Julho a Setembro de 2021

O que seria de nós brasileiros sem a pirataria de livros?

4 DE JULHO

Desde quando estava no pré primário, lembro como não gostava de praticar esportes com os outros meninos da minha idade. Era gordinho e tinha vergonha das minhas canelas roliças e das bainhas escorrendo pelos flancos do meu corpo. Na hora da educação física e das atividades na piscina, enquanto a meninada nadava feliz, eu ficava na sala de aula, emburrado.

Esse medo dos esportes e de competir não mudou com o passar do tempo. Nunca gostei de video games, achava difícil e nunca me prontifiquei a jogar na frente dos outros, por medo talvez de ser ridicularizado. O mesmo aconteceu com karatê e futebol. Hoje em dia, vinte e tantos anos depois, ainda me sinto o mesmo gordinho inseguro quando tenho que participar de um jogo de cartas, de estratégia ou racha. Passo vergonha quando tenho que pensar rápido, sou uma pessoa de gestos e pensamentos lentos e acho que nunca vou mudar.

E por que lembro de tudo isso agora? É que hoje, numa casa de praia alugada por mim e alguns amigos Laís na Barra do São Miguel, fiquei mais uma vez emburrado e quase fiz ceninha depois de ter perdido quatro partidas seguidas de um jogo de cartas qualquer. Foi ridículo. Não sei por que eu ainda me sujeito a essas situações. Por mim, não teria nem participado. Preferia ter ficado na minha no quarto, lendo ou vendo vídeos na internet, enquanto os outros se divertem socialmente. Mas se eu fizer isso, Laís enche o raio do meu saco e o que significa perder um tempão para fazer as pazes depois.

06 DE JULHO

Que fique registrado: hoje, terça-feira, um dia depois do meu aniversário de trinta e três anos, investi pela primeira vez em um fundo imobiliário. Mil oitocentos e sessenta reais. Não sei qual é o fundo, nem quanto ele rende por mês, só sei que dei o primeiro passo rumo à tal da independência financeira que os livros de auto-ajuda me prometeram. Minha meta é chegar ao final do ano com dez mil reais. Ano que vem, quem sabe, trinta mil. Depois, cinquenta, cem, um milhão, por que não? ca perder um tempão para fazer as pazes depois.

09 DE JULHO

Desde meados do final do mês passado tenho bebido religiosamente todos os dias. Seja uma, duas, três latinhas ou uma, duas, três batidas de caipiroska; o fato é que não tenho dado nenhum dia de trégua. Só que uma hora o corpo pede arrego. E o sinal veio na forma de uma intoxicação por um limão estragado (ou mal lavado) de caipirinha, que fez com que eu amanhecesse abraçado à privada, acordando o prédio com meu urro gutural. Mais tarde na mesma manhã, teria ainda uma reunião online de trabalho a qual não pude aguentar até o final justamente porque lá pelos trinta minutos minha pressão sanguínea foi até zero. Pedi licença, disse que estava passando mal, fechei o notebook e cambaleei até cair inconsciente na cama. Por mais que a cachaça tenha sido a causa principal do meu colapso, sei que em parte ela pode ser atribuída a estafa mental provocada pela minha rotina, onde eu tento enfiar um monte de coisas de uma só vez: trabalhar, arrumar a casa, fazer exercícios, ler, escrever e, claro, beber.

18 DE JULHO

Existem artistas que conseguem apontar para algo urgente na realidade mas que para qual éramos cegos, mesmo que suas causas e efeitos não estejam totalmente claros na mente criadora. O grande mérito de Nabokov e seu Lolita não foi o de desenhar os contornos da nymphet, que, aparentemente, já é um clássico da literatura, mas o de antever esse personagem que é hoje um conhecido de todos nós: o adulto de meia-idade intelectualizado, mas de personalidade impotente e infantil, o sr. Humbert Humbert. Todos nós já vimos um Humbert em ação pelos corredores universidades e salas de aulas dos cursos de humanas, um predador grisalho e bonitão, de alma sensível à beleza em todas as suas manifestações (especialmente calouras do curso de Letras) e que adoram demonstrar afeto para com elas na forma de caronas para a casa depois das aulas ou, nos casos mais extremos, de uma foto do próprio pau pelo whatsapp.

Como todo grande romance moderno, Lolita pertence a vários gêneros ao mesmo tempo. Pode ser lido tanto como um road-book policial, quanto como uma autobiografia fictícia — essencialmente psicológica, e, em certos pontos, psicanalítica — de um degenerado. Em termos de sua intenção, Lolita pode servir tanto uma investigação sobre a relação entre o homem e a mulher na modernidade (e a troca da antiga tutela masculina pela moderna tutela dos psicólogos e assistentes sociais) quanto como uma espécie de alegoria sobre a degeneração de valores do Ocidente. Isto porque Humbert, antes de ser um personagem da realidade, é um símbolo da intelectualidade européia decaída, um filho tardio da Belle Époque e criador amoral apaixonado por sua criação: uma ninfeta americana, sexualizada de antemão com ajuda produtos “culturais” da mídia de massa, o Jazz, o cinema, as revistas em quadrinhos.

Pouco do romance me ficou na memória quando o li pela primeira vez durante as aulas cacetes na Fundação João Pinheiro em meados de 2012. O que é natural, já que era um belo de um ignorante aos 24 anos (a mesma idade de Humbert quando conheceu Lolita). Hoje em dia, é evidente que o protagonista masculino do romance é um louco, um doente, um pedófilo histérico. E mesmo assim, apesar da sequência de monstruosidades que nos são descritas como uma honestidade sádica, Lolita consegue ser cinicamente belo, porque, depois de percorremos o labirinto de sua obsessão, Humbert nos conduz até a penitência final de seus pecados e, por isso, somos arrebatados por um sentimento de completude e justiça que nos faz querer perdoar esse safado. Grande livro! Só espero que Lolita me inspire a desatolar a escrita de “Darlene” do buraco em que está.

02 DE AGOSTO

Acabei de voltar de um delicioso final de semana em São Miguel dos Milagres em que ficamos, eu e Laís, hospedados em uma casa alugada junto com os parentes da família dela. Final de semana de muita cerveja e carne de churrasco, de jogos olímpicos e medalhas inesperadas do nosso atletismo, de sol tropical e poucas chuvas (ao contrário do que dizia a previsão do tempo) com direito a escapadelas turísticas pela paradisíaca praia do Lage e o imenso mangue ao redor do rio Tatuamunha.

Internamente, o final de semana para mim selou o fim simbólico deste mês de Julho; mês de aniversário, tão maluco quanto divertido, em que provavelmente bebi em cada um de seus 31 dias. Quero aproveitar que finalmente terminei de escrever o capítulo sete de “Darlene” (o mais difícil até agora) para fechar esse ciclo etílico e, ao longo dos próximos dias, re-organizar meu horário e tentar conciliar as exigências do trabalho regular na Systemic (que não são tão exigentes assim) com um novo empreendimento em que decidi me aventurar: ajudar com mais afinco nos projetos da Tiny Tasks, projeto do Renan Benini e que me parece bem promissor. Essa semana tenho que me preparar para uma reunião muito importante na quinta, dia cinco, uma entrevista de emprego (outra) para o cargo de Designer Instrucional da Alura, a mesma empresa para qual Laís trabalha. Nos próximos dias devo também me preparar financeiramente para receber minha mãe que vem me visitar no dia 24. Até lá devo encontrar tempo também para ler, escrever, fazer exercícios e, ainda por cima, tomar a tal da vacina antes que as pessoas que linchem na rua.

06 DE AGOSTO

O que seria de nós brasileiros sem a pirataria de livros? A maioria dos títulos que li em 2021 só tive acesso porque algum transgressor, a quem serei eternamente grato, se arriscou a lançá-los na internet. Este é o caso de “A Todo Transe” de Emanuel Guimarães, escritor esquecido e que foi recentemente redescoberto pelo crítico Rodrigo Gurgel.

Qual a chance de encontrar por aí uma edição física do romance a não ser uma cópia da última edição de 1997 que deve estar guardada na biblioteca da Fundação Casa Rui Barbosa a mais de dois mil quilômetros de distância de Maceió, no Rio? O mesmo digo sobre a edição de “O Encilhamento” do Visconde de Taunay, quando nem mesmo é possível encontrar uma edição do seu "Retirada de Laguna”?

É verdade que muitos dos e-books que lemos por aí poderiam ser facilmente comprados pelo site da Amazon, remunerando merecidamente editores e autores, dando assim uma contribuição anônima para a indústria editorial. Ou pelo menos poderíamos comprar livros usados pela Estante Virtual, ajudando os sebos ou alfarrábios a permanecerem vivos mais um dia nesse país de gente iletrada. Mas é verdade também que, para os títulos obscuros, não há outro recurso senão a distribuição informal pela internet. Nesses casos, é quase um dever cívico desobedecer a lei dos Copyrights.

Dito isso, vamos agora à seção intimista do meu desabafo.

Participei na quinta-feira pela manhã de uma entrevista de emprego na Alura, uma empresa de educação e tecnologia com sede em São Paulo e recentemente descentralizada com o advento e aceitação geral do home office. A entrevista online foi conduzida por Mayra de Oliveira, a gerente do setor de ensino, além de duas outras meninas bastante descoladas do Recursos Humanos. No geral, acho que passei uma boa impressão. A reunião durou algo em torno de uma hora e dez minutos, o que é um bom sinal, e nela, tentei, claro, inflacionar com moderação minhas experiências de trabalho e de vida e demonstrar como a minha maturidade de trinta e três anos e meu entusiasmo pela educação me fazem perfeitos para a vaga. Ironias à parte, estou mesmo interessado no job, não apenas pelo salário, que é quase o dobro do que recebo hoje, mas porque a oportunidade de trabalhar para uma empresa grande como a Alura pode me ajudar a superar o fiasco que foi a minha passagem por São Paulo em 2015, quando fui contratado para trabalhar numa empresa do terceiro setor, sendo dela despedido seis meses depois, após gerar para a empresa um processo por quebra de contrato com a prefeitura de Jundiaí. Pode parecer meio estúpido, mas vencer corporativamente na vida vai ser uma grande conquista para mim.

13 DE AGOSTO

Ainda excitado com toda a simbologia astrológica que venho absorvendo dos vídeos do ICLS disponíveis no Youtube e com a leitura do “Introdução à Simbologia Astrológica” do Gugu de Carvalho e do Pedro Sette Câmara, posso dizer, agora com alguma propriedade, que estou me sentindo como se a venusiana sexta-feira tivesse trocado de lugar no calendário com o saturnino sábado, roubando dele o aspecto frio e seco e o acre gosto de fim de ciclo que ele deixa na boca. Tudo isso porque recebi na sexta pela manhã o e-mail do Recursos Humanos da Alura me avisando de que eles não estariam “dando continuidade com minha candidatura” para a vaga de Designer Instrucional, a qual havia me candidatado. Tudo bem, não faz mal. Sei que não sou a pessoa mais experiente no mundo corporativo, e existem uma fila de pessoas que seriam mais adequadas para a vaga que eu. Mas é sempre doloroso receber um não, seja da menininha bonitinha da sala, seja da menininha bonitinha da empresa contratante.

De qualquer forma, achei bem friendly o feedback que recebi deles e que agora transcrevo:

Oi Cícero, espero que esteja bem!
Quero agradecer sua participação e empenho em nosso processo. Foi um prazer te conhecer e saber mais sobre sua trajetória profissional. Entretanto, neste primeiro momento optamos por não seguir com sua candidatura. Aqui no Grupo Alura nós valorizamos muito o feedback e por esse motivo vou citar alguns pontos que levamos em consideração para a vaga de Designer Instrucional. Começando pelos pontos fortes que percebemos em você:

  • Sua paixão por ensino e educação é algo notável, o que é muito importante para a área;
  • Você se mostrou muito criativo e adepto a novas vivências, e isso é fundamental;
  • Você demonstrou muito engajamento durante o processo, o que é bem importante, pois mostra seu interesse na oportunidade.

No entanto, existem alguns pontos que nos levaram a essa decisão que nós do Grupo Alura acreditamos ser essenciais para o seu desenvolvimento:

  • Durante a conversa acreditamos ser importante dar respostas mais detalhadas e claras, sabemos que em um processo seletivo podem surgir muitas ideias e lembranças em nossa mente, por isso é importante organizar os pontos mais importantes e trazer exemplos. Isso contribui para que possamos entender melhor suas vivências e experiências.

16 DE AGOSTO

Segundo o meu sogro, seu Edmo, pai de Laís e um dos maiores especialistas em Coronavírus do mundo, a vacina da Pfizer atinge seu pico 15 dias depois de entrar no organismo e é muito comum, segundo ele, que após esse período, o imunizado venha a sentir alguns efeitos colaterais, como febre e fraqueza no corpo. Não sei se foi isso ou se foi uma baixa da imunidade provocada pelo e-mail da Alura já referido, só sei que, logo depois de voltar de uma corrida na praia na sexta-feira, comecei a sentir febres e dores no corpo, um mal estar que me deixou de cama o sábado inteiro. Quando Laís voltou para casa pela tarde, ela disse que eu parecia um cientista maluco. Felizmente, três chás de Vick Pyrena depois , melhorei a tempo de celebrar o aniversário da Vitória, uma amiga minha e da Laís, aqui no nosso apartamento.

24 DE AGOSTO

Após ter lido o romance, e lá pela metade do filme, tive uma revelação. Posso estar ficando louco, mas consigo enxergar várias coincidências entre a história da minha minha família, a família Nogueira de Coromandel e a família Salina da Sicília de “O Leopardo” de Lampedusa, guardada, claro, as devidas proporções. A simbologia que rege a trama explica muito a minha relação, não com o meu pai, o que seria de se esperar, mas com a minha mãe, dona Cleides, que é sem dúvida a figura leonina e carismática da família.

Ainda que sempre tenha tido bom gosto para roupas, bijouterias e outros luxos que somente a sua austeridade de ex-contadora poderia proporcionar, é óbvio que minha mãe nunca compartilhou da riqueza de Don Fabrício. O que ela sim compartilha com o príncipe é uma elegância natural e uma intuição para a nobreza que fariam dela uma grande rainha. Minha mãe também não foi uma pessoa de cultura, ainda que tenha excedido em muito a média de seus pares de Coromandel. Minha mãe traz uma alma sensível e extremamente curiosa nos diversos manifestações de misticismo religioso, todas as religiões e as seitas mais malucas do mundo, menos a mais maluca de todas: o catolicismo, e isso a afasta definitivamente do patriarca de Salina.

Com o mesma tristeza reflexiva com que Don Fabrício observava o baile que consagraria o casamento de Tancredi e Angélica, os herdeiros naturais de sua nobreza decaída, sinto em Dona Cleides, na véspera de seu aniversário de 63 anos, após ter desistido de visitar eu e Laís aqui em Maceió, o mesmo desligamento com o mundanismo e a vontade de isolamento que a jovem velhice lhe trouxe. Não estou querendo me comparar com o Tancredi, muito menos sugerir que eu me pareço com o Alain Delon. Entre eu e Tancredi há um abismo, entre eu e o Alain Delon há outro. Nunca fui bom com as cartas, nunca fui a alma da festa, tampouco teria a coragem de participar de uma guerra, nem mesmo oportunisticamente. Mas de Tancredi tenho, no fundo, aquela amabilidade cínica que faz com que as pessoas queiram me proteger apesar de todas as imaturidades. De certa forma, assim como Don Fabrício apostava cegamente no sobrinho, minha mãe nunca se importou de gastar seu dinheiro comigo. Há quinze anos ela vem me sustentando parcial ou integralmente, e sei que ela faz isso de bom grado, porque enxerga em mim algum talento em potencial e que até agora nunca deixou de ser uma potência.

04 DE SETEMBRO

Desde o início da semana, à medida que minha mãe me atualizava do quadro declinante de saúde do meu tio João Henrique, meu reflexo foi o de relembrar com saudade das várias férias escolares que passamos eu, minha mãe e meus irmãos, na casa dele e da Tia Neide e do Tio Rique em Coromandel. Eram férias deliciosas em que passávamos a tarde inteira inventando alguma coisa para fazer na rua. Numa hora inesperada do dia, ouvíamos o ranger do portão de lata e o motor da caminhonete, totalmente suja de barro, mas com a certeza que ela carregava alguma surpresa na carroceria: um “sacão” de abacaxis, milho, pamonha, peixe, carambola, tudo. Não era sempre, porque a generosidade do tio Rique dependia, claro, da generosidade da safra.

Tio Rique era um verdadeiro touro cheio de vigor sertanejo. Um tipo “italianão” de filme: corpo roliço, cara barbuda, olhos pequenos e fundos, e uma pelagem grossa brotando de sua pele vermelha de sol. Pensando bem, até que o meu tio lembra um pouco o James Gandolfini de “Os Sopranos”.

Assim como meu pai, o Tio Rique veio de uma geração de homens da roça, gente rústica, mas generosa, afeita ao cultivo da comida boa e farturenta, amante das madrugadas regadas a truco e pinga. Alguns diriam que esse apego aos prazeres terrenos cobrariam dele uma dívida cara que ele pagaria com a próprio vigor físico.

Diferente do meu pai e de muitos outros que se renderiam mais tarde à cidade grande, meu tio nunca se sentiu bem longe da roça por muito tempo. Só ia para cidade pra despachar algum documento e tratava de voltar o mais rápido possível. O lugar dele sempre foi a roça e por causa disso, víamos pouco o Tio Rique. Mas verdade seja dita: ele sempre nos convidava para passar uns dias na fazenda, ao que eu e meus irmãos, pardaizinhos de cidade (apelido de sua autoria) sempre negamos. Hoje vejo que foi um grande erro.

Tio Rique em sua própria casa era uma presença silenciosa. Gostava de assistir até tarde da noite a qualquer filme de ação que estivesse passando na TV. Chuck Norris, Van Damme, Charles Bronson e alguns filmes de Ninja também. Tinha a alma seresteira e, apesar de não tocar nenhum instrumento, lembro de ouvi-lo cantar várias vezes a sua versão de “Perhaps Love”, “Killing me Softly” e “Yesterday”. Um dia, meu tio comprou um VHS de Uberaba, se não me falha a memória, com vários videoclipes mal concatenados dos Beatles. Lembro vividamente da sequência de músicas. Começava com “Twist and Shout”, depois passava para “Ticket to Ride” (a minha favorita), “You’re gonna lose that girl”, “Help”, “I Need You”. Depois havia um corte repentino para o show do John Lennon em 1972 no Central Park, cuja versão de “Imagine” fez minha tia Neide verter o que para mim eram suas lágrimas inéditas. Um dia, roubamos essa fita e a levamos para Uberlândia, onde ficaria por muitos anos. Então, acho que devo essa gentileza ao meu tio, foi ele quem me apresentou aos Beatles.

Às vezes, Tio Rique tinha que ir até Uberlândia resolver algum pepino da roça. Nesses dias, se eu estivesse de bobeira em casa, ele levava, eu e meu primo, para um rodízio na churrascaria Chimarrão, os quais me especializei no papel de comedor imbatível de corações de galinha. Outra vez, quando meu irmão mais velho, Vinícius, passou mal de madrugada, foi meu tio quem o levou para a emergência. Quando completei 18 anos, Tio Rique também fez o que pôde para que eu arranjasse um trabalho em uma das distribuidoras de grãos para a qual ele trabalhava. Enfim, uma lista interminável de pequenos momentos, mas que juntos formam a paisagem da minha vida e no caso do Tio Rique, a biografia de um homem bom.

Daí veio a notícia, grave, inegociável como a vida, do seu falecimento. Segundo o relato de minha mãe que esteve presente no enterro, a oração final do Rosário foi interrompida por um coral desordenado mas ensurdecedor de quem sabe, bem-te-vis, andorinhas ou algum outro passarinho. Mas o presságio não poderia ser mais adequado, é a natureza de Coromandel em júbilo pelo retorno à terra do seu nobre filho.

João Henrique Resende, marido da minha tia Neide, pai da Lara e do Paulo Henrique, todos eles partes essenciais do filme da minha vida. A eles dedicarei minhas orações e meus pensamentos esta noite.

05 DE SETEMBRO

Acho que cheguei em uma boa definição sobre o meu curso de licenciatura em Letras à distância pela universidade de Pernambuco: é a mais baixa experiência de ensino na história a receber o título de superior.

07 DE SETEMBRO

A orla de Maceió está toda emperequetada com bandeiras verde-amarelas para o sete de setembro, e se me perguntarem, diria que está ó: uma tetéia! Gostaria muito que as pessoas pendurassem a bandeira do Brasil nas sacadas de seus apartamentos não apenas em manifestações, mas em dias normais também. Mesmo que não seja por um patriotismo profundo, mas só para lembrar a todos que ainda temos um país, ainda temos uma bandeira.

De tarde, dei ainda uma corrida pela orla, imerso num clima geral de fim de festa cívica. Havia ainda muita gente bebendo, muitas caixas de som tocando João Gomes e um cheiro quente de urina próximo à praia da Pajuçara. Em uma dessas saídas de esgoto que desembocam na praia, vi ainda um menino de uns oito anos de idade brincando como se estivesse numa piscina de condomínio. É a festa da democracia!

15 DE SETEMBRO

Vivi essa tarde uma cena digna de “O Feijão e o Sonho”. Antes do almoço, que é normalmente a hora em que todas as brigas acontecem, Laís me apareceu angustiada, dizendo que nós precisamos de mais dinheiro, que mal conseguimos comprar as coisas que queremos: celular novo, mensalidade na academia, viagens, etc. Para ser justo, ela não só usou gastos banais como argumento, ela também estava preocupada em abrir mão da ajuda financeira que minha mãe vem nos oferecendo há algum tempo.

Tentei explicar pra minha amada namorada que se a gente quer mais dinheiro, a gente precisa fazer duas coisas: investir e empreender. Perguntei se ela está disposta a empreender ou vender alguma coisa. Ela disse que não. Nesse caso, disse que ela tem que se contentar com um cargo, e que nenhum cargo, por mais bem remunerado que seja, muda a vida financeira de ninguém. Depois de três meses, o empregado se acostuma com salário, seja mil, dez mil, cem mil reais, e sempre, sempre acha que está precisando de mais dinheiro.

Ela retrucou dizendo que eu estava sendo “canguinha” e retranqueiro igual a um funcionário público, que eu não tinha ambição para enriquecer e consumir coisas melhores do tipo: “uma garrafa de vinho”. Indiretamente ela disse também que eu me considerava sabichão demais só porque eu li uns livrinhos sobre como ficar rico e que eu sabia tudo na teoria e nada na prática.

A conversa desceu rapidamente para o nível pessoal. Prometi, ironicamente, que eu ia trabalhar mais e dar mais dinheiro pra ela. Ela disse que não se tratava disso. Daí eu disse que, nesse caso, era melhor ela arrumar um cara rico e que era só dizer a data que eu voltava pra Minas. Ela disse que não era isso também. Aí eu comecei a perder a cabeça. Só sei que o prédio inteiro ouviu quando gritei: — Então o que você quer de mim, eu sou pobre!!!

De noite, quando o sangue esfriou um pouco, fui juntando as peças do quebra-cabeça e captando aos poucos a angústia que vive na cabeça dela. Laís quer me ver batalhando por uma carreira. Ela quer me ver fazendo cursos, vendendo meu peixe na internet, enviando currículos, fazendo entrevistas de emprego, e claro, lendo menos, escrevendo menos, falando menos.

16 DE SETEMBRO

Tenho que agradecer ao Gugu de Carvalho pela inspiração que ajudou a apaziguar a minha briga conjugal de ontem com Laís. O filho do Homem fez o favor de me lembrar uma coisa muito simples: homens e mulheres são animais fisiologicamente diferentes! Desde a adolescência, nós, os machos da espécie, temos que lidar todos os dias com a quantidade cavalar de testosterona que modela o nosso corpo para a ação, e imprime na nossa cabeça a mentalidade de um predador. Aquele que vai lá, caça e pronto. Já as mulheres, seres fisicamente mais frágeis, são criadas ao redor de uma aura de preocupação paternal, o que imprime na mente delas medo, e um estado de constante de estimativa, inseguranças e cálculos sociais. Nas palavras do filho do Homem: “todos os dias as mulheres têm que percorrer um labirinto”. Isso é muito verdade. Sendo assim, um dos papéis do homem num relacionamento estável é “ler” as angústias mentais de sua companheira e libertá-las das barreiras que as impedem de fazer o que elas querem.

Como eu já disse antes, depois de muito mind reading e muito soul searching eu meio que percebi que o que angustiava a Laís eram duas coisas: a primeira é que ela está se sentindo envergonhada em ficar na casa da minha mãe sabendo que a sogra poderia estar nos ajudando financeiramente de má vontade. A segunda é que ela não estava satisfeita em me ver sem objetivos de carreira. E nisso ela estava certíssima. Não porque alguém é obrigado a ter uma carreira bem remunerada, mas porque eu tenho dívidas muito altas e que se não houver um plano para pagá-las eu vou ser esmagado por uma bola de neve no futuro. Algo que só pode acentuar se a gente tiver um filho no curto e médio prazo. Bem, tudo isso acho que serviu como um presságio de que eu preciso me engajar numa nova busca de carreira. Registrei aqui no diário meu flerte com o design gráfico meses atrás. Juro que tentei. Li alguns livros, assisti a vários vídeos, mas cheguei à conclusão que eu não quero trabalhar com algo que seja essencialmente visual. Quero aliar algum tipo de aprendizado intelectual ao que estou fazendo. Não que não haja aprendizado no trabalho de design gráfico. Muito pelo contrário, aprender sobre arte e ergonomia das coisas é algo fascinante. Só acho que eu não sou uma pessoa muito “visual” no final das contas. Não me importo muito se a aparência é arrojada, moderna e o escambau. Gosto de tudo muito básico, ainda que eu tente alcançar algum nível de elegância no básico. Além disso, busco um trabalho em que eu precise escrever e me comunicar de uma forma “artesanal”. Finalmente, quero aproveitar minha experiência como professor, que é o único tipo de experiência de trabalho relevante que eu tive.

Então lá vai, mundo: — Vou virar Designer Instrucional. Vamos ver o que sai dessa bagaça!

17 DE SETEMBRO

Enquanto comia um inflacionado bife de picanha no Bar do Ferreira, aqui no Poço, vi de tabela um William Bonner de barba anunciar mais uma pesquisa eleitoral de intenção de voto para a eleição presidencial do ano que vem. Em todos os cenários possíveis e imagináveis, Bolsonaro perde do Lula com, no mínimo, 20% de folga. Isso, mesmo com todos os movimentos verde amarelos e suas bandeiras que ainda permanecem hasteadas na orla de Maceió, dez dias depois do sete de setembro. Não acho que Bolsonaro se reeleja. Ao mesmo tempo, não acredito nas pesquisas. A quase um ano da eleição, essas pesquisas de encomenda só servem para inocular um “clima” na cabeça das pessoas. Mas não acredito nessas pesquisas especificamente porque não vejo essa preferência pelo Lula tão clara. Quer dizer, quem já era Lulista, continua, agora com menos pudor. Não estou vendo nenhuma re-conversão em massa. Só acho que, se o Lula ganhar, vai ser por uma margem pequena. Uns 5%, quem sabe? Veremos.

18 DE SETEMBRO

Difícil admitir, mas eu sinto um pouco de inveja de Laís e da sorte que ela vem conseguindo com o trabalho dela. Queria ter uma carreira promissora também. Queria também ter mais habilidade social para vender meu peixe. Queria ter mais amigos e ser mais aberto às pessoas que nem ela é.

22 DE SETEMBRO

Vale a pena registrar o trabalho ao qual a professora de Análise do Discurso do quarto período do curso de Letras à distância da UPE nos submeteu. A ciber-tia pediu para que os ciber-alunos lessem uns textos aí da disciplina (não li nenhum) e que nos organizássemos em trios (TRIOS!) para redigir três laudas, dissecando o seguinte Corpus discursivo:

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É isso mesmo, o corpus que a professora escolheu foram duas montagens amadoras feitas no Paint pelo tio do Zap, uma delas, inclusive, aparece com a palavra “cristãos” cortada pela borda da imagem. É isso aí, meus amigos! Nada de novo sob o front.

26 DE SETEMBRO

Taí uma meta para os próximos meses e para o ano que vem: fazer amigos reais e me engajar em algum grupo recreativo, esportivo, artístico, religioso, político. Qualquer coisa que me faça ficar longe do computador e ter que conversar com pessoas de carne e osso. Qualquer coisa que me faça ter um núcleo de amigos fora do meu relacionamento.