Herberto Sales, do pior ao melhor romance

Para os poucos que ouviram falar de Herberto Sales, basta apenas a cartada do “ah! era um escritor regionalista, né?” e pronto, assunto encerrado

Para os poucos que ouviram falar de Herberto Sales, basta apenas a cartada do: “ah! era um escritor regionalista, né?” e pronto, assunto encerrado. Somente aqueles que se aventuraram para além de “Cascalho” descobriram em Herberto um dos mais ecléticos romancistas da nossa literatura e dono de um estilo camaleônico: machadianamente clássico na casca, mas subversivo e revolucionário em seu subsolo. Herberto é um desses raros exemplares de escritor capaz de renovar-se por completo a cada novo lançamento, produzindo clássicos em gêneros tão distintos entre si quanto o memorialismo, o romance de cavalaria, a sátira, a distopia e até a ficção científica.

A verdade é que não fosse a menção de um Olavo de Carvalho, ninguém mais se lembraria desse vulto do passado. Nem o peso do fardão imortal nem a companhia e estima dos melhores escritores da língua foram suficientes para espantar os fantasmas do abandono e do esquecimento que vem assombrando a sua biblioteca nesses últimos vinte e dois anos desde a sua morte. Ruim pra nós leitores, que para encontrarmos qualquer um de seus livros temos de buscar nos alfarrábios com a mesma obsessão e paciência com que garimpeiros cavaram um dia o chão de Andaraí, no coração da Chapada Diamantina e cidade natal desse diamante da literatura.

Como modesta homenagem ao autor do primeiro e original “Subsidiário”, aí vai uma lista de todos os seus romances “para adultos” ranqueados do pior ao melhor. Espero que seja de serventia.

13º - AS BOAS MÁS COMPANHIAS (1995)

Há sempre um quê de biografia em tudo que Herberto escreve. E nesta novela infanto-juvenil o narrador encarna um jovem alter-ego, Wolfgang, que passou de estudante exemplar no internato dos padres jesuítas a desvirtuador dos colegas e cabulador compulsivo de aulas quando enviado ao externato no Rio de Janeiro. Há excelentes personagens cômicos aqui, como o Professor Tomás, o decadente dono da pensão que que faz vista grossa para as safadezas de Wolfgang; mas, mesmo assim, (feito bronca de pai bravo) a voz e o estilo austero do narrador acaba esmagando uma possível jovialidade e movimento na trama. Para mim, o melhor desse romance-novela são mesmo as primeiras dez páginas, talvez as melhores de tudo que já li de Herberto, escritas com aquela inteligência e humor elegantíssimos e que deixariam Machado de Assis postumamente orgulhoso.

12º - A PORTA DE CHIFRE (1986)

Oito personagens nos acompanham ao longo de uma amazônia desértica e estéril, onde os homens vivem como refugiados em meio a robôs e homens-formiga; uma amazônia onde toda a água potável é extraída da lama aquática pela estatal “Água Brás” e que parece abastecer preferencialmente luxuosos congressos ambientais em hotéis cinco estrelas. Ainda que alguns elementos do sci-fi made in Brazil soem risíveis para os fãs do gênero, “A porta de Chifre” nos revela algo de valioso sobre a filosofia de vida de Herberto em trechos de iluminada sabedoria humanística, como quando um dos personagens, Cuevas, ao se deparar com Aanac -- uma sociedade secreta subterrânea que vive em comunhão permanente com a natureza -- conclui: “a sabedoria da gente de Aanac está em ter buscado, não nos direitos humanos, de que não precisa, mas nos deveres humanos, que dignificam e elevam a vida, a norma humana de viver”.

11º - A PROSTITUTA (1996)

Renascido homem da terra aos oitenta anos, o velho Herberto, no isolamento de sua propriedade em São Pedro da Aldeia, não tinha mais um público a se dirigir e estava livre para escrever apenas para si... para si e para Deus. Foi assim que talvez Herberto tenha feito as pazes com seu passado de jovem boêmio, revivendo com a pena da saudade um pedaço de sua vida em seu penúltimo romance. “A Prostituta”é um exercício de imaginação sensível -- e muitas vezes piegas, infelizmente -- da intimidade de uma das muitas meninas que migravam de outras partes do Nordeste para montar casa nos cabarés de Salvador. O romance é também uma reconstrução de uma cidade onde até os cassinos e cabarés mantinham certa elegância familiar, onde pianistas dedilhavam o tango, o foxtrot e o samba enquanto os distintos gentlemen dançavam com as mocinhas a uma distância segura antes de se deitarem com elas.

10º - NA RELVA DA TUA LEMBRANÇA (1988)

Tudo aqui nos lembra um cenário de um conto oriental: um grupo de velhinhos que se reúne debaixo das ruínas de uma igreja, numa cidadezinha cercada por um rio e montanhas com nomes de flores. Mas Herberto escreveu “Na Relva” como se pintasse um quadro impressionista, com lances de luzes e sombras: um a um, os velhinhos vão desaparecendo das ruas. O que dizem é que eles estavam sendo levados para o que parecia ser uma “vila para idosos”. Não há como saber a verdade, porque ninguém nota o desaparecimento dos velhinhos, que se tornaram indesejáveis e inúteis para a sociedade. “Na Relva” traz uma mensagem essencial aos dias de hoje: a de que o desprezo com os mais velhos (e o esquecimento da tradição) nos levará a uma queda moral em direção ao abismo das ditaduras totalitárias. Poderia ser uma novela inesquecível mas (ironicamente) faltam-lhe elementos da literatura e do cinema modernos que poderiam enfatizar o suspense, o terror e o drama dessa história que já tão bem mistura gêneros muito diferentes entre si.

9º - O REBANHO DO ÓDIO (1995)

O ponto negativo de “O Rebanho do Ódio” é o ponto negativo do estilo de Herberto como um todo. É a beleza opressora do estilo (porque sim, a beleza pode ser opressora) como quando o narrador, apaixonado pela própria voz, abafa a expressão dos personagens e produz ecos de retórica que se reproduzem feito mato e que sem dúvida se beneficiariam de uma boa capinagem. Há momentos de humor subversivo e sensual aqui e ali que dão relevo à paisagem literária; mas, no geral, a história da disputa da Salina de Aberladino Leão pelos herdeiros, e da luta do filho mais novo, Lucas, em manter a família unida enquanto tenta domar o próprio coração, é contada sobretudo com um imenso respeito o ritmo da vida na roça, lento e repetitivo, com aquela pasmaceira dos dias que se sucedem um após o outro.

8º - RIO DOS MORCEGOS (1993)

Em “Rio dos Morcegos”, Herberto realizou, pelo menos literariamente, aquele desejo de retorno à Pasárgada, o regresso à terra natal abandonada, que nunca esperamos que aconteça e que, mesmo assim, gostamos de cultivar secretamente, como um último recurso. Encarnado na pele de Marcelo, e misturando à ficção elementos biográficos, Herberto narra o amadurecimento do seu personagem, de adolescente irresponsável à líder de uma família dividida quando da morte do patriarca. Marcelo vai aprendendo “na marra” a como lidar com os diferentes interesses dentro e fora da propriedade, ao mesmo tempo que se engaja numa busca perigosa de sua própria identidade. O romance tem um quê de biografia imaginada, um exercício de imaginação daquilo que poderíamos ter sido e vivido.

7º - A HISTÓRIA NATURAL DE JESUS CRISTO (1998)

A última obra de Herberto (escrita enquanto tratava do câncer) é uma síntese entre as evidências históricas das parábolas bíblicas e a imaginação da própria mitologia cristã. O resultado é um livro enigmático que não pode ser encaixado sem constrangimento em nenhuma estante, afinal, não se trata de uma biografia, nem romance histórico, nem ficção. “A História Natural” é, no final do dia, uma espécie de confissão final de uma alma literária. Com ele, Herberto deu o acabamento definitivo à própria carreira e à sua própria vida. Escrevendo não com a urgência dos que correm para salvar a alma, mas com a serenidade dos que “dão passos decididos em direção ao mistério da eternidade”.

6º - EINSTEIN, O MINIGÊNIO (1983)

“Einstein, o Minigênio" é uma espécie de irmão siamês de “O Fruto do Vosso Ventre”, dois romances que tentam à sua maneira dar risada (mesmo que seja uma risada amarela, daqueles que riem pra não chorar) das idiotices diabólicas as quais a modernidade nos vêm empurrando. Aqui, a sátira recai sobre a horda de pseudo-intelectuais que infestam as universidades e que, pouco a pouco, vão transformando as áreas do conhecimento (sobretudo a pedagogia profissional) em jogos de discurso vazios de conteúdo, tudo em nome de uma pretensa aspiração científica. Falando assim, parece este ser o mais panfletário dos romances de Herberto, mas, na verdade, é o contrário: o romance é engraçadíssimo, leve como uma piada, ainda que piada com um gosto acre de verdade.

5º - CASCALHO (1944)

Quando Marques Rebelo revelou a Aurélio Buarque de Holanda que certo iniciante nas Letras havia queimado os originais de seu romance de estreia -- “Cascalho” -- este não pensou duas vezes e correu para salvar a única cópia do notável romance que até então se encontrava esquecido nos arquivos de um concurso da “Revista do Brasil”, a qual Holanda fora secretário. A intuição premonitória de Holanda não apenas impediu que o fogo transformasse em cinzas um clássico da literatura regional, mas, sem saber, estendeu a mão a um desacredito diamante bruto que mais tarde se tornaria uma das mais brilhantes jóias da nossa literatura. “Cascalho” é um dos maiores romances de estreia da nossa literatura, e impressiona pelo registro meticuloso do léxico regional e pela violência poética que movimenta a narrativa.

4º - OS PARECERES DO TEMPO (1984)

Antônio Policarpo Golfão e seu primo bastardo, Quincas Alçada, aportam na Bahia em busca de escravos para na sesmaria recém concedida por El Rei como recompensa pelos feitos do patriarca, o fidalgo Golfão. E para erguer a propriedade de seus sonhos, Policarpo terá de vencer uma natureza hostil e lidar com os vizinhos da fazenda: padres jesuítas, traficantes de escravos e índios Maracás. Policarpo dará sua própria vida se possível para finalmente ver erguida ao lado de seu inseparável ipê, a pequena capela de pedra, símbolo da sua maior obra em vida. Assim como em "Os Tambores de São Luís" de Josué Montello, Herberto também deu forma aos feitos heróicos que levaram à formação da sociedade brasileira -- em especial, no caso de “Os Pareceres…” , à saga heroica da povoação nos dois séculos e meio que antecedem a trama de Montello -- Juntos, esses dois romances são indispensáveis para a compreensão do nosso passado, mais eficientes que a leitura de cem livros de história do Brasil.

3º - ALÉM DOS MARIMBUS (1961)

O segundo romance de Herberto Sales não é apenas a "narrativa da viagem que Jenner Nogueira Chaves às matas de Andaraí para compra de uma fazenda onde extrair madeiras". É uma descrição sobre os tipos humanos que fizeram o negócio de madeiras na Bahia: fazendeiros, alguns decadentes, outros prósperos, ainda que capazes de tudo pela terra e madeira dos outros. "Marimbus" é também um testemunho do sacrifício de gente miserável e que contribuiu às cegas, e não raro à custa da própria vida, para o surgimento de um nova indústria numa cidade amaldiçoada pelo garimpo. E se alguns ecos de retórica nos soam lisonjeiros demais para descrever um ambiente de peões, pauzeiros e fazendeiros; é justamente a elegância, juntamente com a exatidão da cartografia narrativa que elevam "Marimbus" como um dos melhores romances da safra regional.

2º - O FRUTO DO VOSSO VENTRE (1976)

Durante as décadas de 70 e 80, no auge do culto à tecnocracia do regime militar, Herberto Sales deixou as redações para ganhar o pão de cada dia na burocracia estatal, mais precisamente no Instituto Nacional do Livro. E foi na rotina enlouquecedora de Brasília, nos intervalos entre reuniões e despachos inúteis, que Herberto aprendeu a emular a linguagem tecno-burocrática com que iria compor "O Fruto do Vosso Ventre", uma distopia-satírica sobre os excessos do planejamento estatal. Escrito em linguagem burocrática, intencionalmente ilegível, Herberto usa, de certa forma, o mesmo argumento de "1984" ao ilustrar como a corrupção da moral tem início sempre na corrupção e dessensibilização no emprego da linguagem. Não é uma obra-prima como a distopia de Orwell, sem dúvida; mas é um romance único em suas intenções e uma amostra da habilidade de Herberto Sales em subverter a linguagem em favor da ideia.

1º - DADOS BIOGRÁFICOS DO FINADO MARCELINO (1965)

Num país de vocações perdidas, a mera existência de um homem bem sucedido em todos os níveis (intelectual, financeiro e de costumes) gera toda sorte de confusões mentais naqueles que dependem de sua luz alheia para viverem o próprio sonho. Esse foi o caso do tio Marcelino, personagem fictício, mas baseado num homem de carne e osso, tio de Herberto Sales e que o havia acolhido em sua mansão quando o futuro escritor fora enviado a Salvador para estudar no famoso colégio Antônio Vieira. Marcelino era uma figura mítica na família. Ele havia abandonado de charrete a cidadezinha de Andaraí para mais tarde construir na capital o "Trianon", uma das primeiras lojas de importados da Bahia, protótipo das atuais lojas de departamento, e que, na época, servia para atualizar a capital das principais novidades da Europa. Mais importante que os fatos, a pesquisa biográfica de Herberto Sales serve como uma investigação da psique coletiva brasileira. À medida que o fantasma de Marcelino vai se dissipando, o leitor se vê do lado os remanescentes, os vivos -- João Félix, tia Edite, Lemos, Costa Pereira, Vilela -- personagens brasileiríssimos, exemplos do estranhamento que nós brasileiros sentimos quando confrontados com uma personalidade tão notável como Marcelino foi, misturando sempre à amizade, doses de inveja e de dependência sentimental. O romance é sutil demais para aparecer nas listas de melhores de todos os tempos, mas pudera, “Marcelino” nasceu mesmo apenas para cumprir a vocação das grandes obras do passado: o esquecimento.