Capítulo 5 - “Lúcido, Tragicamente Lúcido”

Quinto capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

Sentado na privada, Bento tentava manter a concentração enquanto seu corpo desidratava pelas axilas na forma de gotas de suor que deslizavam pelas dobrinhas da barriga. Gotas de chuva também passavam livremente por entre um basculante sem vidros, molhando o piso e a ponta do seu tênis cor de cimento. Tirou então a camisa e a pendurou na pia. Fechou os olhos para localizar onde Darlene estaria em meio a massa de vozes indistintas pela cozinha, o corredor até a sala, mas só reconheceu a risada estralada de Monalisa, rindo de uma besteira qualquer de Fábio. Não dava para ficar tanto tempo assim trancado no banheiro, era preciso pensar numa saída, a menos ridícula, por favor. “Que caralho!”. Nem quase dois litros de batida de abacaxi (e que se pudesse Bento teria injetado na veia e não via oral) conseguiu mantê-lo bêbado por muito tempo. Estava lúcido, tragicamente lúcido, o bastante para sentir a úlcera que lhe trazia um gosto de fel na boca.
Quem diria que o primeiro encontro entre Bento e Darlene fora da escola seria aqui, na casa do Gilvan, numa orgiazinha adolescente de uma tarde melosa de sábado? Talvez fosse verdade o que se dizia na escola do oitavo C, elas gostavam mesmo era de meter. Talvez toda mulher tinha um pouco de oitavo C. “Maldita Darlene, ridícula Darlene!” E desde quando ela era dada a essas coisas? Que ironia, Bento! Do que adiantou todo o sacrifício do amor obediente e calado? Logo agora, quando a brasa estava se apagando em seu peito, ela lhe aparece assim, em meio as mais bestas e esquecíveis meninas da escola, se oferecendo como carne de segunda num balcão de um açougue barateiro.
— Cadê o outro amigo de vocês?
— Pela demora ele deve tá cagando!
Bento não queria que os amigos o vissem perto dela. Isso não. Eles já o humilharam por tão menos, o que seriam capazes de fazer agora? Melhor dar um tempo pra ver se eles dispersam, mas não tempo demais que dê na cara que ele estava se escondendo deles, ou dela.
Uma dúvida ainda precisava ser solucionada. Por acaso sabia Darlene que Bento estaria na casa de Gilvan? Das duas, uma: ou ela estava aqui por vontade própria, ou ela não queria vir, mas se deixou ser levada pela conversa de uma dessas meninas estúpidas. De qualquer forma, as duas hipóteses eram deprimentes. Ainda que ele estivesse associado em segundo ou terceiro grau à rede de amizades do mais popular galã da escola, Gilvan não era um dos seus maiores amigos. Mayara sabia que viriam três pessoas para cá e talvez até soubesse que Bento era um deles, mas era impossível que ela soubesse de seu histórico interesse por Darlene. Será que Darlene escolheu estar aqui? Nesse caso ainda havia uma chance — e Bento tentou se convencer por um segundo — de que ela, com essa jogada, estivesse mandando uma mensagem bem ao seu estilo criptografado, como se dissesse: “Quem? Ah, o Bento? Pode ser”. Ah! só Deus sabe que isso já seria bom demais da conta!
No segundo seguinte, porém, a mente oscilava feito um pêndulo até o extremo oposto: talvez Darlene não soubesse ou não tivesse se dado conta que era Bento, o quietinho, quem lhe fora prometido no bacanal de sábado. Nesse caso, ela devia estar agora decepcionada, talvez até chore de raiva ou de decepção ao vê-lo. Pior! Talvez ela estivesse aqui com interesse em outra pessoa, provavelmente Gilvan. Meu Deus! É isso! É provável que ela esteja agora se mordendo de inveja da Mayara por ela estar com Gilvan no quarto. Uau...se fosse assim, era game over. Só restava retirar-se cavalheiramente e bater o portão da rua sem alarde. Vazar o mais rápido possível e não piorar o que por si só já era ridículo.
Se a mente de Bento estava excitada com tanta dialética, nada restava para animar o seu baixo ventre. Ele atiçava o pequeno pênis flácido com movimentos repetitivos tentando extrair em vão da massa amorfa de pele algum sinal de viço. Depois de muitas repetições ele cansou, e num momento inédito de intimidade com o próprio corpo, puxou com delicadeza a pele que acompanha o prepúcio e expôs para si mesmo, com o asco de quem inspeciona um ferimento, a sua pontiaguda glande, o troféu invertido de seu fracasso como homem.
Um ronco de porta desponta no corredor. Parece que Fábio está dizendo alguma coisa:
— Gente, licença que a gente vai pegar esse ventilador aqui. Mas podem ficar tranquilos que o grandão fica com vocês. Agora, ô Ariadne: toma cuidado aí com o Tales porque ele tem essa cara de bobo, mas na verdade ele tem ó, um pintinho meio grande...
— Cala a boca, viado!
PUF! uma porta se fechou.
Okay, parece que os dois quartos já estão tomados. Agora eram só Tales, Ariadne e Darlene, além de uma voz que parecia ser a do Raul Gil, misturada ao chiado da chuva.
Como se o amigo lesse a mente de Bento a cômodos de distância, Tales inventou um pretexto qualquer para levar Ariadne até a cozinha. A confirmação se deu na forma da voz crescente do casalzinho passando pelo corredor.
— Eu não sei se você já viu a Feiticeira, você gosta de cachorro, Ari?
— Eu amo.
Era o sinal. Bento ergueu-se, vestiu a bermuda e a camisa empapada de suor. Puxou a descarga. Olhou-se no pequeno espelho quadrado e fez o que pôde para restaurar a aparência sadia do início da manhã. Lavou as mãos com sabonete, limpou o suor com a toalha de rosto e com um pedaço de papel higiênico, secou as axilas. Saiu. E foi com um olhar de agradecimento que Bento olhou nos olhos de Tales, enquanto este afagava a cabeça molhada da chuva da vira-lata Feiticeira, ganhando assim definitivamente a simpatia de Ariadne.
Bento seguiu então pelo corredor e um trovão rasgou o céu.
Embora não fosse noite, a sala da casa de Gilvan já estava escura e a luz da tela engolia todo o rosto branco da menina que se sentava torta, com o cotovelo nos braços do sofá e as mãos contra as bochechas. Bento se esforçou ao máximo para fingir naturalidade ao entrar pela sala:
— Uai, é você? Não sabia que você estava aqui!
— Oi, Bento — respondeu, sem mexer a cabeça.
— Que que você tá fazendo? Posso sentar?
— Vendo TV, uai. Senta.
— E o que que tá passando? — Bento tremia.
— Nada de bom.
E lá estava ela. Darlene calçava uns tamancos baratos, uma saia jeans, uma blusa e uma tiara roxa, mas só. Pareciam até ser roupas de ficar em casa. Não parecia ter se esforçado muito para parecer bem vestida.
— Olha esse Raul Gil aí. Desde que eu era criança eu lembro de ele gritando com aquela voz esganiçada: “Vamos aplaudiiir”. Minha avó que ama ele. Não acredito que ainda passa isso. Acho que vai passar pra sempre.
— Hm-hmm, eu acho escroto.
— E por que você não foi na festa do Goianinho? A gente tava lá e tinha um monte de gente da sua sala. A Raíssa tava lá, bebassa. Acho que iam ter duas bandas, então ainda dá tempo de vocês irem. Só tem que...
— Eu não gosto de festa, não.
— Ah, mas é festa da escola, né? Tem que ir.
— Eu não. Esse povo vai lá só pra pagar mico. E por que você acha que a Mayara é minha amiga?
— Uai — Bento respirou fundo e sentiu um cheiro de cigarro no ar escapando de um dos quartos.
Feiticeira latiu da cozinha. Darlene, que estava imóvel, passou a olhar de vez em quando pela a janela como se vigiasse alguém que pudesse vê-la da rua. Chovia menos naquele momento.
Bento não pôde deixar de inspecionar a sala de Gilvan por um instante. Era definitivamente uma típica casa de homens, simples, sem adornos além do ventilador. Havia focos de mofo nas paredes, o sofá era antigo e rasgado, alguns tacos do piso estavam soltos e revirados. Ao lado da TV, sobre o rack de madeira, um telefone fixo; na parte de baixo, um porta-CDs de torre com alguns exemplares do Raça Negra, Julio Iglesias e Guns n’ Roses. “Nossa, como que ele conseguia ser pegador assim?”
Lembrou que Darlene estava logo ao seu lado:
— Ei, e você vai no Camaru?
O rosto dela se iluminou um pouco, graças a Deus! — Ah, eu não sei. Eu nem gosto tanto, mas a minha mãe escuta tanto que até queria ir no show do Bruno e Marrone. Mas sei lá, eu não dou certo nesses shows, não.
— Por quê?
— Tenho medo de ser pisoteada. E o pessoal falou que tem muito roubo. Você vai?
— Acho que sim, meu irmão quer ir. Se eu for eu vou com ele. Mas, olha só, eu também sou baixinho, mas eu tenho uma estratégia. O que eu faço é chegar cedo, aí eu fico daquele lado direito do palco que é mais altinho, perto do balão da rádio. Fico lá e não saio mais. O problema é que lá dá muito morcego de noite.
— E você gosta de sertanejo?
— Não. Mas pra isso eu tenho outra técnica. Eu finjo que a banda tá tocando outra música que toca só na minha cabeça, daí eu posso assistir a qualquer show. Uso muito essa técnica nas aulas também.
— Nossa. Que loucura. Mas por que você ainda vai nesses shows se você não gosta?
— Ah, sei lá. Quase nunca tem show aqui em Uberlândia. É a nossa chance de sair de casa, fazer uma coisa diferente, né? E às vezes, quando tem muita gente, você encontra dinheiro no chão.
— Isso é bom, né?
— Se é! Se você for, Darlene. A gente fica lá no altinho. Só que tem que chegar cedo.
Darlene ensaiou um sorriso e olhou pela primeira vez nos olhos de Bento, e, por Deus! Eram ainda os mesmos olhos da terceira série. Castanhos e profundos. Sentiu-se confiante. Talvez houvesse mesmo um caminho até o coração da menina.
— Quer mudar de canal, Bento?
— Não, tá tranquilo.
Um barulho exibicionista, talvez um rangido de cama, fez-se ouvido do quarto ao lado. Dessa vez foi Darlene que rompeu o silêncio constrangedor ao dizer, meneando a cabeça:
— Você não devia estar aqui, Bento.
— Como assim?
— Você não devia estar aqui.
— ?
— Você não devia andar com esses meninos, não. Eles são podres, elas também. Todo mundo aqui é podre.
— É, quer dizer, eu sei — e tentou falar o mais baixo que pôde — eles não são as pessoas mais sofisticadas do mundo, não. Nem as mais confiáveis também, eu sei. Tipo...um tempo atrás eu até fiquei meio bolado achando que os caras só andavam comigo pra rir de mim. Pensei até em parar de falar com eles. Tentei voltar pra casa por outro caminho. Mas é difícil, no dia seguinte a gente acabava se encontrando de novo e tava tudo certo. E eu também não sou perfeito, não. Eu sei que eu sou chato.
— Então a gente tem isso em comum.
— O quê?
— Eu também sou chata.
— Não, não! E eu acho que eu quis dizer é que, no final das contas, temos os amigos que merecemos, ou sei lá, os que estão do nosso lado. O Fábio mesmo, que é daquele jeito, já me surpreendeu muito…
— Eu não sei. A gente tem que sempre desconfiar das pessoas. Uma coisa que eu aprendi é que amizade, família, é tudo passageiro. É igual a nuvem no céu, faz e desfaz com o tempo.
— E às vezes cai um toró, né?
— Se a gente não aprender a se virar sozinho nessa vida, bau-bau, você fica brinquedo na mão dos outros.
— Você está falando de alguém em específico? Da...— Bento apontou com o queixo em direção à porta fechada onde Mayara estava.
— Não, eu já falei que ela não é minha amiga.
— É da Gisele, então?
— A Gisele foi muito minha amiga, mas é aquela coisa, ela pertence a outro mundo. A mãe dela não é lavadeira de roupa. Normal.
— Eu gosto muito do Gustavo que namora ela. — É, ele é legal sim.
— Mas não tem ninguém que você confia? Tipo, ninguém?
— Não sei, acho que a única pessoa que eu confiei até hoje foi o meu irmão.
— Sim! Lembro dele de bicicleta na porta da escola. E onde ele tá agora?
— Não sei.
Bento tentou então testar Darlene:
— O Gilvan também é um cara incrível, né?…
— Aham. Mas infelizmente fica se rebaixando quando anda com esse povo vileno que só pensar em beber. E você não pode cair nessa, por favor…
— Não, pode deixar. E você pode confiar em mim.
— ...
— É engraçado, Darlene. Só de conversar com você um pouquinho, e olha que a gente se conhece o quê? Desde a terceira série, né? Eu consigo ver que você é uma pessoa diferente. Você é melhor que essas meninas mesmo.
— Eu não sou melhor que ninguém. Nem quero ser.
— Eu acho que o que eu quero dizer é que é raro encontrar alguém que destoe da média. E quando a gente encontra, a gente tem que tentar manter essa pessoa perto da gente de todo jeito.
— Pára com isso — Darlene voltou a olhar fixamente para a TV.
— Darlene, é...eu não sei se você se lembra de quando a gente era mais jovem (Caralho, o que eu tô falando?) de quando a gente ia fazer aquele teatrinho que a professora Edna pediu para a gente encenar na quinta série...o que não aconteceu.
— Hm-hmm. Coitada da tia Edna, ela era meio jovem ainda. Mas pelo menos todo mundo passou direto na matéria dela.
— Pois é, pois é. Cê sabe que a gente era do mesmo grupo, né? E eu escrevi um papel especialmente para você com um monte de falas, e você aparecia em todas as cenas.
— Detesto falar em público.
— Sério? Isso é incrível porque eu sempre me perguntei o porquê de você ser tão quietinha. Tipo, eu também sou tímido, mas eu acho que eu nunca ouvi a sua voz até agora e você tem uma voz linda.
— Não, não. Obrigado, mas não.
— É...o que eu queria te falar é que, com o perdão da palavra, eu estava morrendo de vontade de fazer aquela peça, tava doido pra chegar o dia dos ensaios.
Darlene não disse nada, antevendo os rumos da conversa.
— Sabe por quê?
— ...
— Para poder ficar perto de você.
— Ah não. Pára...
—Mas é sério. Fiquei triste porque não aconteceu. E depois você passou pra outra turma e foi sumindo...
O rosto de Darlene estava mais emburrado e mais vermelho. Olhou de novo pela janela. Das conversas e dos latidos de Feiticeira na cozinha fez um silêncio total, sinal de que Tales e Ariadne finalmente se atracaram numa longa e duradoura pegação. Bom para eles. O problema é que, naquele momento, ficou escancarado o deslocamento dos dois adolescentes na sala. A situação estava próxima ao ridículo e pedia seu desfecho final ali mesmo. Bento olhou para o chão de taco, enfiou a mão no bolso, segurou a camisinha como um talismã e se forçou a adotar uma postura ofensiva.
“Que se foda” Bento pulou de uma poltrona até o sofá, ficando ao lado de Darlene. Ela, por sua vez, parecia ter se afastado um centímetro.
— Darlene, eu vou te falar de uma vez e eu vou falar rápido antes que eu me arrependa. Acho que já me arrependi, inclusive. Desde o momento que eu te vi quando quando a gente era bem pequeno, lá na sala da Cilene, eu senti uma coisa que eu nunca senti por ninguém desde então…
— Ah, não, pára Bento.
— Mas é verdade. E eu nutri esse sentimento de graça, porque nunca esperei que você me retribuísse, só porque eu gostava de pensar em você. Juro que tentava pensar em outras coisas, fingi que gostava de outra pessoa, mas não tinha jeito. Eu sempre gostei de você. Então, o que eu finalmente queria te dizer era que…
— Por favor, Bento não fala isso, por favor. Você não sabe o que você tá falando...
— ...que eu te amo, muito.
— Não fala isso.
— E que eu seria a pessoa mais feliz desse mundo se eu ficasse com você hoje.
— Bento — ela cobriu os olhos com a mão mas não conseguiu esconder dois filetes de lágrima salgada que desceram lentamente pelas bochechas — Eu não sou essa coisa que você acha que eu sou. Pára com isso, eu não sou ninguém, não. Você nem me conhece direito e a gente não é mais criança.
— Darlene, você quer ficar comigo?
Ela tentou afastar Bento com a mão:
— Não quero e não quero que você me procure na escola. Não quero que você fale pra ninguém que falou comigo sobre isso. Eu não posso e não quero!
— Desculpa se eu te ofendi, mas é que eu precisava falar isso.
— Velho, não era pra você estar aqui.
Bento tomou consciência do quão ridícula era aquela cena, e sentiu que parte disso era culpa dela:
— É por causa do Gilvan? Você quer ficar com ele?
— Ah, não…
— Tales me falou que você era afim dele.
— Você não sabe o que você tá falando.
— Pode falar que você queria ser a Mayara e estar com ele agora no quarto, né?
— Eu quero ir embora, eu quero ir embora agora! Darlene levantou-se e saiu pelo corredor. É isso, estava feito. Bento ainda ficaria alguns segundos sem pensar em nada, mas pensou ter visto a maçaneta do quarto de Gilvan se mexer, e fugiu sem se despedir de ninguém, numa fuga de três passos até o portão.
Por incrível que pareça, Bento não corria desolado, mas aliviado pelas calçadas da rua Caetés. E a recusa definitiva, talvez não de forma tão dilacerante, já lhe era esperado e por isso não lhe doía na alma. Mesmo assim ele chorou uma lágrima que não era de tristeza, mas de vazio, a mesma que choram os reféns libertados que não sabem mais viver sem seus próprios sequestradores. Tudo seria diferente daqui para frente.
Os atalhos por entre as ruas do Saraiva foram esquecidos até que se sentisse pronto para voltar para casa. E assim, descobrindo novas ruas em seu velho bairro, a tarde morria para um Bento cada vez mais molhado, enquanto, do outro lado da cidade, a festa no Morada da Colina continuava sem ele. Melhor assim, sua presença não era imprescindível. Eles que se divirtam por lá.
A certa altura, quando a chuva rareou, Bento comprou um saco inteiro de pães de queijo na Padaria Saborosa da Avenida Duque de Caxias. Não se sentindo merecedor de estar ao lado dos clientes, nem de molhar a mesa limpa da padaria, Bento andou um pouquinho mais e se sentou num dos bancos da Praça Vasco Gifone. Comeu um pão de queijo atrás do outro olhando para a cruz de pedras brancas da Paróquia São Pedro. Ficou ali por um bom tempo, e quando se sentiu satisfeito, deixou o saco, ainda com um resto de pães de queijo, no coreto da praça próximo a um homem que dormia ao lado de um violão.
Bento arrastou o portão de sua casa. Estranhamente o carro de Célia não estava lá, em seu lugar havia não uma, mas duas motos. A porta estava destrancada. Na sala, uma cena interessante: a estante estava fora do lugar e Beethoven, sentado no chão ao lado de uma caixa de ferramentas, brincava de desmontar um estranho aparelho preto. Atrás dele, um total desconhecido esperava com o braço estendido sobre o encosto do sofá, ao lado de um capacete de moto.
Beethoven desviou os olhos do aparelho:
— Pegou chuva?
— Ah, pouquinho, né? Opa!
— Opa! — disse o desconhecido com cara de bêbado.
— Por que a estante tá assim?
— Ah, isso aí é um negócio que eu tô tentando dar um jeito...mas tá ôsso.
— Eu falei pra ele, tá faltando o adaptador de garfo mas ele num escuta — Interveio o amigo de Beethoven.
— Calma, eu sei o que eu tô fazendo.
Célia acenou para Bento da cozinha fazendo o sinal de silêncio. Lá ela o inteirou de tudo:
— Não fica fazendo perguntas hoje, não. Seu irmão apareceu com uma dessas antenas do Paraguai, mas agora a TV à cabo parece que não quer pegar mais. — E cadê o Vânio?
— Pois é, seu pai ficou nervoso, pegou o carro e saiu. Até agora não voltou.
— Que bosta.
— E como que foi lá? Por que você tá molhado?
— Chato. Eu vou deitar.
— Vai não. Vai tomar banho primeiro. Tem rosquinha se você quiser depois.
Limpo e bem alimentado. Bento, deitou-se em sua cama e apagou as luzes. Pensou que talvez aquele seria um bom momento para morrer em paz. Realmente, não há lugar como o lar.