Capítulo 7 - "O Segredo da Casa Amarela"

Sétimo capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

As tardes em casa após a escola, antes solitárias mas confortáveis, não eram as mesmas desde que Beethoven voltou para o Brasil. Faltava ar para todos quando o Vânio e o irmão se atracavam e a presença de uma testemunha parecia apenas intensificar a sanha de exposição de ambos os lados.
Bento aplicou o mínimo de força necessária para movimentar o portão, amortecendo o quanto pôde o rangido da lata contra as roldanas. Desviou-se do retrovisor da moto estacionada pela diagonal na garagem e entrou. Esperava ver Beethoven debochadamente espalhado pelo sofá de casa, mas surpreendeu-se ao encontrar uma sala vazia. A copa também estava imaculada. Até o computador hibernava debaixo da capa plástica de proteção, sinal que Vânio não tinha lhe encostado o dedo. Acreditando estar sozinho, entrou na cozinha confiante e com fome:
— Você falou pra eles?
— Nos’senhora, Beethoven!...Eles quem?
— Seus amigos.
— Sobre o quê?
— Sobre os tênis.
— Ah...falei não, foi mal. Esqueci de levar os folders lá. Amanhã eu levo, te juro. Cadê o Vânio?
— Sei lá. Você bebe café?
— Eca.
Bento deitou na mesa de mármore seu fichário estofado com livros didáticos e uma antiquada edição de “Lolita”, livro que, talvez por um descuido da escola, estava disponível para aluguel na biblioteca. Puxou a porta do forno e descobriu uma frigideira e um bife cru à sua espera. Deixou a carne a fritar sobre o óleo e escavou o arroz e o feijão gelados que formariam a base do almoço. Mas o chiado da fritura e o ronco robótico do microondas preencheriam o ambiente por apenas dois minutos. Soado o bipe e restaurado o silêncio, era preciso que alguém se atrevesse a puxar o assunto:
— E o que você tá lendo? Deixa eu ver: Lo-li-ta.
— Ah, é pra um trabalho de escola…
— Eu lembro que eu tive que ler o “Meu pé de Laranja Lima”, já leu?
— Acho que não — assoprou a comida no garfo — mas pode ser que eu tenha lido e esquecido, isso acontece às vezes — engoliu.
Beethoven assentiu com a cabeça e emitiu o longo e ruidoso fungo dos deprimidos. Seria frieza demais não lhe emprestar os ouvidos por uns minutos. E assim o fez.
— Cê tá bem? — disse, olhando para a comida.
— Se eu tô bem? Não sei, Bento. Não sei. Acho que não é mais questão de estar bem ou de estar mal. A questão não é mais sobre felicidade, sabe? A gente vai vivendo um dia de cada vez. É claro que tem dias que são menos amargos que outros. Mas às vezes a gente fica baqueado assim, normal. A cada dia que passa eu vejo que eu sei é de mais nada! Eu não tenho ilusão com mais nada nessa vida, Bento. Ontem à tarde você não estava aqui pra ver, choveu muito também, mas eu quis fazer uma surpresa. Pra você ver: vinte e cinco anos nas costas e eu nunca dei um presente que presta pros meus próprios pais. Nunca dei nem uma flor de dia das mães pra Célia. Não trouxe nada dos Estados Unidos para vocês. O único dinheiro que eu tinha eu comprei a moto, meu único patrimônio. E é feio chegar em casa de novo com as mãos abanando, então resolvi encomendar aquela antena que você me viu instalando, ou tentando instalar, ontem. Liguei pro revendedor há uns meses. Quinhentos reais. Não disse nada pra ninguém. Claro, Ia ser muito melhor se a peça tivesse chegado antes de acontecer o negócio lá com a Isabel, mas paciência. Tô aqui agora com vocês, aguentando um longo mês de provação e de humilhação de graça, porque: não é fácil ficar um tempão longe de Uberlândia e de um dia pro outro arranjar um emprego e se estabilizar. Parece que eles não entendem isso. Essas coisas levam tempo e você tá vendo que eu tô tentando, olha só, acabei de voltar da rua! Enfim, fiquei na minha, primeiro porque eu sei que eu tô errado, segundo porque sabia que a minha redenção ia ser com essa desgraça aí. Agora é foda, não sei porque não tá funcionando. Vou tentar ligar hoje pra um amigo meu que também tem a antena em casa. Qualquer coisa vou ter que pedir pra trocar. Só que esse não foi o problema, o problema é que o seu pai não pode passar um dia sem dar show. Foi só o meu amigo chegar aqui ontem que o Vânio começou a encher o saco. Falou que eu tava trazendo muamba do Paraguai, que qualquer dia eu ia ser preso. Quando tentei instalar ele veio com essa história de ver jogo. Nunca vi ele assistir jogo! Você já viu? Depois, foi desviando do assunto e caiu na minha vida. Falou que eu não dava conta nem de consertar uma televisão, que eu não dava um murro na broa. E nisso o meu amigo até pediu licença e ficou conversando com a Célia na cozinha. Super sem graça! Mas ele não parava: disse que nem a Isabel nem o Davi me queriam na vida deles. Meu olho encheu d'água, Bento. Sabe do que o seu pai me chamou antes de sair? Me chamou de “retardado”! Vou até te confessar um negócio, mas você não pode falar pra ninguém: pensei até em matar meu pai naquela hora. Juro por Deus! Eu ia mandar o capacete na cabeça dele e derrubar num golpe só: PÁ! Igual eles fazem com boi na roça. Depois, sei lá o que ia fazer, fugir, não sei. Ou poderia ter só xingado, chamado ele de fracassado, o que ele é mesmo. Mas, em vez disso, você sabe o que eu falei? Me rebaixei à mais profunda lama de todas, Bento: perdi perdão! Perdão, por não ter sido o filho que ele pediu pra Deus, por não ter nascido igual a você. Não sei o que deu em mim, amarelei e nunca mais vou me recuperar desse vacilo...Vem cá, você tá sabendo que seu pai tá tomando remédio? Não, né? Pois é. Remédio de pressão e pra cabeça. Boto fé que tá broxa também. Mas ele morre antes de pedir ajuda. Pior! Sai por aí inventando história pros outros, falando que tá montando a loja de novo, que tem dois lotes no São Jorge para arrendar. Tudo mentira! Presta atenção, Bento. Não tô exagerando quando eu digo que o nosso pai não tá bem. Ele é doente! Se fosse na América ele tinha sido diagnosticado há muito tempo com uma coisa aí: mental disorder, bipolar disorder, sei lá. — Beethoven fungou novamente — Desculpa estar enchendo o seu saco com essas coisas, principalmente agora que você está finalmente saindo de casa, curtindo com os amigos aí. Mas eu só falo essas coisas porque eu vejo que você é estudioso. Olha aí, nunca que eu ia ter paciência para ler um livro dessa grossura. E eu não quero que você cometa os mesmos erros que eu cometi, entendeu? Não casa com ninguém só pra ter uma casa. Mulher é aquela coisa, a não ser que você seja um boiola, você tem que aguentar. Um dia você tem que arranjar alguém, mas não agora. Eu vou te contar uma coisa que pode te espantar, mas não amo a Isabel. Eu juro que eu não fui na casa dela ontem pra ver ela. Juro por Deus! Queria era pegar umas roupas e no máximo dar um abraço no Davi. Ela é uma pessoa boa, isso todo mundo sabe, mas mudou muito. O Davi trouxe muito freio pra vida dela. Teve de abnegar muita coisa pro filho crescer bem aqui no Brasil, num lar estruturado e tudo mais. E quando uma mulher tem filho, Bento, não adianta ter ilusão, é ele e não você o centro da vida dela. Vou te falar outra coisa sobre mulher: tudo que mulher busca depois de ter filho é alguém que dê estabilidade emocional e financeira. Você nem precisa ter muito dinheiro, mas tem que ter emprego. Mulher não gosta de homem que fica em casa, não. E não adianta, se você não for esse cara que ela quer, ela te bota pra fora no dia seguinte. Mesmo que você se ajoelhe e se arraste, mesmo que ligue na casa da família dela e que fique rondando o quarteirão. Mesmo que o filho dela chore no portão chamando o seu nome: “tio Betô, tio Betô, cadê?”. Já era! Ela tá decidida e vai até ligar para polícia para não deixar você entrar. Então é por aí, Bentin. Parece que eu vou ficar aqui com vocês mais tempo do que eu imaginei, ou pelo menos até eu me estabilizar. Mas fica tranquilo que eu não vou mudar sua rotina com seus amigos, nem vou ficar me queixando, não. Bola pra frente!
Beethoven levantou-se e lançou o café frio no ralo.
— Foi bom você ter voltado, Beethoven. Sério. Melhor aguentar você e o Vânio brigando, do que ver a Célia chorar sozinha no quartinho de passar roupa, sem saber onde você estava.
— Valeu, Bentin. Você quer pegar alguma coisa no quarto? Porque eu to indo dormir.
— Depois.
Bento empilhou os pratos e talheres na pia e foi até a geladeira em busca de água gelada. Notou algo de diferente nas garrafas de cerveja que o pai guardava na prateleira. E perguntou, quase gritando:
— Ô Beethoven! Por que as garrafas de cervejas do Vânio tão esquisitas!?
— Como assim? — respondeu à distância.
— Elas estão fechadas, mas o líquido parece que está na metade!
— Ah, então! Cheguei ontem cansado! Bebi um pouquinho!
Bento, incrédulo, fechou a porta da geladeira e correu para o quarto:
—Mas por que você bebeu só um pouco? Tipo, por que você não bebeu tudo de uma vez?
— Sei lá —disse Beethoven, descalçando um pé dos tênis.
— Beethoven, você tá louco? Você tem noção que o Vânio vai te matar? Ele vai literalmente te matar quando ele descobrir que você bebeu a cerveja dele.
— Não tô nem aí mais — Beethoven caiu na sua antiga cama de criança, de calça jeans e tudo, usando a camisa amarrotada como tapa-olho — Fecha a porta aí pra mim, por favor!
Bento retornou para a cozinha e despejou o que sobrava de cerveja choca pela pia. O jorro nem produziu espuma.“Puta que pariu”. Achou prudente também esconder os cascos embaixo do tanque na área de serviço.
Era preciso pensar em uma estratégia para não estar por perto quando Vânio desse as caras. Pensou em aparecer na porta de Gustavo, mas ainda estava sentido com aquela história de faculdade particular: “que viagem”. Pensou em vaguear sem rumo pelo Center Shopping, mas como? Tinha apenas cinco reais no cofre, não dava nem para um cinema e um sorvete. Lembrou-se também da possibilidade de encontrar com a mãe no caminho até o banco: “Hm, isso não”.
E nisso um casal de pardaizinhos pousou sobre o gradil da janela. Um deles, com o atrevimento dos amantes, invadiu a cozinha para ciscar miolos de pão sobre a pia. Bicou alguns e finalmente escolheu um para levar como um presente para a amiga. Ela se serviu do alimento e, satisfeitos, os passarinhos abriram asas e voaram juntos para sempre sob o céu ainda nublado da tarde.
E assim, o pensamento de Bento também foi se perdendo, voando alto de volta para o final de semana de onde uma versão pálida e melancólica da antiga Darlene de seus sonhos de infância lhe esperava em um sofá de um espaço e tempo próprio na memória. Pois apesar do “Nãos”, apesar da rejeição definitiva e humilhante, houve vários “Sims” e fragmentos de alegria daquele dia escuro. Diamantes brutos que valiam a pena serem lapidados e protegidos dos meninos babacas e dos minutos de terror sufocante no banheiro de Gilvan.
Talvez fosse o desdém natural dos rejeitados, ou ainda, ou o efeito colateral do culto à imagem da santa Darlene e seus falsos milagres; mas a verdade é que sem a antiga calma, sem a luz encantada de seus olhos de criança, a impressão de Darlene vista de perto não deixava de ser uma decepção, ainda que, de certa forma, intrigante. Não estava bravo com ela. Se ela quisesse ficar com Gilvan, que ficasse de uma vez e que fossem felizes. Se ela quisesse dar pra escola inteira, que desse, até cair a periquita. Não era exatamente isso, era outra coisa. Sem a inclinação para a felicidade banal das meninas de quatorze anos, Darlene abafava por debaixo de seu mau humor o mesmo desespero mudo dos adultos. Um desassossego dos que esperam sempre pelo pior e nunca conseguem estar presentes no momento. Nem as provas de alguma vaidade com a recente mecha loira e a saia jeans rasgada silenciavam a urgência de um segredo subversivo em sua alma de menina. O que seria, meu Deus? Não poderia ser apenas ciúme de Gilvan ou raiva de Mayara, devia ser alguma culpa mais profunda, de família, coisa séria.
Porém, sejamos francos e objetivos: isso não importa mais. Bento escapou de ser visto como um broxa perante a escola (seus amigos pareciam ter engolido a história e isso é um problema a menos) além do mais, Darlene deveria ser tratada como o que ela realmente era: um vulto do passado sem a exuberância de uma mulher de verdade como a professora Giovana. Era preciso se preparar para o fim de semana e olhar para frente, sempre para frente.
Bento guardou o fichário, caminhou até a sala e ligou a TV. Com sorte, algum canal ainda estava no ar. Dentre os diferentes chuviscos de estática, os da Rede Globo pareciam menos disformes. Assistiu por um segundo ao que lhe pareceu o Globo Esporte, mas logo desistiu: “Beethoven, viado”.
E agora? Só lhe restava o tal do livro. Vejamos: quatrocentas e vinte três páginas divididas por cinco, era preciso ler uma média de oitenta e poucas páginas por dia se quisesse estar afiado para impressionar Giovana e seus amigos psicólogos no sábado.
Deitou-se no sofá. Abriu a primeira página de Lolita: “Prefácio por John Ray Jr; Doutor em Filosofia”. Hmm, parece chato. Melhor pular para a história direto. Vejamos:

“Lolita, luz da minha vida, fogo do meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO. LI. TA.

“Deve ser um livro meloso”. Cobrou-se concentração na leitura, mas o pescoço lhe doía porque os braços do sofá eram duros e o couro, rasgado. Não havia posição ideal. Seria bom pegar no quarto um travesseiro, caso caísse no sono. Lembrou-se também que não havia escovado os dentes e talvez fizesse tudo isso depois. “Espera!” Bento achou ter escutado o som de seu pai chegando em casa… Alarme falso, voltemos à leitura:

...Era LO, apenas LO, pela manhã, com suas meias curtas e seu um metro e quarenta e oito de altura. Era Lola em seus slacks. Era Dolly na escola. Era Darlene quando assinava o nome…

“Hã? como assim? Ah, não, não, não!...era Dolores, quando assinava o nome. Dolores, meu Deus, que coincidência, não é mesmo? Só falta a personagem ter sobrenome de árvore como Darlene. Mas aí seria demais.”
Lembrou-se, por associação, do frondoso Flamboyant que protegia a casa de Darlene, um milagre de rara beleza naquela rua de casas e barracos improvisados. “Será que ela ainda mora lá?”. A Darlene da quarta série, da época em Bento lhe seguia como um doente, tinha tudo, ou pelo menos, o necessário para ser feliz: uma árvore que lhe dava sombra, um irmão mais velho para se espelhar, um cachorrinho que lhe abanava o rabo, boas notas e professoras que a estimavam. Tudo estava bem. O que pode ter lhe acontecido?
A vida, a vida deve ter lhe acontecido. Talvez o irmão tenha sido chamado para o exército e o cachorro, morrido de câncer. Talvez eles tenham ficado mais pobres do que já eram e a menor foi então forçada a trabalhar, ajudando a mãe nos serviços de diarista; pulando de casa em casa de gente estranha, até que, emancipada, tivesse idade suficiente para trabalhar como vendedora de lojas no Griff Shop ou como atendente de Telemarketing. Talvez por isso faltava tanto na escola: ela devia chegar tarde em casa cansada, com a pele alva corroída pelos produtos de limpeza e sem ânimo para estudar. Quem sabe ainda, inspirada na liberdade financeira e aconselhada pelos hormônios, Darlene tenha rompido com o pai e a mãe, saindo toda noite, tornando-se rebelde e cachaceira. Ou, pior — “Deus me livre” — Darlene talvez tenha entrado no mundo das drogas e agora está viciada e precisa andar com pessoas igualmente viciadas que possam bancar as preciosas drogas para ela. Talvez apanhe em casa por causa disso. Não! “Será que ela apanha do pai?”.Bento levantou-se com o coração a disparar. Escovou os dentes, tomou um banho e penteou o cabelo, imerso numa aura de mistério. Subtraiu do armário as primeiras peças de roupas que viu e o último dinheiro do cofrinho sem que acordasse o irmão que dormia de boca aberta.Resgatou o Lolita. Não queria admitir para si mesmo que estava se preparando para sair de casa e fazer o que estava prestes a fazer, ainda que soubesse exatamente para onde estava indo. Ao abrir o portão, foi surpreendido por Vânio que carregava uma sacola de bananas e uma pasta ofício azul.
— Onde você vai?
— Inglês...
Bento subiu apressado a íngreme avenida Duque de Caxias até um ponto não aconselhável para um jovem sozinho e a pé. Tornou-se à direita na altura da loja de Caldos. Seguiu por uma rua por onde Célia evitava passar de carro e cujo único diferencial era a fachada do “Vó Maria”, um centro de Umbanda fechado. A toda hora, o ronco de uma moto cortava a rua e Bento se impressionou ao ver alguns homens de meia idade, bebendo cerveja na porta de casa em plena segunda.
O Lagoinha era uma espécie de quintal do Saraiva, loteado por terrenos baldios, de escasso comércio e casebres com parapeitos de tijolos e portinholas de madeira que guardavam ainda um pouco da leseira da vida na roça. Mas o primo pobre do Saraiva era, sobretudo, temido. Uma mítica “turma do Lagoinha” estava sempre na boca dos colegas, prontos a exaltar os feitos de um malaco qualquer: “Tá vendo o Cristiano? Diz o Gilvan que ele é protegido do Batoré e da turma do Lagoinha”. Célia contribuia com a má reputação ao lembrar de algum cliente do banco cujo carro havia sido roubado à mão armada próximo ao Centro de Juventude. Vânio simplesmente achava que era bairro de bandido. Algumas lendas chegavam a um nível absurdo, como quando Fábio disse um dia que, toda vez que se ouvisse fogos de artifício, era porque a droga havia chegado no Lagoinha. Bento nunca acreditou nessa história.
E o que diria Célia se soubesse que seu filho pré-adolescente andava solto, feito um vira-lata vadio, pelo bairro mais perigoso de Uberlândia, praticamente pedindo para ser roubado por um delinquente armado de faca de cozinha? Bento aproveitava sua energia para pôr suas pernas em movimento, assim não lhe sobrava tempo para buscar uma razão para justificar sua loucura. Continuou, ganhando assim a vastidão de uma praça poliesportiva, cuja quadra de basquete se via decorada com símbolos deformados da Copa do Mundo. Dois adolescentes, o primeiro montado numa bicicleta e outro sem camisa, sentado no banco de cimento, notaram a presença do intruso com cara de boy e um livro na mão. Um deles chegou a cuspir na grama, mas Bento fingiu não se importar, determinado a ir até o destino.
Lá estava ela. No fim da praça à esquerda, ao lado de uma mureta pintada de branco por um candidato da última eleição, ficava a casa amarela de Darlene, desbotada pelo efeito do sol e com manchas escuras pelo efeito das chuvas. O Flamboyant do passado fora cortado e em seu lugar, uma grossa camada de cimento garantia que nada florescesse no canteiro. Somente o mato crescia solto no lote vizinho e por entre a calçada rachada. A casa também parecia mais fechada em si com um novo portão de lata totalmente vedado e o reforço de camadas de arame sobre o muro.
A vergonha acometeu o coração do detetive: “E agora, será que eu bato no portão? Pra dizer o quê? Oi, moça, você faria a gentileza de chamar a Darlene pra mim? É que eu levei um fora dela e eu queria saber se tá tudo bem, se ela tá apanhando ou usando droga” — Bento tremia feito vara verde.
Olhou ao redor e avistou na esquina um mercadinho. Entrou. Escolheu dentre as duas mesas para os clientes, aquela que ao mesmo tempo permitia uma visão da fachada de Darlene e que mais perto ficava da saída, em caso de fuga.
Duas garçonetes revezavam num balcão, ora chateando uma à outra, ora voltando ao fundo até a fábrica de pães.
— Vai querer o quê?
— Por enquanto nada. Pode ficar aqui sentado?
— Fica à vontade.
Uma senhora de idade, a provável dona, assistia ao "Vídeo Show” numa pequena TV quase sem cor, enquanto vigiava os clientes por entre os corredores. Pensou em quanto tempo ele poderia ficar ali sem que chamasse muita atenção. Uma, duas horas? Abriu o livro e tentou empreender a tarefa impossível de se concentrar nas letras pequenas e no portão da casa amarela. Leiamos um pouco:

“...era Dolores quando assinava o nome. Mas, em meus braços, era sempre Lolita. Teve, acaso, uma precursora? Sim, teve-a, de fato.”

— Coisa mais linda é ver um menino lendo, não é? — disse a dona, com voz rouca de fumante — tem certeza que não quer nada não, meu anjo?
— Ahn, quanto é o Guaraná Mineiro?
— Um real.
— Me vê um Batom também.
— Ô, Nádia. Pega um mineiro e um batom pro menino.
A bebida veio. Era preciso sorvê-la lentamente, fazer o tempo render ao máximo. Depois pediria um pastel quando parasse de sentir o almoço no estômago. Enquanto isso, nenhuma ação na antiga e suposta atual casa de Darlene. A possibilidade de ser visto por Darlene naquele vergonhosa posição de voyeur era algo opressivo demais para se pensar e, ao mesmo tempo, uma possibilidade real que num nível profundo da consciência Bento queria que se realizasse. Uma idosa de mãos dadas com um garotinho e um casco vazio de Coca-Cola entrou no mercado e cumprimentou a dona com familiaridade. Abelhas tilintavam contra o vidro do balcão. Bento sentiu uma gota de suor escorrer pelas dobrinhas da barriga, soprou por debaixo da gola da camisa e bebeu um gole de guaraná.
Devem ter passado uns vinte minutos no relógio da parede, quando uma das garçonetes cortou o ar com a voz desafinada:
— “Seu guarda eu não sou vagabundo, eu não sou delinquente, sou um cara carente, eu dormi na praça, pensando nela...”
— Eita que tá apaixonada.
— “Seu guarda seja meu amigo, me bata, me prenda, faça tudo comigo. Mas não me deixe...
— Ficaaaar banguela!
A provocação perdurou até uma delas viu algo da rua e ficou séria. Bento não percebeu que um motoqueiro havia estacionado sua moto na calçada em frente e, para apreensão geral, subido o degrau da entrada sem tirar o capacete. A dona tocou na caixa registradora em reflexo. O motoqueiro, vestido de couro preto impermeável, ainda demoraria um átimo antes de revelar sua identidade de homem desconhecido. Seu olhar era estrábico, com violentos sulcos no rosto e uma boca aberta de maneira estúpida. Olhou ao redor, apoiou-se no balcão e pediu um Hollywood e um Halls preto. Foi atendido com profissionalismo seco e o mal-encarado pagou com moedas tiradas de uma pochete.
— Moça, cê sabe onde fica esse endereço aqui… — mostrou-lhe um papel rasgado.
— Sei não — deu-lhe o troco sem olhá-lo no olho.
Parou ainda para dar uma última olhada no lugar, como se preparasse para dizer algo, mas vacilou, e em vez disso, rasgou, amassou e jogou no chão da rua a embalagem do maço. Montou em sua moto, deu partida e saiu. O olhar da dona ainda cruzaria os de Bento e das empregadas adolescentes como se compartilhasse aquele momento de alívio: “Eu hein”.
A distração fez com que Bento não percebesse que o portão de lata da suposta casa de Darlene estava aberto até a metade. Escondeu-se por trás do livro e esperou, até que dali saiu uma mulher gorda, quase obesa, segurando o cabo de uma vassoura e redondas sacolas de supermercado cheias de lixo. Apesar da pele morena, da papada e das banhas que penduravam sobre o braço e sobravam da bermuda, Bento soube reconhecer, com certa tristeza, o formato de testa e o cabelo ondulado. Aquela era, sem dúvida, a mãe da sua Darlene.
Vencendo o próprio corpo, a mulher depositou as sacolas para que o caminhão de lixo recolhesse mais tarde e voltou até o portão, empurrando-o com dificuldade até o limite, deixando à mostra a extensão completa daquela fachada decadente: latas de tinta, pilhas de pisos quebrados, madeira velha e um pneu encostado contra o fundo da garagem vazia. Ao lado, ficava o que parecia ser uma antiga horta, hoje, terra batida e que sujava de vermelho a parede da sala de entrada. Enquanto fingia ler, Bento ficou ouvindo do outro lado da rua os lances da piaçava contra o chão, até que a gorda dona de casa parou, encostou a vassoura na lixeira e voltou para dentro, como se tivesse esquecido de algo.
A mãe de Darlene reapareceu, desta vez conduzindo um cadeirante sem camisa. “Quem será ele?” O homem, cujo grau de parentesco com Darlene era indefinido, parecia ter saído recentemente do hospital e tudo nele parecia débil e frágil: a cabeça sem pelos e tombada até a clavícula, as mãos entrelaçadas sobre seu enorme ventre duro e inchado e as pernas finas apoiadas sem força contra os pedais de aço do aparelho. Foi conduzido até o portão, tendo ele mesmo manejado os pneus para que ficasse de frente para a rua, numa posição que lhe permitisse sentir o raio de sol da tarde que despontava das nuvens cinzas. Finalmente, o enfermo levantou a cabeça e fechou os olhos de alívio.
Ainda que provavelmente envelhecido e com uma barba por fazer, não parecia ter a idade de um avô ou de um parente idoso. Tampouco lhe enxergou traços que o aproximasse de Darlene ou da mulher que varria a calha. É verdade que Darlene havia mencionado vagamente na casa de Gilvan sobre um padrasto, mas não disse nada sobre sua condição. “E por que o diria?”. Pensou que a menina ficaria especialmente envergonhada se soubesse que alguém estava espionando sua intimidade familiar daquele jeito. Onde estava com a cabeça quando veio para cá? Só um verme faria isso. E mesmo assim não conseguia parar de alimentar sua curiosidade mórbida. Talvez ele não fosse pior que aquela gente, afinal de contas.
Se o corpo do provável padrasto indicava o contrário da sáude, sua atitude, por outro lado, mostrava algum viço que se confundia com certa vileza de tratos. Ele apontava com os membros superiores, autoritário, para os cantos da calçada como se cobrasse mais zelo na limpeza por parte da mulher. Logo, a mulher levantou a voz e os dois pareciam ter discutido por um tempo. Bento nem considerou buscar informações com os vizinhos sobre Darlene, apenas enfiou a mão no bolso e separou a nota de cinco reais. Queria abandonar o mercadinho o quanto antes.
No caminho até o caixa, o coração de Bento quase parou ao perceber que a menina que tanto esperava ver (e não ver ao mesmo tempo) havia despontado de dentro da sala para um lote baldio vizinho, trazendo nas duas mãos um ventilador velho e provavelmente estragado para descarte. Ela, que estava casualmente provocante com o cabelo preso, uma camisa de algodão branca cuja estampa lembrava alguma antiga festividade de Igreja Católica e um curto short de brim, passou descalça à direita do homem que a retribuiu com um olhar seco sobre as suas coxas adolescentes. Este, todavia, desviou cinicamente o rosto quando Darlene retornou de cabeça baixa para dentro da casa amarela.
Em seguida, os olhos perdidos do cadeirante encontrou os do espião do outro lado da rua. Bento tentou disfarçar, mas o cadeirante percebeu que estava sendo vigiado e fixou o olhar como num desafio.
— Qual o seu nome, meu filho? — disse a senhora do caixa, abaixando o volume da mini-TV.
— Hã? É, é Bento — deitou os cinco reais na mesa.
— Você não é daqui não, né? Senão eu já tinha te visto. Você é filho de quem?
— Sou não, tô na casa de uma tia — mentiu.
De longe, o inválido girou sua cadeira para melhor encarar Bento.
— Veridiana, olha só o olho desse menino, ele não é bonito?
— Dá não! Muito novinho pra mim — disse Veridiana.
— Mas ele vai crescer — insistiu a repelente senhora sem que lhe devolvesse o troco — e vai virar um homão.
O cadeirante, não satisfeito em apenas encarar, passou naquele momento a apontar o dedo em direção ao mercadinho e a dizer algo para a mãe de Darlene, que também lhe observava de longe. Saia, Bento!
— Só isso, meu anjo?
Bento nem se deu ao trabalho de respondê-la, apenas tomou-lhe o troco e saiu em passos rápidos pela calçada com o Lolita na mão — “você deixou o menino sem graça” — foi o que ouviu ao fundo enquanto se distanciava da casa amarela. Olhou para trás mais uma vez e notou que o cínico e pervertido parasita que morava na casa de Darlene ainda o seguia com os olhos.
Quando ganhou a distância de um quarteirão, Bento começou a correr como um coelho assustado em busca de ruas familiares. Enquanto as moedas tilintavam em seu bolso, Bento percebeu que era observado também pelos piores tipos do bairro: bêbados, mendigos e ladrões de veículos em potencial. E no caminho de volta, deixando para trás a quadra poliesportiva de onde se dava uma partida de basquete, Bento teve a impressão de ter ouvido fogos de artifício explodirem no céu do Lagoinha.