Capítulo 8 - "Fortis Fortuna Adiuvat"

Sétimo capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

Maria Angélica, a nova professora de Português (Português e Linguagens, para ser mais exato) virava páginas do livro didático, aflita. Sem se importar com quem chegava do recreio ou não, ela se concentrava em uma coisa apenas: encontrar o ponto da matéria que a turma havia parado com a professora antiga, Regina, antes de ela se aposentar.
Maria Angélica entregou o livro para uma garota na primeira carteira, e pediu ajuda, quase sussurrando:
— Ei. Qual foi a última coisa que a Regina passou pra vocês, hein?...
Era uma quarta-feira de manhã e o vento da mudança soprava sobre os corações do oitavo A.
Desde o início da semana, Tales só podia ser visto ao lado de Ariadne. Passavam o recreio inteiro feito unha e carne, abraçadinhos como se estivessem presos um ao outro. Compravam cremosinho juntos na cantina, riam das mesmas piadas e demoravam mais que todo mundo a voltar do recreio. No corredor, sempre tomando cuidado para que Teolinda não os visse, Tales se despedia da nova namorada com um beijo esparrado e ruidoso. Ao entrar pela sala, fazia questão de exibir a boca suja de batom como um troféu. Bem que Fábio insistia, mas o novo relacionamento com Ariadne injetou confiança no primo, que se negava a ser tratado como o Jegão de sempre. Até as meninas passaram a olhar Tales de um jeito diferente.
— Larga de ser feio, sô! Lava essa boca!
— É só parar de olhar, uai.
Fábio poderia cravar um namorico com Monalisa se quisesse. Afinal, ela não era feia, e era até gente fina. Diziam que ela era a mais bonita de corpo do oitavo C. Ele, no entanto, calculou que poderia conseguir uma menina de traços mais delicados, com um passado mais reto e mais bem cotada no mercado escolar. Depois de terem transado no quarto de Gilvan, Fábio e Monalisa foram flagrados por Gisele atrás do laboratório, se beijando de um jeito agressivo. Na terça, para minimizar a fofoca que já se espalhava, Fábio tratou de inventar uma dor de cabeça que o livrou de ser visto com Monalisa no recreio. Na quarta, quando ela o chamou pelo nome no meio de partida entre os meninos da oitava e da sétima — justamente para lhe dizer que não se importasse, pois na cabeça dela não havia compromisso entre os dois — o artilheiro deu uma de doido e fingiu que não era com ele. Quando lhe perguntavam sobre Monalisa, Fábio fechava a cara, dizia que estava se guardando para outro objetivo mais importante: a Copinha Júnior que aconteceria daqui um mês em Belo Horizonte, onde jogaria ao lado do outro atacante da escola, Gilvan.
Craque no campo e fora dela, Gilvan dos Santos, artilheiro da Copinha em 2001, desenvolveu também o talento de desvincular sua imagem das meninas com quem ficava. É que nenhuma delas cogitava ser sua ficante fixa. Namoro, então, era ilusão. As meninas se contentavam apenas em dividir entre si os detalhes de suas experiências com o anjinho loiro — “Quando eu fiquei com Gilvan foi no carro do pai dele”, “quando eu fiquei com Gilvan foi no vestiário do Praia Clube” — Como se ficar com Gilvan fosse um rito a que todas elas passariam, às vezes, mais de uma vez, e a boca pequena servia para abastecer as meninas com figurinhas que completavam um álbum da mitologia amorosa adolescente.
Mayara, por exemplo, nem perdia tempo de procurá-lo na escola. Só falaria com ele se ele a procurasse:
— Correr atrás de menino safado? Eu, hein!...Mas, por quê?... Ele falou alguma coisa?
Mesmo com a fama de coração gelado, a moral do primeiro atacante da escola só crescia. Naquela manhã, por exemplo, Gilvan havia escandalizado o Joaquim Saraiva ao chegar à escola com uma atadura de plástico. Índio quase caiu para trás quando viu o tamanho do Samurai que cobria quase todo o braço do adolescente:
— E aí índio, curtiu?
— É...Gostei, gostei...diferente, né? Mas se você fosse meu filho, o pau ia quebrar!
Enquanto a aula da Maria Angélica não começava, todo mundo fazia fila na carteira do único menino tatuado da escola para sentir com as mãos o baixo relevo da armadura e os detalhes da espada ao longo de seu bíceps. Várias e várias vezes, Gilvan explicou com paciência o significado por trás dos ideogramas:
— Este daqui significa “Guerreiro”. Este daqui é “Força”. Agora esse…
— Significa o quê?
— “Macarrão”.
Assistindo de longe, Bento comentou com Gustavo:
— Como é que ele vai arranjar um emprego com esse negócio no braço?
— Não sei, cara. E vou te contar uma coisa: acho que ele não tá nem aí, não. Esse negócio de tatuagem é sério. Diz meu primo que um dia ele foi fazer uma entrevista de emprego, né? E os caras botaram todo mundo pelado numa sala. Só pra ver se alguém tinha tatuagem!
— Que isso!...
Um mal-dormido Bento não tinha saco para copiar matéria nenhuma do quadro. Tinha sim um caminhão estacionado sobre a consciência, já que, desde que fora violada em sua privacidade, Darlene não foi vista, nem na sala dela, nem pelo corredor, nem como coadjuvante em algum grupinho de meninas barulhentas no recreio. “Desse jeito ela vai repetir de ano. E vai ser por culpa minha!” — bateu na cabeça três vezes — “Burro, burro, burro!”.
Por muito tempo ele se lembraria daquela casa assombrada e que mais parecia um cemitério de gente viva. Como uma mariposa-bruxa que se instala no teto da mente, Bento se lembraria para sempre da imagem do velho caquético e tarado sobre Darlene, indefesa contra seu shortinho curto e suas coxas macias de fora. E a mãe? Gordíssima, quase obscena, sem vigor para elevar-se diante da situação. Lá fora, lixo, mato crescido e marcas de bala na parede e nos vidros. Sentiu nojo, ódio, impotência, vergonha de si mesmo e do mundo. Por último, vendo todos os seus amigos, encaminhados na vida, cada um com sua namoradinha, até Tales, o mais socialmente deslocado deles, sentiu-se só, como nunca havia se sentido, sem ninguém para amar de verdade.
O único motivo que ainda lhe restava para viver era Giovana Fayad e mais da metade de Lolita pra ler até sábado. Decidiu que ia adiantar o que desse durante a aula, pelo menos até cair no sono. Que se dane a aula. Afinal de contas, nenhuma professora de Português no universo implicaria com um aluno que deixasse de prestar atenção na aula para ler um romance, não é mesmo?
Ao abrir o livro, uma surpresa. Algo que não era o marcador deslizou da página 15 para a sua coxa, e da sua coxa até o taco. Era um papel de folha pautada e dobrada como um envelope. Gustavo também viu o papel cair no chão. Viu também que nele estava inscrito: “Para Bento” em letra cursiva de menina.
— Que isso? — fez cara de malícia.
— Não...nada não!
Bento recolheu o envelope do taco, ligeiro, como se fosse dinheiro caído. Nem ousou analisá-lo novamente. Apenas apressou-se até o quadro e usou seu crédito de bom aluno:
— Hmm...Maria Angélica, licença. Posso ir no banheiro?
— Uhum — A professora nem soube quem lhe fez a pergunta. Continuou apenas a transcrever um texto do livro para o quadro.
Bento voou pelo corredor e pela escada até o pátio. Fez o que ninguém que preza pela higiene faria: entrou no banheiro masculino, logo após ele ter sido devastado por centenas de meninos suados durante o recreio. Sentiu desde longe o bafo quente de secreção invadir a sua boca. Entrou, ignorando o chão molhado. Escolheu a cabine que lhe pareceu a menos violada das três. Lá dentro, forrou o assento com três tiras de papel higiênico antes de sentar-se. Fez do pé esquerdo o peso para conter a porta de lata. Estava seguro. Tirou do bolso sua cartinha. Era uma tetéia. Uma obra de capricho adornada nas bordas com marcadores rosa e amarelo, numa sincronia de traços que seus amigos chucros nunca conseguiriam simular. No lugar do lacre, havia um adesivo laminado com a forma do Piu-piu, desses que vinham na contra capa de cadernos de espiral.
Puxou a carta. Era exatamente o que esperava. Seu sangue congelou.

Bento, aqui quem escreve é Darlene.

Fiquei sabendo pela minha mãe que um menino branquinho de cabelo escovado na nuca veio até a nossa casa, e por algum motivo não bateu no portão. Ficou só olhando de longe que nem cachorro perdido. Diz o meu padrasto que o tal do rapaz xingou e ameaçou ele também. Não sei, deve ser mentira dele. De qualquer forma, imaginei que esse menino era você, estou errada?
Não sei como você descobriu onde eu moro. Aliás, eu sei. As pessoas acham que eu sou boba porque eu tenho essa cara de paisagem, mas eu sei das coisas, eu vejo tudo. Sei por exemplo que uns três anos atrás, você me seguiu o caminho inteiro da escola até a minha casa, não é? Foi muito esquisito. Mas pode ficar tranquilo porque eu não falei pra ninguém. Nunca faria isso.
Você acha que eu nunca notei o jeito que você olhava? Não só no recreio, mas nas aulas, na saída, na educação física, na cantina, na feira de ciências também. Você acha que eu não sei porque você me quis na sua peça da quinta série? Pois é, Bento, você gosta de mim. E mesmo assim, você nunca tentou falar comigo que nem gente. Nunca veio me perguntar nada, nem que fosse coisa da escola.
Não sei se você é algum tipo de doente mental ou de tarado. Só peço encarecidamente que pare! Não gosto de gente me espionando. Muito menos de gente dando pitaco na minha vida. Disso já basta a minha mãe.
Ou será que você nunca recebeu um não? Eu já: um monte! E não só de homem. De todo mundo. Quando é assim você tem que saber lidar e tocar pra frente. Simples. Não é nada pessoal. Além do mais, a oitava série já tá quase acabando, e a gente não é mais criança. O que a gente precisa é parar de viver de ilusões e pisar num chão mais firme daqui pra frente.
Estou escrevendo essa carta de caneta, porque quando a gente escreve de caneta a gente não pode apagar, e não gosto de usar corretivo. Por exemplo, já vi que estou arrependida de te chamar de doente. Você não parece uma pessoa doente, só bitolada, eu acho.
Enfim...nem precisaria me explicar e olha só, já estou fazendo: tenho um namorado. Estou em um relacionamento, Bento. Ele te conhece e ele é forte. Tenho certeza que ele não precisa ficar sabendo que você está me seguindo. Bem, espero que leia esta carta. Não se ofenda, só não dê mais uma de louco. Meu padrasto é chato, não recebe ninguém em casa, e disse que se te encontrar de novo aqui na rua vai te bater e ligar pra polícia. Minha mãe não gosta que eu ande com gente da escola também. Então não piore as coisas. Você deve ter percebido que eu estou dando um tempo das aulas, né? Então aproveite e pense em outras coisas. Estude. Na próxima vez que me vir no recreio não me procure.

Ass: Darlene, 11/08/2002

Qualquer um ficaria ofendido em ser chamado de doido. Bento, porém, estava quase orgulhoso. Sentiu vontade de esfregar aquela folha sobre a pele. Podia, inclusive, comer o papel, para que as células mortas dos dedos mais lindos de Uberlândia fossem dragadas pela sua corrente sanguínea e sedimentassem sob o seu material genético. Contentou-se, porém, em guardar a cartinha no bolso como um amuleto.
Não tinha mais nojo do banheiro masculino. Ao sair, viu no espelho fosco um doente, mas um doente que, pelo menos, não havia passado incólume pelo coração de sua vítima.
Naquele resto de dia letivo, Bento não conseguiu se concentrar em mais nada. Nem ao menos ligou quando, na saída da escola, a professora Giovana antes de deixar o estacionamento dos professores, baixou o vidro do carro e lhe gritou:
— Tchau, Bento!
O que deixou seus amigos encabulados.
— Peraí — Interrompeu Gustavo — ela disse “tchau, gente” ou “tchau, Bento”?
— Acho que foi “tchau, Bento” — disse Tales.
Fábio não deixou escapar:
— Ihhh, vai comer…
— Eu vou sair com ela esse sábado… — aproveitou Bento. O anúncio suspendeu qualquer agenda do grupinho.
— A gente vai assistir um filme juntos.
— Cê tá me zuando? — Fábio perdeu o chão.
— Bentoso, come quieto demais — disse Gustavo, orgulhoso do pupilo — Você não ia contar pra gente não, seu filho da puta?
— Tô contando agora, uai.
— Quando?
— Esse sábado.
— Uai, e você tá com dinheiro? — Fábio passou de incrédulo à conselheiro.
— Como assim?
— Dinheiro, uai. Pra sair com mulher você tem que ter dinheiro. E se ela ficar com fome? Você não pode comprar uma bolacha pra ela. Como que você vai levar ela pro motel?
— Sei lá, aí a gente vai pra casa dela.
Todo mundo, até Tales, riu da resposta inocente. Bento quis chorar.
— Viaja, não. Leva uns cinquenta conto, pelo menos. A Giovana tem cara de ser rica — até Tales dava seu pitaco.
— No começo você gasta dinheiro mesmo. Depois, quando já tá namorando, dá pra levar nuns lugares mais barateiros — disse Gustavo, do alto de sua experiência conjugal — Mas, ei, a Giovana é gata. Leva um dinheiro.
Bento sentiu um toque pesado em seu ombro. Era Gilvan com um conselho definitivo:
— Acho que você devia investir. Sério.

Darlene reapareceu no dia seguinte, discreta. Após vasculhar todo o mapa do recreio, achou a menina próxima a um dos pilotis, em meio a uma rodinha liderada por um garoto ao violão. Mesmo com o clima abafado, como um prenúncio da primavera, ela vestia uma grande blusa de frio até o joelho, como se escondesse algo de si mesma. Da arquibancada, há muitos metros de distância, Bento vigiava e, ao mesmo tempo, fingia acompanhar Gilvan que tentava explicar para o grupo a sinopse de um filme que tinha acabado de assistir:
— Tipo, no início, ele participa dos rachas como qualquer um, né? Tipo um cara comum com um carro muito foda.
— Hm-hmm — Gustavo e Gisele assentiram.
— Só que o que ele queria mesmo era entrar na panela do Toretto. E pra isso ele tinha que ganhar o respeito da galera do racha, né? Aí, o que ele faz: ele não aposta dinheiro. Ele aposta o carro!
— Ó — Gustavo fingiu interesse — E aí?
— Aí que ele perde do Toretto, né? Por dez segundos de diferença. Só que, antes de entregar o carro, chega a polícia e todo mundo foge. E o Toretto foge que nem doido, num bairro que é tipo o Lagoinha deles.
— Só os malaco, então — disse Ariadne, nos braços de Tales.
— É...Mas aí que tá. Advinha quem apareceu do nada e ajudou o Toretto a fugir da polícia?
— Quem?
— O Brian.
— Quem é esse? — disse Fábio.
— O Paul Walker, uai.
— Sei quem é que não.
— Pff — Bufou Gilvan.
Gustavo ficou intrigado:
— Ô, Fabin. Você não sabe o que é “Velozes e Furiosos”, não?
— Que isso?
— Um filme, uai...Vin Diesel?
— Passou na Globo?
— No cinema.
— Mas o filme é em inglês?
— Como assim?
— Os caras falam inglês?
— Claro, eu falei que o nome do cara é Paul Walker, uai.
Gilvan riu sozinho porque sabia onde Fábio queria chegar:
— Véi. Olha o tanto que ele é ignorante. Ele está querendo saber se o filme é legendado.
— Uai Fabin, você tá querendo o quê?
— Tô falando pra vocês — Tales quebrou o silêncio — Fabin ainda assiste filme dublado. A gente foi assistir o Homem Aranha esses dias. Aí, depois de um tempão, quando o filme já tava acabando, o cara me vira e diz — Tales simulou uma voz anasalada — “ou, ou...você tá conseguindo ler as letrinhas?”
Todo mundo, exceto Bento e, talvez Gisele, riu violentamente. Gustavo chegou até a babar: “...as letrinhas, as letrinhas!”
— O negócio some rápido, o que que eu posso fazer? — O achincalhe não parava. Fábio foi perdendo o equilíbrio:
— Véi!... — Deu no primo um tapa molhado na nuca — Então eu vou contar pra Ariadne do dia em que você ficou chorando pra não assistir o filme da Samara. Como é que chama?
— “O Chamado” — disse Gisele.
— É! Ficou chorando igual bebê: “ah, não, cara... vâmo embora...” — Fábio também simulou a mesma voz anasalada — Tia Carmem teve que assistir com a gente, senão ele não entrava na sala do cinema.
— Pára de inventar, sô! Larga de ser orêia!...
— Você ficou uma semana sem dormir que eu sei!…
— Cala a boca!
— Cala o cê!
Sempre diplomática, Gisele usou de sua autoridade de representante de turma para amenizar a confusão:
— Gente, gente! deixa o Gilvan terminar a história do filme…Pronto. Vai, Gilvan:
— Valeu — pigarreou — Então. Paul Walker e o Vin Diesel viram amigos. Mas o que o Vin Diesel não sabe é que o Paul Walker era, na verdade, um alemão. Ele estava tava infiltrado, porque queria investigar uma quadrilha de uns Japa que roubavam carga e andavam de moto por aí que nem uns ninja...
— É por isso que você tatuou um Ninja no braço? — perguntou Ariadne.
— Não é Ninja, é Samurai. Mas talvez pode ter sido...

Quando o sinal recolhedor de alunos soou, a rodinha se desfez em núcleos menores. Fábio acompanhou as meninas bonitas em seu trajeto até a escada. Tales e Ariadne ficariam um pouco mais na arquibancada. Gisele foi direto pra sala e Gustavo pediu que Bento fosse com ele até o bebedouro. Caminharam em silêncio e Gustavo intiu algo de errado com Bento. Perguntou lhe antes de chupar a água da torneira:
— Cara, cê tá calado hoje.
— Sério? — viu Gilvan aproximar-se de Darlene — Nada, não (...) aliás, posso te perguntar um trem nada a ver?
Gustavo limpou a boca com o braço.
— Pode.
— Como ler a mente de uma mulher?
— Ih, aí você quer o impossível, né?
— He he. Mas é sério. Como saber o que a mulher quer de verdade? Quando às vezes ela manda sinais meio contraditórios, por exemplo, como se ela quisesse alguma coisa e não quisesse ao mesmo tempo?
— Cara, é difícil. Tipo, eu e a Gisele. Tem briga? Tem. Tem que engolir o orgulho e pedir desculpa? Tem. Tem que comprar um presentinho de vez em quando? Tem também. Mas a gente se gosta, apesar de tudo e a gente tem o mesmo objetivo que é o vestibular. Então isso ajuda, um ajuda o outro.
— Entendi.
— Mas é foda. A mulher é muito diferente da gente. Eu fico espantado de ver as bobeiras que a Gisele presta atenção. Por exemplo: se um dia a amiga dela esquece de dar bom dia, ela pira! A Gisele começa a achar que a amiga tá de mal com ela e que ela fez alguma coisa com a amiga. Daí elas param de conversar, daí eles reatam. Mas até lá, já aumentaram o problema formidavelmente. Eu não sei, acho que as meninas na maior parte das vezes não sabem o que querem. Ou elas querem ficar de bem com todo mundo. Acho que tem muita cobrança em cima delas.
Enquanto Gustavo se esforçava ao máximo para extrair da sua experiência uma teoria geral do sexo frágil, Bento se ocupava em decifrar a leitura corporal de Darlene e Gilvan. Nada demais, eles conversavam a uma distância casta, como irmãos. Por outro lado, eles tinham, sem dúvida, muito assunto e conexão, ninguém chegava tão perto assim dela. Uma coçada no queixo, um toque no cotovelo, nada demais. Mas quando Gilvan despediu-se com um longo abraço foi que Bento perdeu o equilíbrio: “Filho da puta, filho da puta!”.
Gustavo continuava a divagar:
— Eu tô chegando a conclusão que não é nem questão de entender a mulher, não. O cara só tem que estar lá, entendeu? Tem que ouvir o que ela quer e tentar ajudar para que ela não piore o problema. Pronto, é isso! O cara tem que ir lá e resolver...
Quem Gilvan achava que era para roubar a única menina a quem Bento amara na vida. Ele já tinha quem quisesse, o que ele queria cheirar com Darlene?
Mais eficiente que o sinal, Teolinda batia palmas ao pé da escada e chamava os remanescentes pelo nome. “Acabou o recreio! Bora, bora!”
— Ou, peraí — Gustavo abaixou-se para amarrar seu tênis de mola.
Talvez tenha sido Deus, ou o Universo, ou espíritos que guardam os Uberlandenses. Só sabemos que, ao perceber que Darlene caminhava em sua direção, Bento sentiu a História agir sobre o seu corpo. Sentiu que o destino tinha os aproximado pela última vez e não quis perder a chance. Nos termos de Gustavo, Bento “foi lá e resolveu”. Abandonou o amigo. Parou em frente de Darlene de supetão. Disse, olhando no fundo dos olhos:
— Eu quero falar com você.
— Pode ser depois?
— Não, Darlene. Chega. Eu preciso falar com você. Agora.
— Eu tenho que voltar pra sala. E você também.
— Eu não me importo mais. Darlene, mais do que qualquer pessoa, eu não queria que você me achasse um louco. E só Deus sabe que eu não quero atrapalhar a sua vida. Se você ao menos me deixasse explicar os meus motivos, cinco minutos é tudo que eu peço. Depois disso, eu sumo da sua vida para sempre, eu prometo que eu vou ser apenas uma lembrança ruim do seu passado.
— Teolinda tá olhando pra gente.
— Teolinda pode vir me bater se ela quiser. Mas eu não me importo mais porque eu preciso falar com você agora.
O olhar de Bento envolveu o de Darlene com um vigor decidido. Ela buscou Gilvan com os olhos, como se mentalmente o consultasse e disse, também decidida:
— Me encontra na porta da sorveteria amanhã às sete e quinze.
— Oi?
— Quando o sinal tocar não entra na escola. Não deixa o Índio te ver. Vem de blusa de frio, não vem de uniforme nem de mochila pesada. Eu vou te encontrar! — e sumiu por entre a maré de adolescentes que a levou escada acima.
A fortuna favorece os audazes. Era preciso sempre se lembrar disso.
Se já estava distraído nos últimos dias, as aulas restantes foram apenas uma longa chateação. Ele tinha outros problemas em mente, afinal amanhã seria um dia longo, o primeiro encontro (podemos chamá-lo assim?) desde o fiasco na casa do Gilvan. Era preciso não pisar na bola dessa vez. Era preciso parecer maduro, e para isso, a unanimidade dizia que ter um dinheirinho no bolso ajudaria, sem dúvida. É isso: a sensação da nota inteira e um valor redondo na carteira ou no bolso daria forças para andar ereto ao lado de Darlene. Onde Bento estava com a cabeça? Que tipo de pessoa fodida aparece a um encontro sem um tostão furado pra gastar?
Mais tarde, na volta para casa daquele mesmo dia, Bento esperou Tales e Fábio, depois Gilvan lhe deixar a sós com Gustavo para lhe dizer, encabulado:
— Cara, você é meu amigo, né?
— Claro, uai.
— Posso te pedir um favor?
— Uhum.
— Você tem trinta reais?
— Aí é foda. Pra quê?
— Porque amanhã eu não vou à aula.
— Por quê?
— Por que eu vou sair com alguém.
— Você tá me zuando! Quem? É a Giovana?
— Não! Ná não, quer dizer, não posso falar.
— Então não vou te emprestar.
— Velho! Você tem o dinheiro, pelo menos? Quer dizer…Gustavo, favor. Eu juro que depois eu te conto. Mas não quero, quer dizer, eu não posso falar agora. Você confia em mim ou não? Eu não tenho dinheiro e não posso pedir pra minha mãe senão ela vai perguntar para quê e eu vou ter que mentir e ela vai ver que eu tô mentindo.
— E o seu pai?
— Não...
— E o seu irmão?
— Prefiro roubar. Além do mais, ele é mais duro do que eu.
— Velho, foi mal. Eu não tenho mesmo. Tô juntando pra comprar o passaporte do Camarú. Mas eu posso pedir pra Gisele pedir pra mãe dela…
— Não, pelo amor de Deus! Esquece, eu dou um jeito.
— Então você vai matar aula, hein? Quem te viu e quem te vê, hein?
— De tarde eu passo aqui pra você entregar o trabalho de Geografia pra mim.
— Beleza. Não quer o dinheiro mesmo, né? Quer almoçar aqui pelo menos?
— Não. Almoço eu ainda tenho lá em casa.
— Beleza. Falou então. Cê tá comedor demais...— a frase soou abafada à medida que a Gustavo subia os degraus de seu apartamento de classe média.
Ao longo daquela tarde, Bento reviraria o céu e o inferno para arquitetar um plano para extrair dinheiro de seus pais. Pensou até em assaltar a bolsa de Célia, mas só usaria esse expediente quando a última opção fosse exaurida. Mais tarde, quando trouxe para a cozinha a louça suja, Bento estranhamente permaneceu por mais tempo na cozinha na companhia de seus pais. A certo ponto, trouxe um inusitado tema de conversa à baila:
— Mãe, sabe uma coisa que eu sempre sonhei em fazer desde criança?
— Hmm...?
— Falar em público. Sempre sonhei em aprender a falar em público.
— Desde criança você quis falar em público? Que história é essa? Todo dia você fala uma coisa diferente. Primeiro foi com bateria, depois veio o desenho, um dia desses falou que vai aprender francês, agora essa!
— Dessa vez é sério. Falando nisso, vai ter uma palestra de um cara no Center Convention sobre como falar em público e influenciar pessoas no meio corporativo — o final da frase soou totalmente robótico e decorado.
— E quem é o palestrante?
— Esqueci.
— Engraçado que eu chamei vocês pra irem na palestra do Divaldo Franco, palestra linda, praticamente toda psicografada e ninguém deu bola. Fui sozinha, a coitada. Agora me aparece uma palestra de um homem que você nem sabe o nome e de repente virou sonho. Quando vai ser esse negócio? Melhor: quanto vai me custar esse negócio?
— Trinta reais — disse quase chorando.
— Senhora da Abadia!...tem que arranjar um pé de dinheiro.
— Pra que alguém precisa de aula para aprender a falar? — interveio Vânio, despertando de seu silêncio de pedra anciã — Você tem que aprender é a desmontar computador. Computador é o futuro. Hoje em dia você pode gravar qualquer CD no computador. Sabia que tem um aparelhinho que custa cento e cinquenta reais, mais ou menos, que você instala no computador Depois eu mesmo vou começar a prestar meus serviços por aí, regravando filme e CD de música. Outra coisa, vocês sabem que o VHS vai sumir, né? E agora tão falando de uma nova tecnologia que vai vir pra substituir tudo. Mas, voltando ao assunto, acho que não. Trinta reais é muito dinheiro, dá pra comprar cem CDs virgens. Sem dúvida, não.
Célia deitou os olhos sobre o filho como quem diz “olha só com quem eu tenho que lidar”. Bento não teve forças para dizer mais nada, sentiu até a obrigação de lavar a louça, mas Célia o dissuadiu:
— Pode deixar...
Beethoven havia saído de moto e Vânio lia algo no computador. Tudo estava em paz. Um pouco antes de dormir, longe dos homens da casa, e enquanto passava roupa no quartinho dos fundos, Célia chamou o filho mais novo de canto, para pedir um favor e lhe esclarecer os termos de horas antes:
— Falar em público, hein? Não sabia que você queria ser empresário. Quando eu era da sua idade e morava na roça eu queria ser aeromoça, achava lindo. Mas não me arrependo de ter me tornado bancária. A diferença é que, em vez de ver o mundo, é o mundo que vem me ver no meu caixa. Mas você entende que às vezes é bom a gente não conseguir o que a gente quer, não é?
— Sim.
— Bem, seja lá qual for essa palestra, não sei se essa palestra é um filme, um açaí ou uma menina, mas só queria que você entendesse que a dinâmica aqui em casa é diferente agora. Seu pai segura muito o dinheiro e o seu irmão é difícil. É melhor ele nem ver eu te dar algum dinheiro porque ele pode ficar com ciúme, né?
— Sim, sim.
— Toma. Leva essa trouxa lá no seu quarto e põe o que for seu na gaveta. Aproveita e estende esse lençol na sua cama.
Bento caminhou derrotado até o isolamento do seu quarto sentindo o cheiro de amaciante e o toque da pilha fofa de roupas perfeitamente passadas lhe desarmar qualquer impulso criminoso. “Desculpa, Darlene”. Prometeu a si mesmo que no ano seguinte, ia arrumar um emprego de meio período. Ou talvez, não. Seria muito exaustivo.
Enfiou as camisas e as bermudas de qualquer jeito no gaveteiro. Montou dois bolos de meias e fechou o armário. Preparou-se para se deitar. E num golpe só, como um capote de toureiro, Bento estendeu o lençol no ar e viu incrédulo a última surpresa daquela noite sobrevoar o céu do quarto de dormir: três araras cor de rosa debandando do grupo e girando em torno do seu próprio eixo antes de cair por detrás da cama. Quando lançou-se para resgatá-las, Bento mal conteve o grito quando reconheceu que as espécimes somavam a quantia de trinta reais. Estava rico: “Ó mamãe! Ó mamãe!”
Antes de se recolher ao quarto e depois de desligadas as luzes da casa, Célia, já de camisola, receberia um “obrigado” silencioso do filho, ao que lhe respondeu com um aceno e o sinal do dedo indicador tateando os lábios em bico como se pedisse: “fica entre a gente, tá?”
Bento teve de contar quatorze milhões de estrelas antes que a noite o cobrisse com o manto reconfortante do sono. Quantos feitiços e alquimias a madrugada escura haveria de operar sobre a mente e corpo indefesos, antes que, no dia seguinte, os primeiros raios de sol iluminassem não mais um menino, mas um homem completo?