapa do recreio. Bento nem conseguia, ao menos, concentrar-se nas perguntas que Giovana lhe endereçava:
— Han? Desculpa, professora.
— Eu falei que se tiver pesado me avisa! E chama de Giovana. Somos amigos agora.
— Tá tranquilo o peso.
No pátio do recreio, Bento tentou não cruzar o olhar com Fábio e Monalisa, Tales e Ariadne, Gilvan e Mayara que estavam próximos ao terceiro pinheiro antes da arquibancada. “Por que será que Darlene faltou?”
— Você lê alguma coisa em casa, Bento?
— Han? Um pouco. Eu gosto do Sidney Sheldon.
— Que legal. E você quer fazer faculdade de quê?
— Não sei. Pensei em fazer Psicologia.
— Então vamos ser colegas de profissão. Você sabe, Bento, que para ser psicólogo você precisa ter muita empatia pelo ser humano. Sabe aquela pessoa que sempre passa despercebido nos cantos, aquela pessoa que nunca recebe atenção, aquela pessoa que é sempre tida como estranha, marginal? Esse é o tipo de gente que me interessa.
— Acho que eu ia me dar bem porque eu gosto de ler a mente das pessoas. Gosto de decifrar os motivos reais por trás das máscaras sociais.
— Engraçado. Você fala de um jeito diferente do pessoal da sua idade. Dá pra ver que você carrega uma alma velha.
—Acho que é pela corcunda que eu vou ter de carregar esse negócio. Mas confesso que eu sonho em ir pra faculdade. Toda vez que eu passo na frente do campus grandão daquele jeito me dá um sentimento de liberdade que eu não tenho aqui na escola, nem em casa, sabe?
— Sei perfeitamente. Muito obrigado por ter me trazido o projetor. Pode deixar em cima daquele sofá.
Oito anos de Joaquim Saraiva e Bento nunca havia entrado na intimidade da sala dos professores. Era pior do que imaginava. Sentiu asco e pena de ver Lucinha, a professora de educação física, conversando com Cláudio que assentia com olhar opaco, bebendo café de um minúsculo copo plástico.
Antes que fosse embora, Giovana surpreendeu Bento com um panfleto: “toma”.
Era um folder dobrado em papel couché com algum texto e a foto de um senhor maduro de óculos redondos e paletó de tweed, sentado de pernas cruzadas num sofá de um confortável apartamento cheio de livros.
— Você já assistiu muitos filmes, não é? Então pronto. Vamos exibir sábado agora no auditório central da UFU do filme “Lolita” de Stanley Kubrick. Depois do filme, vou moderar uma discussão com esse senhor da foto, o Dionísio Pellegrini, professor emérito da USP e um gênio da psicanálise que estará vindo para Uberlândia especialmente para o nosso encontro. Muito gentil, o senhor Pellegrini.
Tudo aquilo não significava nada para a mente distraída de Bento, mas sentiu ser este um convite irrecusável:
— Uau, queria muito ouvir você falar, Giovana.
— Seria incrível se você fosse. Você vai ser meu convidado de honra. Se você precisar posso te dar carona.
Aquilo quase o jogou no chão. Qualquer um aceitaria a proposta da professora bonita e inteligente, mas por reflexo, ou uma espécie de cortesia covarde ele disse:
— Não precisa, minha mãe me leva — Sentiu-se imediatamente estúpido.
— Você que sabe. Até sábado então. Duas horas no auditório central, viu?
Com a memória do perfume de Giovana, Bento deixou a sala dos professores, cruzando a secretaria que levava ao pátio. Andou ereto e sem culpa, sentindo-se um pouco mais adulto do que todo mundo no recreio. Percebeu que seus problemas com Darlene, os amigos e a família eram, no final das contas, distrações passageiras e bestas, comparadas às inúmeras possibilidades que a vida real podia lhe mostrar todos os dias. Bento parou na porta da cantina, comprou uma coxinha e uma coca com seu próprio dinheiro e subiu as escadas, ignorando a multidão de crianças anônimas pelo caminho. Esperou o final do recreio numa sala de aula vazia, ocupada apenas por três gatos pingados: o caxias, o gordinho e a menina religiosa, aquelas pessoas que nunca recebem atenção, que sempre são tidas como estranhas, marginais.