Os Vultos de Ontem

Você não se pergunta às vezes, Seu Régis, porque a gente faz isso, quer dizer, qual o sentido disso tudo, como nós chegamos até aqui?

— Hmm, sorry. Mister Regis?
— Do you speak Portuguese?
Yeah! I mean, falo sim. Posso entrar?
Entra e fecha a porta, por favor. Você deve ser o Beethoven, né? O senhor Zao deve ter te revistado na entrada. Você me desculpa, mas o senhor Zao é assim mesmo, é só um procedimento padrão. Você entende, né? Senta aí. Você quer uma água, um café?
— Água, eu vou querer água, sim. É...acho que meu pai deve ter falado com você por esses dias.
— Seu pai falou comigo sim, ele me falou um pouco da sua situação. Olha a sua água. Você está com a entrada?
— Uhum, no envelope. Tá aqui ó.
— Ok, Beethoven, vamos lá. Uhm, meu nome é Régis, mas o pessoal aqui me chama de Regis ou Reggie; mas, dependendo da situação, eu posso ser Mark, às vezes eu sou Andrew, Martin, Juan Carlos, Pablo. You name it. Eu tenho vários “alias”, por assim dizer. E agora que eu já te disse isso eu tenho que lhe informar que o meu nome não é Régis. Eu te disse o meu nome mas é como se eu não tivesse dito. Na verdade, você não me conheceu. Eu preciso que você esqueça do meu rosto. Finja que você não esteve nesse prédio, nessa sala.
— Entendo. Posso continuar te chamando de Régis?
— Pode.
— E como que ele tava no telefone?
Quem, seu pai? Ele me pareceu bem, na medida do que se pode estar no lugar dele. Pelo menos ele não se emocionou, o que é muito comum sempre quando atendo pais e mães, na posição em que eles estão. Enfim, seu pai me pareceu resignado, apesar de tudo. Uhm, olha meu filho, só pra deixar claro, eu não pego mais esses tipos de jobs, you know? Sobretudo depois do nine-eleven. Os procedimentos mudaram, tudo mudou! De início eu não ia pegar, mas, quando conversei com seu pai, não teve como, eu me vi nele, sabe? Ele é do interior que nem eu, ele de Uberlândia, eu de Teófilo Otoni, mais pra cima. Ele é atleticano também. Senti um bond entre nós dois. Então, considere-se um sortudo por eu estar pegando isso e pelos pais que você tem.
— Sim, eu sei e agradeço muito o que o senhor tá fazendo por mim e pela minha família, Dr. Régis. Peço até desculpas por essa loucura toda. É que...tudo isso tá sendo muito rápido e muito louco. Tipo, eu saí do hospital não tem nem três dias, depois de ficar sei-lá-quanto-tempo de cama e sem saber se eu ia voltar a andar ou se ia ficar pra sempre de cadeira de rodas. E eu não quero ser ingrato, Dr Régis, eu agradeço a Deus por eu poder vir até o seu escritório a pé. Mas, quando eu acho que as coisas estão indo bem, eu acordo um belo dia no hospital com um desses caras no pé da cama. Primeiro achei que o cara era mórmom por causa da camisa branca e da gravata vermelha, salmão, sei lá. Depois ele me veio com um tal de city attorney, me dizendo um negócio lá de court hearing do num sei o quê, prosecution de sei lá o quê. Dr. Régis, eu juro pro senhor que eu assinei o documento dele sem saber se eu tava acordado ou se eu tava sonhando. Eu juro que até agora eu não sei.
— Foi bom você ter trazido isso, porque tem outra coisa que eu tenho que te falar. Eu não sei o que você fez. Não sei se você tá vendendo ou roubando, se tá metido com prostitution or kidnapping. I couldn’t care less. Na verdade, acho que quanto menos eu souber e quanto menos você falar sobre, maiores as chances de isso ser bem sucedido. Seus pais já pagaram a primeira remessa, então, se eu fosse você, eu já ia me preparando. Já vai se despedindo da namoradinha se tiver, pede contas do seu trabalho, resolva o que tiver de resolver. Só tenta não dormir em casa hoje nem nos próximos dias. Vai pra casa de um amigo, porque aqui, meu filho, aqui não é o Brasil. Não dá pra apostar na prescrição, isso não existe. Se for expedida qualquer coisa você roda! E é tudo segredo de justiça. Não tem como eu pegar o telefone e perguntar pra um advogado como anda o processo. This is the real deal, you know? Pega essa folha que tá saindo aí da impressora, por favor…
— Que é isso?
— Isso é você. Quer dizer, isso é você pelo menos até a sua viagem. A partir de agora você é esse cara aí. Você é o Sérgio, e você está voltando dos Estados Unidos porque expirou o seu convênio com a University of Florida, curso de inglês, seis meses. É bom você memorizar tudo que tá aí. Já começou a pagar o hospital bill? Não? É bom, viu. Pelo menos dê uma entrada pra ir colaborando. Isso é pra Justiça ver que você é uma pessoa proba.
— Você acha que o meu nome real pode ajudar?
— Oi?
— Beethoven, meu nome é em inglês.
Negativo. Já te falei que para a imigração, para qualquer efeito, Beethoven não existe. Eu, inclusive, só vou te chamar de Sérgio a partir de agora. Além disso, Beethoven é de origem germânica. Entendido, Sérgio?
— Entendido. Ahn...meu pai falou alguma coisa da minha mãe e do meu irmão, Seu Régis?
— Sérgio, eu acho que você não entendeu o tamanho da encrenca que você tá dentro. Você tem noção que seu voo está saindo neste sábado já? Já pensou como que você vai fazer pra chegar no Texas? São mais de 1300 milhas. Se você conseguir sair, você resolve essa treta no Brasil, mas aqui é cana, meu filho! Caralho!...já tô me enrolando demais nesse negócio. You have a wire or somethin’?
— Não, não. Eu juro. É que há muito tempo eu não falo com eles.
— Sérgio, você tem que se concentrar. No phones, no calls, no nothing! Se você não se ajudar, eu não posso te ajudar, okay? Espera só um pouquinho que eu vou mandar o e-mail agora pro cara que vai te dar o passaporte.
— Beleza...Essa menina é a sua filha?
— Huh?
— Essa menina da foto, com o vestido de formatura é a sua filha?
— Um-hmm.
— Ela mora aqui ou no Brasil?
— Por quê?
— Por nada...Nossa senhora, Seu Régis, desculpa. Eu não sei o que eu tô falando mais.
— Não, desculpa eu. Que nem eu te falei, eu sou pai também e eu posso escrever um livro sobre sofrimento. A gente faz umas besteiras na vida mesmo, é normal. Aqui o cara tem que andar na linha, se não é, pá! Restraining Order. Mas acho que, depois de uma dessa, a gente não pode ficar se remoendo. Não é produtivo, entende? Não é, como se diz? ... that's not the right mindset. É isso! Você precisa estar com o mindset certo. Se você tem um problema, você tem que resolver. Simple as that! Lê depois o livro desse cara do poster aí, Napoleon Hill. É ótimo!
— O pior é que eu nem queria sair naquele dia, Seu Régis. Eu juro que eu ia direto pra casa. Eu não sei o que foi que me deu pra entrar no carro. Quando fui ver já tava no banco de trás, com o meu roomate dirigindo e a namorada dele do lado.
— Um-hmm.
— Passamos na casa do um colega dele lá em Fair Gate e voltamos até aquele Wendy’s da Pompano Beach, até que o desgraçado do mexicano esquisito veio com aquela porra lá. Todo mundo ficou de boa em casa, tomando Buds, ouvindo música, só a menina que passou mal, começou a vomitar e tudo mais. “Molly’s makin’ feel good, Molly’s makin’ feel good”. Todo mundo zoando e só eu vi o jeito que a menina tava, parecendo um zumbi. Eu tinha que fazer uma coisa, seu Régis, mas ninguém tava em condições de dirigir, aí eu tive que pegar o carro do cara, pra levar os dois pra emergência lá na Broward. Só que eu nem bebo, seu Régis. Eu tomo remédio controlado, eu nem bebo!
— E aí?
— E aí que, de repente, eu não sabia dizer qual era o limite entre o meu braço, o volante e a pista e a luz do poste.
— Uhum...E aí?
— A partir daí eu não lembro de mais nada. — E a menina?
— ...Não.
— E o cara?
— Tá lá, em coma. O engraçado é que, se eu fechar os olhos, Seu Régis, eu sinto até a perna dela, a parte entre a saia e a bota roçando na minha calça quando ela desmaiou no sofá. Ela era linda, linda mesmo. Eu sei até qual era o perfume da Victoria Secret que ela tava usando na noite, mas não lembro de mais nada depois que eu peguei no volante.
— Beethoven, Sérgio. Mandei o e-mail pro cara. Agora é com você. Aconteça o que acontecer, não me liga e não liga pra ninguém, okay? Vê se arruma um desses pré-pagos que se compra em qualquer banca. O seu voo sai do San Antonio sábado agora, o senhor Zao vai te dar o endereço do cara e ele vai te explicar tudo. Mas você tem que passar lá agora. Deixa eu abrir a porta pra você. Outra coisa, você não pode sair pela frente. Você vai ter que dar a volta, pegar a escada e sair pelos fundos da loja. Passa em casa e pega só o essencial. Toma uma aspirina quando você tiver no saguão. lembra do mindset, gotta have the right mindset! Vai dar certo!
— Se Deus quiser, se Deus quiser...Uhm, seu Regis?
— Fala, meu filho.
— Você às vezes não tem a impressão de que tudo isso é um sonho, uma pegadinha, e que se a gente se debater um pouco a gente consegue acordar desse pesadelo? Você não se pergunta às vezes, Seu Régis, porque a gente faz isso, quer dizer, qual o sentido disso tudo, como nós chegamos até aqui?...
— Meu filho, eu penso nisso todos os dias.