Capítulo 9 - “Bala de Prata”

Nono capítulo de "Darlene, meu Amor" (nome provisório) a ser lançado em alguma data do ano de 2021, espero.

Ninguém sabe quantas horas Bento tinha dormido naquela noite, mas é certo que o sono o encontrara desprevenido e a manhã de quinta veio cedo descortinar uma cena grotesca: Beethoven, que dormiu de boca aberta com a palma da mão contra a pele do rosto e a pálpebra, escancarando a córnea branca feito um cadáver que morrera urrando de dor após uma facada em uma briga de bar.
Levantou-se o mais rápido que pôde, desviando das caixas de tênis falsificados espalhados pelo quarto.
Depois de um banho olímpico, vestiu-se sem fazer barulho. Lembrou-se do conselho de Darlene: mesmo que fosse o dia mais quente do ano, era melhor cobrir o uniforme com uma grossa blusa preta que o deixasse mais parecido com um civil. Infelizmente, não poderia dar-se ao luxo de sair sem levar o fichário e todos os livros do MEC, porque Célia, que morava junto com o diabo nos detalhes, conhecia cada centímetro daquela casa e da alma dos homens que nela habitavam, e sem dúvida enxergaria no desleixo a prova de um crime em potencial.
Dez para a sete. Sorveu a vitamina de banana do liquidificador para o copo e bebeu. “Vou lá!”
No caminho até o Joaquim, Bento alisou várias vezes a carteira em seu bolso, e após fazê-lo, lembrava-se sempre de não andar encurvado, como várias vezes Gustavo o havia aconselhado a fazer. Alisou também o cabelo que molhava a nuca e parte da camiseta. Desviou da rota de sempre e nas novas ruas juntou-se à peregrinação dos alunos que conhecia apenas à distância no recreio. Desacelerou o passo quando avistou o portão fechado da sorveteria na rua Tapuios e despediu-se mentalmente dos companheiros de caminhada. Parou, debaixo de um pé de Salgueiro-chorão e expirou nervoso.
Sete e quinze e nenhum sinal de Darlene. Pior, a massa de estudantes ameaçava rarear na rua atrás da escola. Se não desse um destino certo para si, o sinal ia tocar e Índio viria para fechar de vez o portão. Aí sim, estaria ferrado de verdade. Meu Deus!
Caroline, uma das meninas populares da sala e melhor amiga de Gisele, lançou-lhe de cima do banco do passageiro da caminhonete conduzida pela mãe um olhar de interrogação. Outros colegas menos importantes também o flagraram ali no passeio, estranhamente plantado próximo à escola, exalando a culpa do réu confesso.
O sinal do Joaquim soou doloroso e Bento sentou-se na calçada sobre o seu fichário, enterrando o rosto nas mãos. A iminência de um bolo de Darlene — “como fui otário” — fez com que jurasse para si mesmo que, se assim fosse, não entraria de jeito nenhum por aquele portão azul. Daria uma de doido e viveria um dia para si, gastando sem medo seu dinheiro com sorvete e cinema pelas ruas de Uberlândia.
É isso, mataria de qualquer jeito aquela aula. Estava agora em paz consigo mesmo.
Mas a voz da menina foi mais rápida que o curto momento de decisão.
— Bu!
— Ah, oi! Que isso? Quer dizer, de onde você apareceu, Darlene?
— Dali! — apontou para a frondosa mangueira do terreno baldio ao lado da escola.
— Ela dá direto pra quadra de futebol. Os meninos da minha sala até cortaram um galho pra descerem dela mais fácil...
Bento entendeu tudo quando notou os restos de casca de árvore nas palmas da amiga. Tratou de levantar-se rapidamente apoiando no pé de chorona e disse:
— Você acha que ele viu a gente?
— Ele quem?
— O Índio.
— Com certeza.
— Ah, que merda! Tamo fodido.
— Larga de ser bobo, sô. O Índio sabe de cor quem entrou e quem não entrou na escola. Certeza que ele notou a sua ausência. Só que é aquela coisa, não pode dar na cara, né? Um diazinho na semana não faz falta pra ninguém. O tenso é se você faltar dois, três dias direto…
— Aí o que acontece?
— Uhum... Aí é chato porque o Índio conta pra Teolinda e a Teolinda liga pra sua casa.
— Então a Teolinda já deve ter te ligado...
— Ligou. Várias outras vezes também.
— Sua mãe não se importa, não?
— Ela enche o saco, mas não tem coragem de falar um “a” contra mim.
— Nossa, se a Teolinda ligasse lá em casa eu acho que morria, ou alguém me matava antes.
Ela simplesmente ignorou o que Bento disse.
— Darlene, é...você quer conversar aqui?
— Não, seu louco. A gente não pode ficar aqui, não. A gente tem que ir embora antes de todo mundo entrar. Começa a andar, vai...
— Ah, foi mal. É que eu nunca fiz isso antes.
— Eu sei.
— E pra onde a gente vai?
— Não sei. Para onde você quer ir?
— Eu pensei de a gente andar pelo Shopping, sei lá — alisou o cabelo.
— Não. Shopping é pra ficante. Quero não.
— Uai...então você quer andar à toa no centro?
— Pode ser.
— Ah, tá bom. Se a gente pegar o Umuarama a gente chega lá mais rápido. Ou a gente pode ir a pé.
— Perfeito! Vamos a pé então, e vamos pelo caminho mais longo.
Darlene disparou na frente e Bento teve a impressão de caminhar por dentro de um sonho cuja ordem extrapolava a lógica de causa e efeito. A melhor forma de vencer a vertigem e adentrar naquele mundo seria não pensar em absolutamente nada e deixar ser conduzido por ela, mais experiente. Darlene arrastava pelas calçadas quebradas o velho tênis rosa de dois anos atrás e o melhor de seus dois jeans apertados, este com rasgos nas coxas e em cada joelho bem à moda das meninas do oitavo e das atrizes da TV. Por cima do uniforme gasto, quase totalmente desbotado nas cores da escola, ela vestia uma jaqueta brim que parecia ser o item mais novo de seu guarda roupa (um presente, talvez?) e uma mochila de pano quase vazia, repleta de desenhos de caneta esferográfica azul e corretivo. Sem medo de ser vista, Darlene o guiou ladeira abaixo pela rua dos Carrijos. A luz do arrebol iluminou as têmporas da menina e revelou um detalhe nunca capturado pela lente doentia de Bento: uma cicatriz nos pólos opostos de seu supercílio e que contava a história mal sucedida de uma perfuração de piercing. Engraçado, não lembrava de tê-la visto com um piercing, deve ser coisa recente. De qualquer forma, havia mesmo essa moda, especialmente entre as meninas mais avançadas do Joaquim. Talvez ela tivesse um parecido no umbigo também. Imaginou, então, uma seara de pêlos negros e finos adulando a argola de aço sobre um ventre arfante de menina e suspirou.
Ficaram um bom tempo em silêncio. Era preciso dizer algo, qualquer coisa:
— Acho que você deve estar com raiva de mim, né?...
— Sobre o quê?
— Sobre tudo, ué. Pelo que eu fiz segunda, por aquela ceninha no sábado na casa do Gilvan...pelos últimos anos…
— Nada, esquece isso.
— Não, na verdade, eu acho que agora é uma hora interessante para eu me explicar. Beleza, eu tô agindo um pouco estranho ultimamente. Na verdade eu mesmo devo ser uma pessoa estranha para os olhos das pessoas normais. Mas juro que foi tudo um mal entendido, eu mesmo nem sabia que você morava lá. Quer dizer, há uns três anos atrás...
— Bento, sério. Não esquenta mais com isso. Tá tudo bem, juro.
— Jura?
— Juro.
— Por Deus?
— Uhum…
Foi Darlene quem rompeu o silêncio e o tédio das casas cor de creme do Saraiva:
— Qual é o seu signo?
— Ahn?
— Qual é o seu signo, Bento?
— Não sei. Como que vê isso?
— Pelo aniversário. Quando que é o seu?
— 22 de julho.
— Você é de câncer... ou de leão, não sei direito. Mas de qualquer forma é uma mistura doida. Câncer gosta de brincar de se esconder, é como uma conchinha que com amor abriga num mínimo grão de areia e transforma ela numa belíssima pérola. Agora, o leão é um reizinho, bravo e destemido, que acha que quer ser visto e receber aplauso até pelas coisas mais insignificantes que eles fazem...
— Nossa, que viagem, e quando é o seu aniversário? (Bento fingiu que não sabia)
— Um mês depois, sou de Virgem.
— E o que isso quer dizer?
— Sei lá. Gente doida...
Minutos depois, quando ganharam a imensidão da avenida Rondon Pacheco, os adolescentes se olharam de frente. Estavam à revelia, expostos aos vultos de carros sobre a pista quente da avenida mais rápida de Uberlândia. O sol seco das oito horas e suas milhões de lâminas de luz os obrigavam a tomar uma direção firme.
— E agora? — disse ele, fazendo sombra sobre os olhos com a mão.
— Vem comigo...
Darlene se mostrou muito mais à vontade com os atalhos por entre o bairro do Cazeca, de onde despontava à distância, em meio ao vale espelhado que nasce do pé da avenida Rondon Pacheco, o muro atijolado do Messias Pedreiro, uma espécie de irmão mais velho do Joaquim Saraiva e repositório natural dos alunos que se formavam no Quim e não conseguiam escapar da proteção do ensino médio público. Era lá onde os matadores de aula da região gravitavam antes de irem para o shopping ou para o bar com sinuca mais próximo. Na rua arborizada em frente à portaria da escola, mais de uma dezena de adolescentes, meninos e meninas mais altos e mais velhos que Bento e Darlene, folgavam sem medo da vigilância profissional. Motociclistas rondavam pelo quarteirão, e alguns deles paravam para conversar com os alunos e fumar com eles. Lá dentro na escola, o som das vozes guturais de adolescentes poderia ser intimidador, mas não para Darlene, que já era uma conhecida e aceita por eles como uma igual. Bento sentiu no coração uma ponta de ciúme quando ela acenou para uma das meninas de um grupo que olhava fixamente para o chão.
— Sa-ra!
— Ô, minha filha! Chega aí.
Sara era uma garota negra, alta, com longos cabelos anelados e porte de jogadora de vôlei.
— Que que tá acontecendo?
Apenas indicou com o queixo a cena aos pés do grupo:
— Apareceu aí.
Era uma pobre vira-lata, enorme e pesada, caída sobre o passeio de concreto com seu ventre disforme, respirando com o focinho aberto e molhando o chão com a saliva. Alguém havia trazido inutilmente um pote de margarina com água, mas a cadela não tinha forças para nada além de respirar e chicotear o rabo contra o chão.
— Ela tá machucada? — perguntou Darlene.
— Pois é, parece que ela tá com a patinha machucada, ó.
— Né não, sá! Ela tá prenha — disse outra menina, com gesso no braço e ar de superioridade.
— Como é que é?
— Ela tá buchuda, vai ter neném.
Darlene compadeceu da cadela. Ajoelhou-se diante dela e alisou o crânio que era amplo como o de uma pessoa. Tateou as orelhas em busca de carrapatos e viu na córnea branca exposta e nas linhas de remelas, a agonia dos pobres coitados de todo o mundo.
— Ela não pode ficar aqui, não, gente.
— Melhor levar prum lote, né? — disse Sara.
— Não, não. Cê tá louca? — disse a outra menina — Tem que chamar é a carrocinha pra tomar vermífugo.
— Não, Isso não! Eles vão matar ela lá, sua desalmada!
— Uai, então o que a gente faz?
— Uai, vamos ficar aqui por enquanto até ver o que fazer com ela. É o jeito. — respondeu Sara.
— Tadinha. Ela é linda, parece a cadelinha do Gilvan.
Bento não disse nada diante da cena, apenas obedeceu quando Darlene o chamou:
— Bora.
— Você não quer ficar mais um tempo com ela?
— Não. Ela não vai aguentar desse jeito. Eu não quero ver. Quero ir embora.
Bento pensou, e resolveu arriscar:
— Quer ir na Lojas Americanas, ver CDs comigo? Abre às nove.
— Quero.
— Beleza, mas não vamos passar por aqui não, porque minha mãe às vezes faz compras aqui.

Aos poucos, entre descobertas casuais e rememorações de migalhas do passado, os dois amigos se reconciliavam, ao mesmo tempo que tentavam desviar das ruas e dos assuntos que mais lhe doíam. Bento logo notou alguns padrões no comportamento da amiga: Darlene tinha uma sanha inquisidora que o assaltava sempre com uma lista de perguntas e o impedia de conduzir qualquer linha de pensamento por muito tempo, e uma tendência de emendar um assunto no outro, como uma boneca russa, ou uma cartola de um mágico, de onde saem as coisas mais absurdas.
— Vem cá. Às vezes você não acha que tudo isso, os carros, as árvores, são peças de um cenário e as pessoas na rua, todos figurantes? E aí, de repente, você enxerga um contrarregra, alguém que você nunca tinha notado e percebe que puf!... a sua vida inteira foi um filme que começou a ser filmado quando a gente era pequeno? Seus amigos, sua família, nada existe de verdade e são todos atores contratados...
— Não. Mas às vezes eu me pego imaginando sobre essa história de universo. Tipo, ele é infinito, né? Então, quem criou o Universo deve estar criando ele até agora, né? E a gente aqui na Terra tá ficando cada vez mais insignificante perto da vastidão de espaço…
— Nossa, é mesmo!

Os criminosos escolares chegaram finalmente à praça Tubal Vilela, um dos últimos rebentos do paisagismo desenvolvimentista dos anos 50 e 60, com direito a canteiros afrancesados, um busto em homenagem a Juscelino e um chafariz no centro de um espelho d’água azul piscina. Na Tubal Vilela era também onde a fauna do centro da cidade se mostrava em toda a sua decadente e pulsante diversidade, onde os ônibus despejavam donas de casa (como a mãe de Darlene) e outras mulheres de blazer verde oliva ou azul marinho com as estampas dos consultórios médicos ou odontológicos para onde se dirigiam. Havia bancários, office boys, pequenos advogados, corretores de imóveis, garis, despachantes, ambulantes, vendedores de picolé e pregadores evangélicos, todos eles convivendo em harmonia desconfiada com mendigos, amputados e ciganas a abordar quem as olhasse nos olhos aos pés da escadaria da Catedral de Santa Terezinha. Nas extremidades da praça retangular ficavam as bancas de revistas, e, ao lado destas, filas se formavam em frente a homens broncos, sentados em minúsculos banquinhos de plástico e que se ocupavam no expediente semi-legal de negociar em dinheiro o valor de cupons de passagens de ônibus. Ao redor, uma Caixa Econômica Federal e muitas, muitas lojas de departamento.
Em frente à praça, na avenida Floriano Peixoto, erguia o arranha-céu espelhado do Edifício Chams e que, pela óbvia imponência com que se sobrepunha ao tedioso relevo de das lojas de varejo, foi se tornando um dos poucos prédios reconhecíveis de uma cidade quase sem história e sem pontos turísticos. O térreo do edifício Chams abrigava a maior atração do centro de Uberlândia, as Lojas Americanas, parada obrigatória para os turistas das cidades vizinhas e um lugar que, até para quem não tinha dinheiro, servia de distração, com alguma dose de criatividade. Entraram.
Darlene foi logo para a seção de roupas femininas e parou em frente a um exíguo espelho oval onde passou a se ver experimentando vários óculos, dando preferência aos mais extravagantes e aos mais caros. Bento sentia prazer e orgulho em vê-la vaidosa assim. Ficou um tempo analisando as mechas loiras de seu cabelo castanho ondulado. Depois, decidiu extrair daquela neve de menina a primeira risada do dia e montou uma ridícula combinação de óculos de surfista com um boné de velcro:
— Como que eu tô?
— Parecendo um cafetão.
Ela seguiu, deixando Bento sozinho a indagar o que seria um cafetão.
A escada rolante, ritual obrigatório para quem estivesse no centro, os conduziu como anjos até o segundo andar da loja, a ala dos brinquedos. Ali era onde um jovem Bentinho, manso e gordinho, passava horas e horas tateando e experimentando com as mãos as embalagens, sonhando com o mostruário de action figures, os “hominhos” que ele nunca teria, enquanto sua mãe e sua tia buscavam suprir alguma necessidade doméstica, um lençol ou panos de pratos novos. Anos depois, quando os brinquedos e os desenhos animados foram perdendo graça, o local preferido do adolescente nas lojas Americanas seria outro: a loja de CD 's. Conduzir Darlene até seu santuário de música era como abrir-lhe a caixa forte com os maiores tesouros do seu coração. E lá estavam eles.
— Eu não acredito! Vem, vem...
— Calma, tô indo.
Bento tomou um CD de capa azul da vitrine e o chacoalhou com as duas mãos em frente a amiga:
— Darlene, eu sei que isso parece besta pra você, mas, tipo, essa é “a” melhor banda do Brasil e, sem dúvida, uma das melhores do mundo!
— Legal, deixa eu ver. É um duende na capa?
— Ahn, não sei. Acho que sim.
— Angra...legal!
— Esse é o primeiro CD deles sem o vocalista original, o André Mattos, e é um grande passo pra banda. Muitos fãs fecharam a cara para o novo vocalista, mas eu não! Eles estão aí, renascendo das cinzas feito uma fênix, mais melódicos e mais virtuosos do que nunca! — disse Bento, ensaiando movimentos teatrais e épicos.
— Mmm, vou ouvir depois. Mas acho que Angra é meio demais pra mim, eu gosto é desse aqui ó...
A inesperada roqueira resgatou um álbum do qual Bento e a nação metaleira do Brasil tinham nojo.
— Que cara é essa? Ah...vem dizer que você não gosta? Todo mundo gosta, sô. Eu amo. “Sweet Child” me lembra demais o meu irmão — Ela suspirou enquanto lia a lista de músicas — Meu Deus, você sabe que o meu irmão colocava Guns pra tocar todas as vezes que ia tomar banho? Todas as vezes! Durante um tempo eu odiei o solinho do Slash com todas as minhas forças. Hoje, não. Hoje eu acho que é a música da minha vida...
— E por onde anda seu irmão? Se eu fechar os olhos eu vejo até ele com a bicicletinha dele, indo te buscar lá no Joaquim.
— Não sei.
— Como assim?
— Ninguém sabe, na verdade. Dizem que ele tá morando lá no Prata, mas o pessoal inventa muita coisa.
— O que aconteceu com ele?
— Ele é muito cabeça dura. Depois que papai morreu ele foi ficando mais calado, mais na dele e foi parando de dar satisfação. Depois ele começou a dar trabalho, a desafiar a minha mãe. Um dia ele simplesmente saiu, mas só fez isso porque ele não aceitou outro homem que não era o papai em casa — devolveu o álbum em seu lugar na prateleira.
Bento observou Darlene tamborilar o plástico das outras capas de CD 's e achou-lhe melancolicamente perfeita. Pensou também que talvez existissem outros motivos pelos quais os seres humanos escutassem música que não apenas a qualidade técnica dos músicos. Daí em diante, experimentou ser conduzido musicalmente por ela.
— Eu adoro esse também, você gosta?
— Gosto, gosto.
— Quando alguém fala alguma coisa duas vezes é porque é mentira.
— Não, não.
— Tem uma música aqui que eu adoro, cadê?
Bento aproveitou para se aproximar da órbita de Darlene e dividir com ela a leitura do encarte. Ao mesmo tempo, sorveu o cheiro do seu perfume de menina, tomando o cuidado para não rolar em seu ombro, o que poderia parecer uma bela de uma forçação de barra. O cheiro doce o fez se sentir lisonjeado ao imaginar que ela havia tido o cuidado de não sair de casa sem se perfumar, enquanto ele mal mal usava o desodorante.
— A música começa assim com um toquinho de violão, meio rápido, mas leve, como a brisa do mar deve ser. Que nem no clipe. Eu até quis aprender a tocar violão durante um tempo só pra aprender a tocar essa música.
Darlene, de olhos fechados, começou a cantar em um inglês macarrônico:

“Road Trippin’ uê tá tu fê, ei-ei-lái”...

Ambos abriram os olhos e Darlene continuou lendo a contra capa:
— Essa é boa, essa é boa e essa é boa também…
— Quanto que é? — Bento fingiu sentir o desdém que os ricos sentem quando vêem o preço em uma etiqueta:
— R$ 26? Vou levar!
Sacou sua carteira infantil e estrategicamente tocou nela de leve no pulso conduzindo até o caixa. Pagou o álbum com as três notas de dez reais lançando-as até o balcão como se fossem cartas de pôquer. O CD foi inserido numa sacola de plástico grosso por uma atendente meio cheinha e de cabelo vermelho. Deixaram a seção de música e caminharam saciados pelo segundo andar. Darlene retirou o álbum da sacola e abriu o encarte com a curiosidade dos fãs quando têm a oportunidade de manusear um álbum original.
— Nossa, queria muito ser você agora, sério. Só pra poder escutar o “Californication” pela primeira vez de novo. Pronto. Já vi. Você vai adorar. Toma.
— Que que você tá fazendo, sô. É seu. Eu comprei o CD pra você!
— Sério?
— Sério.
Darlene olhou para o chão, melancólica. Não era a reação esperada.
— Você não precisava ter feito isso.
— Uai, se você quiser eu devolvo, mas achei que você ia gostar. Foi mal.
— Não, sim. Eu adorei. Eu tinha ele pirata só. Obrigado — Abraçou-lhe de um jeito frio.
Sem saber se realmente havia agradado, teve a impressão que havia penetrado em uma camada mais funda da confiança dela, e o abraço fê-lo sentir, pelo menos, a plenitude do corpo dela contra o seu. Acertou em cheio, apesar de tudo. Alguns passos depois, porém, tomou consciência de um novo problema: “Eita porra!”
— Ei, então...acho que eu fiz besteira. Eu meio que gastei todo o meu dinheiro. Tipo, eu só tenho o troco agora, e eu acho que mal cobre a passagem de volta.
— A gente volta a pé, não tem problema.
— Ah, não. Tô suando pra caralho, e o pior que eu tô é com fome agora. Pensou que talvez ela nem havia tomado café da manhã. Que mancada!
— Então, o que a gente faz agora?
Darlene olhou ao redor e disse:
— Vem comigo.
Que fique registrado: foi ela quem tomou a mão de Bento, o conduzindo por entre os corredores da ala de utensílios de cozinha de volta para o primeiro andar. Passaram por entre os clientes da sessão de mesa e banho e acessaram o corredor das coisas gostosas, exatamente na sessão dos biscoitos recheados. Darlene girou o corpo 180 graus em torno de si mesma, apoiando o braço contra a prateleira de um jeito altamente não-natural e disse:
— Conversa comigo.
— Como assim?
— Qualquer coisa.
— Qualquer coisa tipo o quê?
— Rápido!
— Que você vai fazer, hein?
— Vai logo!
— Ah, tá bom! É...deixa eu ver...cólera, meningite, diarréia, tétano, botulismo, pneumonia e tuberculose. Essas são as principais doenças causadas por bactérias… Darlene meneava roboticamente e incentivava:
— Que interessante, fala mais!
As bactérias são organismos microscópicos que apresentam apenas uma célula e não possuem núcleo delimitado por mem...brana.
Bento quase perdeu a fala quando viu um pacote de Passatempo ganhar vida própria e deslizar por dentro da jaqueta dela.
— Ah...São organismos bem-sucedidos, sendo encontrados nos mais variados ambien...
A pequena ladra de lojas de departamento subtraiu também uma garrafa pet de tamanho considerável, o que deixou seu comparsa aterrorizado. Bento olhou nervoso para os lados e teve a impressão de ter visto uma vizinha do bairro Saraiva.
— Não saia agora, vem comigo até a lanchonete e continua falando…isso, agora me abraça!
E como se previsse a falta de uma opção de sal, Darlene, nos braços de seu admirador mais longevo, resgatou duas embalagens de chips e as inseriu na região da virilha dele, no espaço entre a calça jeans e a cueca. Bento quase morreu.
— Agora vem comigo e não olha pro guarda. Isso, isso…
Caminharam abraçados em direção à entrada. Darlene teve ainda o sangue frio de resgatar uma caixa de Bis.
— Isso, isso. Não dá pala! Pronto, já vamos sair...continua e não olha pra trás, beleza?
Bento não deixou de notar o olhar do vigia através das câmeras de segurança da Loja. Sem dúvida, uma das meninas do caixa, havia percebido.
— Quando eu falar pra você correr, você corre. Beleza?
— Tá.
— Corre!
Quase foram atropelados umas duas vezes, mas alcançaram vivos e cheios de adrenalina no sangue o piso de pedrinhas listradas da praça Tubal Vilela, os dois mais novos trombadinhas da cidade. Como efeito indesejado, eles dispararam a rir alto do ridículo daquela situação. Ao ouvir pela primeira vez uma risada completa de Darlene, Bento só conseguia pensar como estava feliz por apenas estar vivo: “Eu te amo, Darlene, eu te amo!”.
A pressa fez o refrigerante escorregar da jaqueta dela e quicar no chão quente da praça do centro. Darlene agora se contorcia e chorava de rir, Bento só queria não chamar mais a atenção — Bora! — Recolheu do chão a garrafa cheia de gás borbulhante e continuou a correr, esmagando os chips sob a sua calça.
— Por aqui não, minha mãe trabalha nessa rua!
Tomaram a avenida Afonso Pena, quase trombando em cada dona de casa que deixava as lojas de departamentos — Foi mal, foi mal!. Quando se viram longe o suficiente do perigo, deram-se as mãos por alguns segundos, e, como dois velhos amigos ou novos amantes, se misturaram à população de gente honesta nas portas do labirinto de contrabando tolerado do Camelódromo. Avistaram, então, a sombria praça do Fórum que servia de antessala para o verdadeiro orgulho uberlandense: o Terminal Central, inaugurado poucos anos antes, e até os dias de hoje, símbolo mor do progressismo logístico da cidade.
Subiram as escadas do centro de compras anexo ao Terminal e namoraram por um tempo as vitrines de roupas. Darlene adorava a moda dos skatistas, achava-os lindos; e não tirou os olhos dos tênis em promoção:
— Bentô, acho que você ia ficar ótimo num desses.
— Nossa, feio demais!
— Cê que é feio…
O grande relógio eletrônico da praça de alimentação marcava 11:15 e, debaixo da abóbada, todos os tipos de bocas mordiam os enroladinhos (de salsicha e de presunto), as coxinhas, os quibes e os folhados de frango besuntados de ketchup ralo e morno. Uma lanchonete, com uma máquina de sorvete italiano à um real, feita à imagem e semelhança da do McDonald 's, era especialmente popular entre as crianças. Próximo a ela, os dois encontraram a mesa de seu primeiro banquete romântico.
Realmente, o lanche não poderia estar pior. Metade do gás do refrigerante vazou quando aberto, molhando tudo, a mesa e a roupa deles. O refri estava quente àquela altura, e, ainda por cima, tiveram de dividir o mesmo gargalo. Além de molhada, a mesa era só farelo de biscoito fraturado e embalagens de chocolate. O salgadinho, infelizmente, era enjoativo, Darlene não mirou em uma marca boa. Apesar de tudo isso, estavam satisfeitos.
— Quero saber que dia você vai cortar esse cabelo — disse ela, de boca cheia.
— Que que tem ele?
— Te deixa parecendo mulher.
— Sério? Eu tava pensando em deixar ele crescer um pouco mais.
— Não, não faça isso — bebeu um gole — Pelo amor de Deus!
— E por que você se importa tanto?
— Eu não me importo, é pelo bem comum da sociedade.
Quando ninguém mais aguentava comer besteira, resolveram passear por outros temas. Darlene desenhou com uma caneta esferográfica na palma da mão aberta de Bento uma casinha, o que a fez lembrar de sua própria:
— Eu não aguento mais.
— O quê?
— A minha mãe, ela me odeia.
— Darlene, isso é impossível, ela é a sua mãe. Eu também brigo com a minha. Às vezes fica tudo caótico lá em casa. Mas eu tenho certeza que no fundo, todo mundo se atura.
— Não, é diferente. Você não ia entender. Parece que ela quer que eu me mude de casa, sei lá. Parece que ela quer me diminuir. Eu não aguento mais ter que ir com ela na casa dos clientes dela, não. Perdeu a graça. É muito pesado, você não tem ideia.
— Aquele senhor que mora com vocês não é seu pai, né?
— Não, é tipo um padrasto. Ele está lá em casa há um bom tempo. Ano passado o bicho caiu de moto no São Jorge e quase morreu, hoje não anda mais. Antes tivesse morrido. Agora fica o dia inteiro morgado, assistindo televisão. E enchendo o saco da gente. Fica falando que a minha mãe engordou muito e não dava mais conta do trabalho. Disse que eu não faço nada da vida também. É um viado.
— E o seu namorado?
— Que que tem ele?
— Que que ele acha disso tudo?
— A gente não fala dessas coisas. É um amigo. Ele sempre esteve próximo a mim e sempre que eu precisei esteve lá. Por bem ou por mal. Eu tenho muito a agradecer a ele. — os olhos dela marearam.
Bento sentiu que não tinha direito de interferir nos problemas dela e se resignou à posição de confidente. Mudemos de assunto.

Mais adiante, na ala esquerda da praça de alimentação, próximo à escada de entrada da avenida João Pessoa, uma massa considerável de pessoas se aglomeravam como em um roda de capoeira. Ali tinha coisa.
— O que é aquilo?
— Parece que estão filmando alguma coisa.
— Sério? Quero ver...
Aproximaram-se. Abrindo espaço por entre as pessoas da turba, viram um cenário improvisado, com suas câmeras, suas luzes altas e rebatedores, multiplicando a luz e o calor de uma manhã que por si só já era luminosa e quente. No meio da roda, coordenando com muito carisma a pequena multidão, estava o famoso repórter da TV local, Ronaldo Kelsen. Ronaldo e seu “Bala de Prata” invadiam as casas uberlandenses na hora do almoço com uma programação que oscilava entre as já consagradas brincadeiras de auditório de sempre e o noticiário mais tenebroso dos últimos crimes cometidos na cidade. Era um famoso “pinga-sangue”, fenômeno de audiência. As pessoas amavam Ronaldo Kelsen, e Darlene também. Ela assistia ao “Bala de Prata” todos os dias, seja em sua casa, seja no meio da faxina na casa de alguém. Quando o reconheceu o apresentador, a menina puxou com força o braço de Bento que fez de tudo para fugir da câmera:
— Cê é doida? Eles vão filmar a gente!
— Eu só quero ver como ele é de perto.
A transmissão ao vivo pela TV provavelmente omitia o suor que o paletó lhe imprimia, mas Ronaldo Kelsen era um profissional e, apesar das condições, hipnotizava a câmera que o seguia como um cachorro a seu dono. Seu porte físico lembrava o vigor dos militares aposentados, de cara quadrada, um corpo de boi parrudo debaixo do terno e um largo sorriso de dentes brancos: um tipo atraente para as senhoras mais velhas. Tinha o talento natural de conversar com o povão e entregava para seu público o que seu público queria dele: a austeridade da lei contra os criminosos e uma leveza do trato de um bicheiro em um pagode de domingo na hora de fazer troça. Diziam que o programa era a sua plataforma para a câmara de vereadores nas eleições daquele ano.
No meio do palco improvisado, havia também uma motocicleta, novíssima. Talvez se tratasse de algum tipo de sorteio, já que muita gente trazia um bilhete com um número em série na mão.
A certa altura Ronaldo Kelsen anunciou:
— Quem que vai voltar pra casa com uma Honda CB 500 novinha, novinha?
O público foi ao delírio. Até Darlene respondeu à pergunta retórica de Kelsen, como se estivesse em um show de rock. Bento olhou para ela com desprezo.
Ao longo de quase uma hora de programa, o apresentador fez graça com a plateia, contou algumas piadas e, nos momentos de seriedade, fez discursos moralistas contra a justiça do Brasil. Ronaldo Kelsen ameaçou anunciar em falso o sorteio da moto várias vezes, e no auge da expectativa geral, chamou os comerciais várias vezes também.
Depois de três blocos e várias inserções de merchandising, a produtora do “Bala de Prata”, uma mulher de cabelos longos ajoelhada ao lado do cameraman, fez sinal com o pulso, como se pedisse que Ronaldo Kelsen encerrasse logo o programa. O apresentador voltou para a sua bancada e retirou dali um envelope.
— Fecha em mim, fecha em mim!
A pequena multidão ficou ansiosa.
— Mas antes! Antes de a gente saber quem é o felizardo que vai voltar pra casa com uma Honda novinha, quero saber: quem é que vai para o Camarú 2002?
Kelsen retirou do envelope dois pedaços de papel laminados e os ergueu no ar:
— Valendo dois, dois ingressos para o maior evento do agronegócio da região do Triângulo, um dos maiores eventos de sertanejo do Brasil! Quem aí quer ir para o Camarú pra ver o Bruno e Marrone!?
O público gritou em uníssono.
— Quem aí gosta do Bruno e Marrone!?
A mesa de som liberou pelos alto-falantes o último sucesso da dupla, a mais famosa do Brasil naquele ano. O povão caiu num terceiro delírio.
— Mas para levar os ingressos eu já falei, eu já falei...você pode comprar o passaporte nos pontos de venda OU, OU você pode vir aqui e responder à pergunta misteriosa que o Budinha vai revelar pra gente. Não é, Budinha?
Budinha era um assistente de palco anão que por algum motivo de roteiro estava fantasiado de pulga, com asas de celofane, botinhas pretas, antenas e tudo mais. Budinha trazia na mão uma urna preta vazada na parte de cima de onde retirou um envelope com a pergunta misteriosa e a estendeu para Ronaldo Kelsen.
— Por que você tá me entregando? Larga de ser inútil, Budinha. Lê você. — Ronaldo Kelsen aplicou um tapa violento na cabeça do anão.
Budinha fez o máximo que pôde para se recompor e ser ouvido com sua voz débil:
—Posso falar?...Qual o país?... Qual o país cuja moeda oficial se chama “pula” — Budinha imprimiu um pulinho sobre si mesmo, com a correlata sonoplastia pela mesa de som.
— Como é que é Budinha? Faz o pulinho de novo — Todo mundo riu do anão.
Como é do feitio dos apresentadores de programas de auditório, Ronaldo Kelsen repetiu a pergunta misteriosa uma dezena de vezes: ‘Qual o país cuja moeda oficial se chama “pula”’. E toda vez que dizia o nome da moeda, pedia para Budinha pular mais uma vez.
Bento, que já estava aderindo à diversão circense do “Bala de Prata” tomou um susto quando Darlene lhe tocou no cotovelo e disse:
— Eu sei.
— Sabe o quê?
—A resposta da pergunta, eu sei.
Feito os dinossauros dias antes da queda do meteoro, os brasileiros viviam até então cegos para a grande popularização da internet que viria anos depois. Uma informação como essa que Budinha buscava, poderia demorar vários minutos, talvez uma hora inteira, para ser obtida. Seria necessário que o curioso acessasse a internet por um obsoleto site de buscas a partir de um computador de mesa ou levantasse da sala e consultasse uma das antigas edições da Enciclopédia Barsa (em caso de tê-las em casa) na parte que tratava sobre as moedas oficiais dos países. E mesmo assim, encontrada a resposta, essa pessoa teria que ir pessoalmente e em tempo hábil até o centro de Uberlândia para dizê-la no microfone de Ronaldo Kelsen, ou ainda, ligar de um telefone fixo para a produção do “Bala de Prata”. Os smartphones não haviam sido inventados até então, e por isso, quem estivesse lá, ao lado de Ronaldo Kelsen, Budinha e o povão, só teria a chance de consultar a própria memória. E mesmo assim Darlene se mostrava segura:
— Ronaldo, Ronaldo. Aqui ó!
Bento quis morrer e tentou se esconder por trás da cabeça do homem à sua frente.
— Filma aqui, Foca! Filma a menina bonita pra mim. Como é o seu nome, meu anjo?
E o bafo quente da câmera enquadrou Bento e Darlene em cheio.
—Como é o seu nome, moça bonita?
—Darlene.
—E quantos anos você tem, Darlene?
— Quatorze.
— Darlene, valendo dois ingressos para o show do Bruno e Marrone no Camarú: qual o país cuja moeda oficial se chama “pula” — dessa vez ninguém pulou.
A menina olhou para Bento e depois para o rosto suado de Ronaldo e disse com a boca no microfone:
— Botswana.
— Como que é?
— Botswana.
— Que é isso?
— Um país.
— Onde fica isso?
— Na África.
Ronaldo Kelsen olhou para a produção e Budinha fez o sinal afirmativo com seu minúsculo dedão.
— Ganhou o ingresso! Toma, pra você e pro seu namorado — disse o apresentador já se afastando, dando prosseguimento ao próximo sorteio.
Darlene olhou com força o papel laminado para certificar-se que era de verdade. — Olha, Bento, ganhei!!
— Eu estou chocado, Darlene. Como? Quer dizer, como você sabia que “pula” era a moeda de Botswana?
— Sei lá, uma vez, na quarta série, eu acho, eu fiquei a tarde inteira na biblioteca sem nada pra fazer. Por algum motivo, eu peguei o Atlas e fiquei decorando as moedas dos países. Por causa disso, eu sei até hoje a moeda de todos os países.
— De todos?
— A maioria.
— Uau, que isso. O que mais eu preciso saber sobre você?
— Vou te contar assim que eu for lembrando, pode ser? Mas eu preciso ir, já deu a minha hora. Mesmo.

Despediram-se do Bala de Prata e da sua multidão. Bento certificou-se de manter Darlene ao seu alcance quando traspassaram a catraca e desceram junto a uma avalanche de gente até o andaime da enorme garagem por onde os ônibus passavam para apanhar os passageiros. Era um aperreio. Somente ele, porém, estranhava a violência da aglomeração, Darlene sentia-se à vontade como quem frequenta todos os dias e conhece de cor os caminhos que levam ao Luizote, ao Umuarama, ao Pacaembu. Longas viagens que fazia diariamente ao lado da mãe.
Lá longe, na plataforma oposta, o ônibus de número 115 que os levaria de volta ao Saraiva ameaçava sair. Como se não estivessem cansados e suados o bastante, os dois adolescentes correram como doidos, bateram com a mão na lataria lateral do veículo — ô, motô! — para que o motorista abrisse a porta traseira. Conseguiram. Entraram e se sentaram nas duas cadeiras mais altas. Ufa! Partiram.
— Só espero que a Teolinda não tenha assistido TV hoje, senão estamos ferrados — disse Bento.
— Ah, não tô nem aí. Valeu a pena.
— E mesmo assim a gente nem conversou sobre aquilo que eu queria conversar.
— Não tem nada pra conversar, Bento.
— Então quer dizer que você não acha que eu sou doido que nem você disse na sua carta?
— Eu acho você doido de pedra. Mas apesar disso você é um cara massa, de verdade.
— E pra quem nem queria ir ao Camarú, olha só, dois ingressos.
— Pra você ver…
— Acho que você tem que ir, né? O destino decidiu por você.
— Acho que foi.
— Você acha que o seu namorado vai gostar?
— Não sei qual vai ser a reação dele.
— Que isso! Qualquer pessoa ia ficar doida. Até eu ia, com certeza.
— Nem sei se ele vai animar. Ele é sério.
— E se ele não for?
— Aí eu não sei.
Bento viu a cidade correr diante do seus olhos enquanto o 115 voava pela Avenida João Pinheiro, e quanto mais se aproximava de casa, mais escasso era seu tempo. Decidiu arriscar:
— Se seu namorado não for, você se anima de ir comigo? Quer dizer, eu vou ter que ir com o meu irmão, né? Então não é um encontro, é tipo uma saída de galera. Vai estar todo mundo da sala. Seu namorado não vai achar ruim, né?
Darlene abriu a pequena janela lateral e deixou o ar entrar. Perdeu um bom tempo olhando a rua e as pessoas. E disse baixinho para eles:
— Eu não tenho namorado.
— Oi?
— Eu achei que eu estava num relacionamento, mas eu não sei. Acho que a gente tá brigado.
— Então você mentiu?
— Não sei.
Bento já estava impaciente com aquela coisa toda. Achou que talvez fosse um personagem de um jogo.
— Darlene, fala a verdade, quem é o seu namorado? É o Gilvan por acaso?
— Por que você acha isso?
— Porque vocês estão sempre juntos e sei lá. Você sempre vê os jogos dele na escola, e, enfim...porque ele é quem ele é. Acho que a única vez que eu vi você sorrir de verdade foi com ele. Que nem naquela vez que o Gilvan escondeu a pasta do professor Claúdio e colocou no banheiro. Você riu muito. Queria ter feito você rir daquele jeito. Eu acho que tenho inveja dele. Sempre tive, na verdade. — Sabia que o Gilvan gosta muito de você? Ele disse que você é o menino mais inteligente da sala.
— Ele falou isso?
— Uhum. Falou que um dia você vai ser muito rico porque é muito inteligente e que às vezes nem entende as coisas que você fala.
— Nossa! Sério? Nunca imaginei que o Gilvan ia falar uma coisa dessas. Quer dizer, sempre estive do lado dele de alguma forma, mas nunca, a não ser nos trabalhos em grupo em que a gente é obrigado a conversar, eu nunca falei olhando diretamente com ele, olhando nos olhos dele.
— Eu já notei que você faz isso mesmo.
— O quê?
— Não olha nos olhos quando fala com alguém. Isso é timidez.
— Você também é, Darlene. Nem vem.
— É diferente. Eu sou calada.
— A gente vai ficar discutindo detalhes técnicos agora?
— Claro, uai. Uma pessoa tímida vive para si mesma, como se para tudo que a pessoa vê no mundo precisasse ser pensado e repensado. Uma pessoa calada engole muito as próprias opiniões, quer falar e não pode.
— Mas, às vezes, se a pessoa não falar, não botar pra fora, vira úlcera. Não faz bem.
— Mas é que nem sempre a pessoa calada encontra alguém que possa confiar.
— Tem gente que é um túmulo. Que não conta pra ninguém.
— Tem muita gente nesse mundo.
Diferente do ônibus e seus passageiros, a conversa não ia para lugar algum. Era inútil. A certa altura da viagem, o motorista girou o corpo para imprimir no ônibus uma violenta conversão à esquerda, deixando assim a avenida João Naves de Ávila, na altura da nova prefeitura. Estavam de volta ao Saraiva.
— Nossa, vamos passar na frente da escola!
— Paciência.
Bento tentou ser natural, mas a verdade é que abaixou sua cabeça, como num reflexo, para debaixo da linha da janela quando viu Índio na portaria do Joaquim, conduzindo pela calçada as últimas crianças até as vans escolares. Foi ridículo, e sabia.
O ônibus corria insaciável por entre a peregrinação de adolescentes a pé. Pela janela, o mais novo matador de aula de Uberlândia viu seus amigos, juntos como sempre, voltando para casa e se divertindo sem ele. Foi uma sensação esquisita. Mais tarde, ela bem que tentou disfarçar, mas Darlene acabou lançando um olhar sobre a fachada simples da casa de Gilvan, enquanto o ônibus voava pela rua Caetés. Sobre o que estaria ela pensando?
— Bem, Darlene. Daqui a pouco eu desço, já tá perto da minha casa.
— Uhum.
— Mas eu gostei muito de matar aula, nunca tinha feito isso.
— Foi massa.
Puxou a cordinha. Levantou-se. Apoiando-se na barra de teto se pôs de frente à amiga. Ela moveu-se para o assento onde Bento estava, o que os deixaram bem próximos um do outro.
— Valeu, Bento, pelo CD.
— Valeu pela companhia.
— Eu vou pensar, tá?
— No quê?
— Sobre o Camarú.
— Pensa direitinho. Você vai à aula amanhã?
— Acho que sim.
— Você não vai fingir que não me conhece que nem você escreveu na carta?
— Vou não.
— Posso falar com você no recreio se eu te ver?
— Pode.
Darlene o olhou com olhos grandes e pedintes. Era a chamada do destino.
— Posso te dar um beijo?
— Pode.
Alguns passageiros acharam graça, outros viraram a cara de nojo, mas é que nenhum deles enxergava a comunhão sincera de hormônios e de almas por trás daquele beijo feio e sem técnica em pleno trajeto do 115. A língua do menino, lenta e pegajosa como a de uma tartaruga velha, tinha de ser resgatada a todo momento pela experiência de Darlene, que acessava com pressa onipresente os segredos já desvendados de outras bocas. Como já se disse, foram necessários cinco anos de um amor platônico, cinco anos de obediente e calada dedicação para que ele pudesse estar atracado com sua musa naquele ônibus, naquela quinta-feira quente. Nada mais justo que aproveitasse. Vá em frente, Bento! E não ligue para os mal-amados do ônibus! Finja que hoje é o seu aniversário e sirva-se dos lábios macios como se fossem doces de festa!
Quando o pistão apitou e a porta traseira do ônibus se abriu, o motorista verificou pelo retrovisor quem era quem estava atrasando o veículo. Bento se desprendeu finalmente de Darlene e desceu até o nível do asfalto. O ônibus partiu do ponto sem que eles tivessem a chance de se despedir. Havia ainda alunos no caminho de volta da escola e Bento se camuflou entre eles. Foi o crime perfeito.
Ao chegar em casa, não quis saber de conversa, nem com Vânio, nem com Beethoven. Pulou o almoço e foi direto para o quarto. Passou a tarde inteira, deitado e sem camisa, embalado por horas e horas em músicas em inglês que, por coincidência, pareciam todas elas falarem de amor.